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    Praça Onze, presente! Apagada do mapa, viva na história do samba

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Do Rio de Janeiro que desapareceu com os escombros de tantas intervenções urbanas, nenhum pedaço da cidade é tão representativo da formação cultural carioca quanto a Praça Onze – nome que designava não só o retângulo delimitado pelas ruas Visconde de Itaúna, Senador Euzébio, Marquês de Pombal e de Santana, mas também a região em que se localizava, habitada em sua maioria por pessoas negras, imigrantes judeus e outras gentes à margem do “Rio civilizado” que se consolidava na virada entre os séculos 19 e 20. Originalmente, chamava-se “Praça de São Salvador”, mas para o povo era conhecida como Largo do Rocio Pequeno – só depois virou Praça Onze de Junho, seu nome completo, em referência à data da vitória brasileira na Batalha do Riachuelo (1865), episódio da Guerra do Paraguai. 

    PRAÇA ONZE EM 1910

    No começo dos anos 1900, já tinha linha de bonde, escola, casas de comércio e de santo – comandadas por mães-de-santo como a famosa “tia” Ciata, em cuja casa (Rua Visconde de Itaúna, nº 117) teria surgido o samba “Pelo telefone”, grande sucesso de 1917 e carnavais seguintes. O escritor e compositor Nei Lopes, no fundamental livro “Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos”, a define “como a Congo Square em New Orleans, o centro do carnaval do Rio”. Refere-se ao carnaval popular, claro, diferente daquele da Avenida Rio Branco, onde brincavam os ricos: a Praça Onze era ponto de rodas de pernada, batucadas e confraternizações de ranchos. Foi também o local dos primeiros desfiles das escolas de samba, entre 1932 e 1942.

    PRAÇA ONZE EM TARDE DE CARNAVAL NA DÉCADA DE 1910

    E não foi por outra razão que a iminência de sua demolição, no início dos anos 1940, para dar lugar à Avenida Presidente Vargas, causou tanta comoção entre os compositores populares – como se pode perceber pela quantidade de sambas mencionando a Praça no site Discografia Brasileira.  Mesmo antes do temor coletivo pelo fim dela – e quiçá do samba! – seu nome já era frequentemente mencionado no repertório popular, sempre como lugar de boas festas e malandragem, como cantou Marques da Gama em 1931: “Na Praça Onze de Junho / Entrei na roda de um samba / Com meu pandeiro em punho / Eu tirei carta de bamba”, diz o refrão de “Na Praça Onze” (Gonçalves de Oliveira), sobre um malandro “enfezado” que é “filho da canalha”.

    Já de 1933 é “Oi Maria!”, samba sobre uma cabrocha que “tem a pele cor de bronze” e “vem a pé de Deodoro segurando o estandarte pra dançar na Praça Onze”, como se ouve na gravação do malandro-cantor Moreira da Silva. Seu autor, Assis Valente, rimou o metal escuro com o nome da praça, assim como fizera o cantor Bahiano na cançoneta “Não empurre”, de 1912: 

    Tomei o bonde da Carris Urbanos
    Desses que vão até a Praça Onze
    Mas a meu lado, dois olhos maganos
    Me perguntaram se eu era de bronze

    A rima tanto deu pé que voltou pelo menos duas vezes em 1934, em sambas na voz feminina lançados em disco pelas irmãs Miranda: primeiro Aurora, em “Moreno cor de bronze” (Custódio Mesquita), de versos sensuais: “Seu amor é mais gostoso / É melhor o seu querer...” E depois Carmen, em “Ao voltar do samba” (Sinval Silva), no qual pragueja após perder “o mulato” no asfalto.

    O ponto de encontro dos sambistas voltou a ambientar músicas em 1937, quando saíram “Foi na Praça Onze” (Max Bulhões e Milton de Oliveira), no canto choroso de Fausto Paranhos, e um sucesso de Assis Valente, que volta a citar a praça no itinerário de um sambista nato: “Eu nasci na Praça Onze / Dou a vida pra sambar / Já sambei lá na Favela / Salgueiro, Portela, Estácio de Sá...”, canta o Bando da Lua em “Cansado de sambar”.

    Até que no dia 19 de abril de 1941, quando o presidente Getúlio Vargas completava 59 anos, chegaram as marretas e tratores – e ficava justamente na Praça Onze (Rua Visconde de Itaúna, nº 52) a primeira casa que foi ao chão.  Em meio à comoção que tomou os populares estava o ator Grande Otelo, que transformou sua agonia num manifesto em forma de versos:

    Meu povo, este ano a escola não sai
    Vou lhe dar explicações
    Não temos mais a Praça Onze
    Para as nossas evoluções
    Ali onde a cabrocha
    Mostrava o seu requebrado
    Um grande homem de bronze
    Por todos será lembrado

    No livro “Grande Otelo: uma biografia”, o jornalista Sérgio Cabral descreve o périplo de seu personagem à cata de um parceiro, percorrendo bares e cafés com seus versos num papelzinho amassado: “Conversou com Wilson Batista, Max Bulhões, Ataulfo Alves, Germano Augusto, Kid Pepe e vários outros, mas nenhum se interessou pelo samba.” 

    Até que chegou ao compositor Herivelto Martins, que finalmente topou a parada. Segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (no livro “A canção no tempo – vol. 1”), Herivelto teria começado a fazer o samba no Cassino da Urca (onde se apresentava com seu Trio de Ouro) e desenvolveu a composição na lancha que atravessava a Baía de Guanabara levando artistas da Urca até o Cassino Icaraí, em Niterói.

    "Praça Onze" foi o nome dado àquele samba que no fim das contas acabou sem os versos de Grande Otelo. O tom convocatório deu lugar a outro, mais lírico, como na segunda parte, quando a letra se dirige à própria homenageada: “Leva contigo a nossa recordação, mas ficarás eternamente em nosso coração...”

    A primeira gravação de “Praça Onze” saiu em janeiro de 42, com Castro Barbosa e o Trio de Ouro, dirigido por Herivelto – que aqui se divide entre cantar e soprar o apito, utensílio que transformou em instrumento e daqui por diante será uma marca de suas gravações. No mesmo mês, a composição arrasou também no salão nobre do aristocrático Fluminense Football Club, vencendo o concurso de sambas carnavalescos da Prefeitura do Distrito Federal, empatado com “Ai que saudades da Amélia”, de Mario Lago e Ataulfo Alves.

    O certame serviu de mote para Herivelto, rápido no gatilho, bolar o spin-offAmélia na Praça Onze” (com Cícero Nunes), que em maio de 1942 já rodava nos toca-discos com Linda Batista cantando a história da criatura que, embora acostumada “aos reveses da vida”, “não se acostumou a passar sem comer”. O samba de Herivelto e Otelo acabou citado também em outro lançamento de maio, o samba-choro “Teleco teco” (Marino Pinto e Murilo Caldas), sucesso de Isaura Garcia.

    Já em 1943 – quando o desfile das escolas de samba foi transferido para o Estádio de São Januário – foi a vez de surgirem composições com olhares mais otimistas. Como o ótimo samba “Voz do morro”, em que Geraldo Pereira (aqui dividindo parceria com Moreira da Silva, cantor da faixa) pede que ninguém fique triste, afinal não foi a batucada que acabou: “Mesmo sem a Praça todos hão de ver / Que as escolas não deixarão de descer...” Na mesmíssima toada é o samba “A nova aurora raiou” (Cristóvão de Alencar e Paulo Pinheiro), em que Ataulfo Alves convoca pastoras e tamborins, pois “o samba precisa continuar!”

    É nesse clima menos choroso que Herivelto volta à história, propondo, ele também, a retomada do samba, também em 1943: “Laurindo sobe o morro gritando / Não acabou a Praça Onze, não acabou / Vamos esquentar os nossos tamborins...” No decorrer da letra, a batucada acaba não se formando, apesar dos esforços e da liderança de “Laurindo”, herói que já tinha dado samba numa parceria de Noel Rosa e Hervé Cordovil (“Triste cuíca”, 1935) e ainda seria protagonista de composições de outros criadores, especialmente Wilson Batista.

    Há também as exaltações à Avenida Presidente Vargas, que afinal era “o orgulho desta linda capital”, como diz um dos versos de “Vem surgindo a avenida” (Gastão Vianna e Benedito Lacerda), lançamento de 1943 na interpretação do duo Ciro Monteiro/Nelson Gonçalves. Destaque para a segunda parte deste samba, onde a figura do malandro regenerado não deixa dúvida sobre a adesão dos compositores à cartilha getulista da época:

    E foi lá que eu encontrei
    Minha vida, meu amor
    A farra abandonei
    Hoje sou trabalhador

    A própria parceria Herivelto Martins e Grande Otelo também virou a página com o samba “Bom dia avenida”, no qual já não chorava o fim da velha praça e as cerca de 500 construções demolidas pela obra, como se percebe na gravação que saiu em 1944, nas vozes do Trio de Ouro: 

    Lá vem a nova avenida
    Remodelando a cidade
    Rompendo prédios e ruas
    Os nossos patrimônios de saudade
    É o progresso... E o progresso é natural

    Deste mesmo ano – quando foi inaugurada a Avenida Presidente Vargas, no dia 7 de setembro – é “O samba não morre” (Marino Pinto e Arlindo Marques Jr.), no qual os Anjos do Inferno cantam que viram “a Favela desaparecer”, “Lapa se transformar” e “morrer a Praça Onze”. E aí está mais um motivo para a sobrevivência do samba: “Pois nele existe uma lembrança singela / Da Praça Onze, da Lapa e da Favela.”

    Passada a demolição de todo o entorno (e de outras centenas de construções que ficavam no caminho da nova avenida), o quadrilátero da velha Praça acabaria permanecendo entre as pistas da via: uma “nova praça”, que inspirou em 1946 mais uma criação de Herivelto Martins, parceiro de Benedito Lacerda numa ode ao general Eurico Gaspar Dutra – que presidia o país desde dezembro do ano anterior. A pérola adesista – intitulada “Obrigado general” – chega a ter ares bíblicos no arremate da segunda parte: “E quem já chorou sua destruição / Agora festeja a ressurreição!”

    A pracinha incorporada à Presidente Vargas jamais recuperaria o valor simbólico de sua antecessora – nem mesmo depois que as escolas de samba passaram a desfilar na avenida, em 1946. Ou quando um decreto de 1949 rebatizou-a com o nome de Praça Onze, como informa Paulo Berger no “Dicionário histórico das ruas do Rio de Janeiro”. Mesmo assim, seguiu inspirando exaltações como esta de 1951: “A Praça Onze não morreu” (Luiz Mergulhão e Mary Monteiro), no qual o intérprete Tite canta que “perdeu seu tempo quem chorou a sua morte...”, afinal a dita-cuja “melhorou muito”, pois “pertence hoje à avenida principal”.

    Felizmente, há ainda contrapontos saudosos na seleção de sambas sobre a Praça Onze em 78 rotações. Como a “Placa de bronze” que os compositores J. Costa e Mutt pedem que seja instalada na nova praça (1947), prestando homenagem aos sambistas que cantaram os morros cariocas: “Herivelto, Cartola e o saudoso Noel”. E ainda o tristonho “Saudosa Praça Onze” (Valdemar Ressureição e Evaldo Rui), em que Linda Batista relembra – já em 1953 – o “bonde de tostão” e personagens dos antigos carnavais, como Paulo da Portela, Claudionor e Antenor Gargalhada: 

    Praça Onze dos valentes
    Dos poetas e cantores
    Onde está toda essa gente?
    Onde estão teus trovadores?

    Já não restava nenhum vestígio dos antigos carnavais e seus personagens quando, em 1968, o local recebeu suas últimas benfeitorias: 30 bancos de madeira, 22 refletores e até um novo chafariz, já que o original – projetado no século 18 pelo arquiteto parisiense Grandjean de Montigny – desde 1942 adornava a Praça Afonso Vizeu, no Alto da Boa Vista, onde aliás permanece até hoje. Já a praça desapareceu de vez com as obras do metrô, na década de 1970, deixando como última lembrança o nome usado numa das estações da linha férrea: a estação Praça Onze, localizada a 300 metros da Avenida Marquês de Sapucaí, onde as escolas de samba desfilam desde 1978.

    Embora sumida do mapa, a velha Praça Onze “permanece como símbolo da afrobrasilidade em terra carioca, sendo seu nome ainda usado, na fala popular, para se referir à antiga área e seu entorno”, como afirmam Nei Lopes e Luiz Antonio Simas no “Dicionário da História Social do Samba”. É nesta região que se localizam o Sambódromo (pista dos desfiles de carnaval desde 1984), o Terreirão do Samba (de 1991) e um monumento a Zumbi dos Palmares (1988), este último um marco que cumpre o papel de nos lembrar – em meio a tantos carros e ônibus que passam varados pela Avenida Presidente Vargas – da negritude que permanece impregnada naquele chão.

    * Texto produzido com as colaborações decisivas de (e agradecimentos a) Haroldo Costa, Nei Lopes e Rodrigo Alzuguir.

    A foto do post (Praça Onze na década de 1920) é de Augusto Malta e as duas da década de 1910 são de autoria desconhecida, todas da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS.


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