“Ela é a última a deixar a terra calcinada do sertão que está em fogo – que vira fogueira de São João, como nós dizemos na letra –, é a última que deixa. Tanto que, quando ela sai de um estado pra outro, no outro estado ela é chamada de pombinha estrangeira, porque ela vai como anunciadora da desgraça, da fome, da seca que tá se alastrando, tá indo de um lugar para outro lugar”.
Humberto Teixeira em depoimento sem data
“‘Asa branca’ é um protesto que fiz. Um protestozinho cristão, puramente nosso. Protesto perigoso é aquele importado, é aquele de agitação. E ‘Asa branca’ não é bem isso (risos)”.
Luiz Gonzaga (Folha de S.Paulo, 26/03/1978, suplemento Folhetim, p.11)
Ao contrário da pomba branca da paz, cujo voo significa esperança, a migração da pomba-asa-branca, que tem como uma de suas características uma faixa branca na parte superior das asas, sempre levou angústia e sofrimento ao nordestino. O nome científico da ave, Patagioenas picazuro, mistura de grego e guarani, quer dizer “pombo barulhento e com sabor amargo”, referência feita pelos antigos nativos ao gosto de sua carne. A asa branca é tida como agourenta, anunciadora da estiagem que maltrata o Nordeste, flagelo tantas vezes cantado em nossa música popular, como em “Vozes da seca”, “Súplica cearense”, “Último pau de arara”, “Acauã”, “Fome no Nordeste” e várias outras.
Quando o chão virava um braseiro/uma fornalha, quando o sertanejo perdia a plantação e também o gado por falta d’água, quando morria de sede seu alazão e inté mesmo a asa branca batia asas do sertão, era tempo de deixar o coração com sua Rosinha e viajar por muitas léguas até um local onde, numa triste solidão, sonharia com o dia em que a chuva caísse de novo e ele enfim pudesse voltar pra sua terra. De uma tragédia recorrente, Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga criaram um hino, não apenas do Nordeste, mas do Brasil: “Asa branca”, a toada/baião que, gravada pela primeira vez há 75 anos, em 03/03/1947, traz, nos versos criados por Teixeira, uma das imagens mais poéticas e tocantes de nossa música popular: “Quando o verde dos teus óio se espaiá na prantação / Eu te asseguro, não chore não, viu? / Que eu vortarei, viu, meu coração”.
Gonzaga, pernambucano que estreou em disco como compositor e sanfoneiro em 1941 e como cantor em 1945, mostrou em 1946, juntamente com o cearense Humberto Teixeira, como se dançava o baião, através das vozes dos Quatro Ases e Um Curinga. O “Baião” que sacudiu a música brasileira foi a primeira composição da dupla a chegar ao 78 rotações, embora a parceria inaugural dos dois, feita no dia em que se conheceram – em agosto de 1945 –, tenha sido “No meu pé de serra”, cuja letra foi criada em dez minutos, segundo depoimento do Rei do Baião ao livro “Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga”, de Dominique Dreyfus (São Paulo: Ed. 34, 1996).
Humberto Teixeira, em registro de vídeo feito nos anos 1970, fala, ao lado do velho Lua, sobre o dia em que surgiram, praticamente ao mesmo tempo, dois clássicos da dupla e da própria MPB: “Naquele mesmo dia, nós fizemos o que o Luiz chama ‘sanfonizar’ os primeiros acordes e a primeira linha mestra não só do ‘Baião’ como da ‘Asa branca’”. Esta última por muito pouco não viu a luz do dia, como Gonzaga contou a Dominique Dreyfus: “(...) falei pra ele [Humberto]: ‘Agora estou com vontade de fazer ‘Asa branca’. Mas não boto muita fé, porque é muito lenta, cantiga de eito, de apanha de algodão’. Humberto pediu pra eu cantar a música, eu cantei e ele me convenceu a fazê-la”.
É sabido que o tema de “Asa branca” foi resgatado por Luiz Gonzaga das suas memórias de infância. A própria frase musical executada pela sanfona no início e no fim da gravação remete a uma sequência típica das violas dos repentistas. Nas palavras de Dominique Dreyfus: “Como grande parte das melodias que Gonzaga trouxera para suas parcerias, ‘Asa branca’ fazia parte do repertório tradicional do Sertão. Ele sempre ouvira seu pai tocar essa música no fole, inclusive às vezes até cantarolar: ‘Asa branca foi-se embora / Bateu asa do Sertão / Larará não chore não...’. O povo escutava e ia improvisando, completando a letra a partir do mote dado por Januário [pai de Luiz]... Na vez seguinte, ninguém se lembrava exatamente da letra, então fazia outra, em cima do que recordava da antiga. E assim por diante. A música crescia, evoluía, sem eira nem beira e sem dono”.
Em depoimento para o mesmo livro, Gonzaga assume que o tema já existia, mas defende a atuação dele e de Humberto no processo criativo: “‘Asa branca’ era folclore. Eu toquei isso quando era menino com meu pai. Mas aí chega Humberto Teixeira e coloca: ‘Quando olhei a terra ardente [sic] / Qual fogueira de São João...’ e se conclui um trabalho sobre ‘Asa branca’. Agora, depois disso eu vou botar ‘tema popular’? Ou ‘recolhido’, ‘pesquisado’ por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga? Aí tudo quanto é vagabundo vai ser dono também? Não cantando nossa letra, mas cantando com uma letra fajuta, pra pegar sucesso. E faz mal pra música. Aí nós pegamos o tema Humberto e eu”.
A gravação original, de 03/03/1947, tem uma história curiosa, que mostra uma boa dose de preconceito sofrido por seus autores. Humberto Teixeira, presente ao estúdio na ocasião, recorda-se do fato no já citado registro de vídeo dos anos 1970, aproveitado no documentário “O homem que engarrafava nuvens”, de Lírio Ferreira (2008). O livro de Dominique Dreyfus também faz menção ao episódio, narrado por Gonzaga: “Quando eu a gravei, houve até uma brincadeira de mau gosto. Canhoto, violonista [na verdade, Waldiro Tramontano era cavaquinista] do conjunto de Benedito Lacerda que me acompanhava, me conhecia desde a época do Mangue. Então ele pegou um chapéu [ou um pires, segundo Teixeira] e foi passar entre os colegas, para eles botarem dinheiro. Me imitando. Humberto, que estava na gravação, falou pra ele: ‘– Por que é que você está fazendo isso?’. ‘– É porque isso é música de cego!’. Humberto então falou: ‘– Tome nota, isso aí vai ser um clássico’. E Humberto acertou!”.
Luiz Gonzaga costumava ser acompanhado por conjuntos regionais cariocas característicos da época, formados por bandolim, violão, cavaquinho, pandeiro. Bons para o samba e o choro, mas que deixavam ritmos como baião, xamego e xote sem a sonoridade desejada por Gonzaga. Só no início dos anos 1950, quando então já era um fenômeno de vendagem, o Lua fixou o famoso tripé que passou a ser sinônimo de música nordestina: ele na sanfona, Catamilho (João André Gomes) no zabumba e Zequinha do Frevo no triângulo. Pode-se notar a diferença quando se escuta a nova versão de “Asa branca” feita pelo próprio Gonzaga exatos cinco anos depois da original, em 06/03/1952: de uma toada dolente, a música transformou-se num vigoroso baião, com a icônica introdução ganhando sua forma definitiva. Esta é a gravação mais conhecida até hoje, presente em várias coletâneas do sanfoneiro.
“Asa branca” – a canção – bateu asas e seguiu seu curso. Em 1948, na voz de Gonzaga e com um arranjo orquestral bem diferente do que havia sido levado ao disco, foi um dos números musicais da comédia “É com este que eu vou”, de José Carlos Burle. O clássico receberia mais três regravações em 78 rpm: a de Jorge Goulart – acompanhado pelos trios Melodia e Madrigal – em 1952 (lançada no ano seguinte), a de Julião da Viola (Julio Amâncio da Silva) em 1961 e a de Altamiro Carrilho e sua bandinha em 1962.
Uma música que carrega certo “parentesco” com “Asa branca” surgiu em 1950 pelas mãos dos mesmos Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: “Assum preto”. Algumas curiosidades envolvem as duas toadas: trazem um nome de pássaro no título (na segunda, o anu-preto ou anum virou “assum” por uma opção fonética dos autores), há uma oposição nos títulos (asa branca e assum preto) e ambas possuem a mesma estrutura rítmica, fazendo que a letra da primeira caiba perfeitamente na melodia da outra e vice-versa (ainda que uma esteja em tom maior e a outra em tom menor).
Aquele sertanejo que havia desertado de sua terra por causa da seca ouviu rumores sobre a chuva no sertão e já pensava em ir para casa cuidar da plantação; se a safra não atrapalhasse seus planos, quem sabe casaria com Rosinha no fim do ano. Luiz Gonzaga e o também pernambucano Zé Dantas – cujo centenário comemoramos neste post – promoveram, em 1950, “A volta da asa branca”, que, “ouvindo o ronco do trovão”, retornava ao seu lugar de origem, onde agora havia “rios correndo”, cachoeiras “zoando, terra molhada, mato verde, que riqueza”. Era a natureza levando alegria ao povo – infelizmente, apenas na ficção de uma letra de música. Na vida real, o castigo continuava: o poder público, sempre omisso, nunca tratou da questão da seca com a urgência que o assunto exige.
A asa branca voltou a pousar diversas vezes na imaginação de nossos poetas e compositores populares. Em 1959, o paraibano Rosil Cavalcanti mencionou a avezinha em sua “Aquarela nordestina”, que, lançada por Marinês e Sua Gente, retomava o tema do sofrimento trazido pela estiagem. No mesmo ano, Zé Gonzaga (irmão de Luiz) narrou “A fuga da asa branca”, parceria sua com Nelson Barbalho, regravada no ano seguinte por Carlos Diniz. E o também paraibano Antônio Barros revelou em 1960 o que aconteceu “Depois da asa branca”, outra criação de Marinês.
Eis que, em 1968, a Luta Democrática de 25 de agosto (na coluna Discos, de Antônio Carlos) publicava uma nota bombástica: “Os Beatles gravaram ‘Asa branca’ de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira”! Em 11 de setembro, o Diário de Pernambuco trazia trechos do depoimento de Luiz Gonzaga ao Museu da Imagem e do Som; segundo o jornal, o artista afirmou na ocasião que “ele e Humberto Teixeira, um dos seus parceiros, estão planejando a volta do baião, aproveitando o impulso que a interpretação de ‘Asa branca’ pelo [sic] Beatles vai dar ao ritmo”. A revista InTerValo nº 302, de outubro, trazia um anúncio da empresa Hering no qual se lia: “finalmente, a redescoberta da harmônica [sanfona]: os Beatles vão gravar ‘Asa branca’”.
Uma das maiores fake news daquele período (na época, elas eram chamadas de boatos) foi tão divulgada como verdade que Ron Kass, gerente da Apple (empresa dos Fab Four), que estava naquele momento no Rio de Janeiro prestigiando o III FIC (Festival Internacional da Canção), precisou fazer vários desmentidos, publicados, entre outros periódicos, no Correio da Manhã de 29/09/1968: os Beatles não iriam comparecer ao festival, pois estavam preparando um “álbum com trinta novas músicas” (exatamente o número de faixas do LP duplo “The Beatles”, o famoso “Álbum Branco”, lançado no final daquele ano); também não iriam aprender berimbau com Baden Powell (!!); tampouco gravariam “Asa branca”. Mas Kass jurou – isso saiu no Correio da Manhã e na revista InTerValo já citados – que o grupo iria, sim, gravar um samba!... (Qual seria o “samba” gravado por eles no “White Album”? Há no disco, efetivamente, uma música com nome de pássaro, a linda “Blackbird”, que passa longe da nossa famosa toada/baião...)
Luiz Gonzaga deu, em 1971, uma entrevista a O Pasquim, publicada na edição de agosto. Perguntado por Sérgio Augusto sobre essa história, Gonzaga explicou que havia sido uma brincadeira do Carlos Imperial, que, em seu programa no Canal 13 (TV Rio), “denunciava a semelhança do movimento jovem com a minha música, com o meu xote. Mas ninguém dava bola, ninguém ouvia”. Um dia Imperial soltou a falsa notícia, e o velho sanfoneiro passou a ter visibilidade entre os jovens, como o próprio recordou à Manchete de 02/09/1978: “Quando Imperial inventou que os Beatles haviam gravado ‘Asa branca’, minha pipa subiu pro céu. E subiu violento. Voltei a sentir o sabor da consagração popular quando segurei um festival em Guarapari. (...) E pra meu espanto quando cantei ‘Asa branca’ os hippies gritavam meu nome aos berros. Mais de dois mil, bichinho...”.
Em 1980, o Trio Siridó ressignificou a imagem do pássaro de arribação no baião “Querida asa branca” (do LP “Progresso da mandioca”), onde o animal era responsável por bonitas lembranças de tempos passados. No disco “O homem da terra”, lançado no mesmo ano, Luiz Gonzaga prestou uma homenagem ao Doutor do Baião, que havia falecido em 1979, na faixa “O adeus da asa branca (Tributo a Humberto Teixeira)”, de Dalton Vogeler: “Foi-se embora a asa branca, lá pro céu ela levou / O poeta de alma franca que todo mundo cantou”.
“Asa branca” continua até hoje recebendo dezenas de regravações, e a ave mais famosa da música brasileira segue inspirando novas composições. Foi ainda a personagem principal de um primoroso desenho animado em curta-metragem dirigido por Lula Gonzaga em 1979. “A saga da asa branca”, narrado por Humberto Teixeira em pessoa e com orquestração do maestro Guerra-Peixe, mostra a “grande jornada” – como diz Teixeira no filme – da pombinha Colombina em seu “voo derradeiro” do sertão para a cidade grande. No curta, a asa branca é a personificação do retirante nordestino, que, fugindo do “Sol se incendiando inclemente”, despede-se com tristeza da “terra onde nasceu, amou, viveu”, em busca de uma vida melhor nas cidades do Sul/Sudeste – apenas para encontrar, na maioria das vezes, uma quantidade considerável de preconceito e discriminação.
Foto de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, em 1970, por Antonio Andrade / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS