Do Rio de Janeiro que desapareceu com os escombros de tantas intervenções urbanas, nenhum pedaço da cidade é tão representativo da formação cultural carioca quanto a Praça Onze – nome que designava não só o retângulo delimitado pelas ruas Visconde de Itaúna, Senador Euzébio, Marquês de Pombal e de Santana, mas também a região em que se localizava, habitada em sua maioria por pessoas negras, imigrantes judeus e outras gentes à margem do “Rio civilizado” que se consolidava na virada entre os séculos 19 e 20. Originalmente, chamava-se “Praça de São Salvador”, mas para o povo era conhecida como Largo do Rocio Pequeno – só depois virou Praça Onze de Junho, seu nome completo, em referência à data da vitória brasileira na Batalha do Riachuelo (1865), episódio da Guerra do Paraguai.
No começo dos anos 1900, já tinha linha de bonde, escola, casas de comércio e de santo – comandadas por mães-de-santo como a famosa “tia” Ciata, em cuja casa (Rua Visconde de Itaúna, nº 117) teria surgido o samba “Pelo telefone”, grande sucesso de 1917 e carnavais seguintes. O escritor e compositor Nei Lopes, no fundamental livro “Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos”, a define “como a Congo Square em New Orleans, o centro do carnaval do Rio”. Refere-se ao carnaval popular, claro, diferente daquele da Avenida Rio Branco, onde brincavam os ricos: a Praça Onze era ponto de rodas de pernada, batucadas e confraternizações de ranchos. Foi também o local dos primeiros desfiles das escolas de samba, entre 1932 e 1942.
E não foi por outra razão que a iminência de sua demolição, no início dos anos 1940, para dar lugar à Avenida Presidente Vargas, causou tanta comoção entre os compositores populares – como se pode perceber pela quantidade de sambas mencionando a Praça no site Discografia Brasileira. Mesmo antes do temor coletivo pelo fim dela – e quiçá do samba! – seu nome já era frequentemente mencionado no repertório popular, sempre como lugar de boas festas e malandragem, como cantou Marques da Gama em 1931: “Na Praça Onze de Junho / Entrei na roda de um samba / Com meu pandeiro em punho / Eu tirei carta de bamba”, diz o refrão de “Na Praça Onze” (Gonçalves de Oliveira), sobre um malandro “enfezado” que é “filho da canalha”.
Já de 1933 é “Oi Maria!”, samba sobre uma cabrocha que “tem a pele cor de bronze” e “vem a pé de Deodoro segurando o estandarte pra dançar na Praça Onze”, como se ouve na gravação do malandro-cantor Moreira da Silva. Seu autor, Assis Valente, rimou o metal escuro com o nome da praça, assim como fizera o cantor Bahiano na cançoneta “Não empurre”, de 1912:
Tomei o bonde da Carris Urbanos
Desses que vão até a Praça Onze
Mas a meu lado, dois olhos maganos
Me perguntaram se eu era de bronze
A rima tanto deu pé que voltou pelo menos duas vezes em 1934, em sambas na voz feminina lançados em disco pelas irmãs Miranda: primeiro Aurora, em “Moreno cor de bronze” (Custódio Mesquita), de versos sensuais: “Seu amor é mais gostoso / É melhor o seu querer...” E depois Carmen, em “Ao voltar do samba” (Sinval Silva), no qual pragueja após perder “o mulato” no asfalto.
O ponto de encontro dos sambistas voltou a ambientar músicas em 1937, quando saíram “Foi na Praça Onze” (Max Bulhões e Milton de Oliveira), no canto choroso de Fausto Paranhos, e um sucesso de Assis Valente, que volta a citar a praça no itinerário de um sambista nato: “Eu nasci na Praça Onze / Dou a vida pra sambar / Já sambei lá na Favela / Salgueiro, Portela, Estácio de Sá...”, canta o Bando da Lua em “Cansado de sambar”.
Até que no dia 19 de abril de 1941, quando o presidente Getúlio Vargas completava 59 anos, chegaram as marretas e tratores – e ficava justamente na Praça Onze (Rua Visconde de Itaúna, nº 52) a primeira casa que foi ao chão. Em meio à comoção que tomou os populares estava o ator Grande Otelo, que transformou sua agonia num manifesto em forma de versos:
Meu povo, este ano a escola não sai
Vou lhe dar explicações
Não temos mais a Praça Onze
Para as nossas evoluções
Ali onde a cabrocha
Mostrava o seu requebrado
Um grande homem de bronze
Por todos será lembrado
No livro “Grande Otelo: uma biografia”, o jornalista Sérgio Cabral descreve o périplo de seu personagem à cata de um parceiro, percorrendo bares e cafés com seus versos num papelzinho amassado: “Conversou com Wilson Batista, Max Bulhões, Ataulfo Alves, Germano Augusto, Kid Pepe e vários outros, mas nenhum se interessou pelo samba.”
Até que chegou ao compositor Herivelto Martins, que finalmente topou a parada. Segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (no livro “A canção no tempo – vol. 1”), Herivelto teria começado a fazer o samba no Cassino da Urca (onde se apresentava com seu Trio de Ouro) e desenvolveu a composição na lancha que atravessava a Baía de Guanabara levando artistas da Urca até o Cassino Icaraí, em Niterói.
"Praça Onze" foi o nome dado àquele samba que no fim das contas acabou sem os versos de Grande Otelo. O tom convocatório deu lugar a outro, mais lírico, como na segunda parte, quando a letra se dirige à própria homenageada: “Leva contigo a nossa recordação, mas ficarás eternamente em nosso coração...”
A primeira gravação de “Praça Onze” saiu em janeiro de 42, com Castro Barbosa e o Trio de Ouro, dirigido por Herivelto – que aqui se divide entre cantar e soprar o apito, utensílio que transformou em instrumento e daqui por diante será uma marca de suas gravações. No mesmo mês, a composição arrasou também no salão nobre do aristocrático Fluminense Football Club, vencendo o concurso de sambas carnavalescos da Prefeitura do Distrito Federal, empatado com “Ai que saudades da Amélia”, de Mario Lago e Ataulfo Alves.
O certame serviu de mote para Herivelto, rápido no gatilho, bolar o spin-off “Amélia na Praça Onze” (com Cícero Nunes), que em maio de 1942 já rodava nos toca-discos com Linda Batista cantando a história da criatura que, embora acostumada “aos reveses da vida”, “não se acostumou a passar sem comer”. O samba de Herivelto e Otelo acabou citado também em outro lançamento de maio, o samba-choro “Teleco teco” (Marino Pinto e Murilo Caldas), sucesso de Isaura Garcia.
Já em 1943 – quando o desfile das escolas de samba foi transferido para o Estádio de São Januário – foi a vez de surgirem composições com olhares mais otimistas. Como o ótimo samba “Voz do morro”, em que Geraldo Pereira (aqui dividindo parceria com Moreira da Silva, cantor da faixa) pede que ninguém fique triste, afinal não foi a batucada que acabou: “Mesmo sem a Praça todos hão de ver / Que as escolas não deixarão de descer...” Na mesmíssima toada é o samba “A nova aurora raiou” (Cristóvão de Alencar e Paulo Pinheiro), em que Ataulfo Alves convoca pastoras e tamborins, pois “o samba precisa continuar!”
É nesse clima menos choroso que Herivelto volta à história, propondo, ele também, a retomada do samba, também em 1943: “Laurindo sobe o morro gritando / Não acabou a Praça Onze, não acabou / Vamos esquentar os nossos tamborins...” No decorrer da letra, a batucada acaba não se formando, apesar dos esforços e da liderança de “Laurindo”, herói que já tinha dado samba numa parceria de Noel Rosa e Hervé Cordovil (“Triste cuíca”, 1935) e ainda seria protagonista de composições de outros criadores, especialmente Wilson Batista.
Há também as exaltações à Avenida Presidente Vargas, que afinal era “o orgulho desta linda capital”, como diz um dos versos de “Vem surgindo a avenida” (Gastão Vianna e Benedito Lacerda), lançamento de 1943 na interpretação do duo Ciro Monteiro/Nelson Gonçalves. Destaque para a segunda parte deste samba, onde a figura do malandro regenerado não deixa dúvida sobre a adesão dos compositores à cartilha getulista da época:
E foi lá que eu encontrei
Minha vida, meu amor
A farra abandonei
Hoje sou trabalhador
A própria parceria Herivelto Martins e Grande Otelo também virou a página com o samba “Bom dia avenida”, no qual já não chorava o fim da velha praça e as cerca de 500 construções demolidas pela obra, como se percebe na gravação que saiu em 1944, nas vozes do Trio de Ouro:
Lá vem a nova avenida
Remodelando a cidade
Rompendo prédios e ruas
Os nossos patrimônios de saudade
É o progresso... E o progresso é natural
Deste mesmo ano – quando foi inaugurada a Avenida Presidente Vargas, no dia 7 de setembro – é “O samba não morre” (Marino Pinto e Arlindo Marques Jr.), no qual os Anjos do Inferno cantam que viram “a Favela desaparecer”, “Lapa se transformar” e “morrer a Praça Onze”. E aí está mais um motivo para a sobrevivência do samba: “Pois nele existe uma lembrança singela / Da Praça Onze, da Lapa e da Favela.”
Passada a demolição de todo o entorno (e de outras centenas de construções que ficavam no caminho da nova avenida), o quadrilátero da velha Praça acabaria permanecendo entre as pistas da via: uma “nova praça”, que inspirou em 1946 mais uma criação de Herivelto Martins, parceiro de Benedito Lacerda numa ode ao general Eurico Gaspar Dutra – que presidia o país desde dezembro do ano anterior. A pérola adesista – intitulada “Obrigado general” – chega a ter ares bíblicos no arremate da segunda parte: “E quem já chorou sua destruição / Agora festeja a ressurreição!”
A pracinha incorporada à Presidente Vargas jamais recuperaria o valor simbólico de sua antecessora – nem mesmo depois que as escolas de samba passaram a desfilar na avenida, em 1946. Ou quando um decreto de 1949 rebatizou-a com o nome de Praça Onze, como informa Paulo Berger no “Dicionário histórico das ruas do Rio de Janeiro”. Mesmo assim, seguiu inspirando exaltações como esta de 1951: “A Praça Onze não morreu” (Luiz Mergulhão e Mary Monteiro), no qual o intérprete Tite canta que “perdeu seu tempo quem chorou a sua morte...”, afinal a dita-cuja “melhorou muito”, pois “pertence hoje à avenida principal”.
Felizmente, há ainda contrapontos saudosos na seleção de sambas sobre a Praça Onze em 78 rotações. Como a “Placa de bronze” que os compositores J. Costa e Mutt pedem que seja instalada na nova praça (1947), prestando homenagem aos sambistas que cantaram os morros cariocas: “Herivelto, Cartola e o saudoso Noel”. E ainda o tristonho “Saudosa Praça Onze” (Valdemar Ressureição e Evaldo Rui), em que Linda Batista relembra – já em 1953 – o “bonde de tostão” e personagens dos antigos carnavais, como Paulo da Portela, Claudionor e Antenor Gargalhada:
Praça Onze dos valentes
Dos poetas e cantores
Onde está toda essa gente?
Onde estão teus trovadores?
Já não restava nenhum vestígio dos antigos carnavais e seus personagens quando, em 1968, o local recebeu suas últimas benfeitorias: 30 bancos de madeira, 22 refletores e até um novo chafariz, já que o original – projetado no século 18 pelo arquiteto parisiense Grandjean de Montigny – desde 1942 adornava a Praça Afonso Vizeu, no Alto da Boa Vista, onde aliás permanece até hoje. Já a praça desapareceu de vez com as obras do metrô, na década de 1970, deixando como última lembrança o nome usado numa das estações da linha férrea: a estação Praça Onze, localizada a 300 metros da Avenida Marquês de Sapucaí, onde as escolas de samba desfilam desde 1978.
Embora sumida do mapa, a velha Praça Onze “permanece como símbolo da afrobrasilidade em terra carioca, sendo seu nome ainda usado, na fala popular, para se referir à antiga área e seu entorno”, como afirmam Nei Lopes e Luiz Antonio Simas no “Dicionário da História Social do Samba”. É nesta região que se localizam o Sambódromo (pista dos desfiles de carnaval desde 1984), o Terreirão do Samba (de 1991) e um monumento a Zumbi dos Palmares (1988), este último um marco que cumpre o papel de nos lembrar – em meio a tantos carros e ônibus que passam varados pela Avenida Presidente Vargas – da negritude que permanece impregnada naquele chão.
* Texto produzido com as colaborações decisivas de (e agradecimentos a) Haroldo Costa, Nei Lopes e Rodrigo Alzuguir.
A foto do post (Praça Onze na década de 1920) é de Augusto Malta e as duas da década de 1910 são de autoria desconhecida, todas da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS.