Grave, seco, sombrio, contido, intenso.
Quando Nora Ney surgiu na música brasileira, em 1951, os adjetivos que distinguiam seu canto dos outros na época estavam mais pra constatação de um estranhamento do que para elogios. Talvez sentissem falta de uma certa exuberância histriônica (no repertório mais animado) ou rasgada (nas românticas). Mas não era, definitivamente, o que Nora oferecia.
Estreante aos 29 anos, estava longe de ser uma caloura. Vivia casada há uma década (numa relação às vésperas de terminar), era mãe de dois filhos e dava expediente como secretária numa escola na Praça da Bandeira. Uma realidade que, se por um lado era incompatível com o viço que se esperava de uma novidade, por outro lado serviu de chão para a densidade que fez dela a voz do samba-canção.
Uma voz que inicialmente se dedicava ao cancioneiro francês e estadunidense, motivo pelo qual começou a carreira como Nora May, pseudônimo inicial que escolheu para o lugar de seu nome de batismo, Iracema de Souza Ferreira. Já cantava na Rádio Tupi (sua primeira emissora, à qual chegou levada por Dick Farney) quando, numa carta, uma fã se dirigiu a ela como Nora Ney – e o erro se transformou em seu nome artístico definitivo.
Cobrindo férias de Aracy de Almeida, seu repertório intercalava gershwins e porters com caymmis e noéis, até que sua interpretação para “Último desejo” chegou aos ouvidos do flautista e bandleader Copinha, que vinha precisado de uma crooner para substituir Carmélia Alves à frente do conjunto que ele dirigia, na boate Meia-Noite, do Copacabana Palace. Estamos no segundo semestre 1951, quando começa, de fato, a carreira de Nora Ney.
Pois foi no Copa que ela foi vista pelo radialista, redator e compositor Haroldo Barbosa, que logo tratou de encaminhá-la para a Nacional, mas com uma condição: que só cantasse músicas brasileiras. Igualmente impressionada com a interpretação de Nora (“É uma diseuse!”), a cantora Marlene foi outra que amofinou o juízo do diretor da Nacional, Victor Costa, para que contratasse a nova star do Copacabana Palace.
Outros encontros decisivos para Nora Ney surgiram de sua plateia na boate grã-fina, como relatou o cronista Sérgio Porto no Diário Carioca (13-07-1952): “Uma noite lá estiveram Fernando Lobo, Antônio Maria e Paulo Soledade”, que “ficaram encantados com sua maneira suave de cantar”. O texto prossegue informando que o trio boêmio foi falar com a cantora: “Queriam que Nora gravasse algumas de suas composições. Ela gostou muito da ideia, mas ponderou que nunca tinha gravado antes um disco.”
Problema resolvido em maio de 1952, quando chegou às lojas o disco de nº 16.573 da Continental, com as primeiríssimas gravações da cantora-sensação daquele momento: no lado A, “Menino grande” (Antônio Maria), e no B, “Quanto tempo faz” (Fernando Lobo e Paulo Soledade). Também de Maria, que até ali não tinha pretensões musicais (embora seu frevo “Recife” já tivesse sido gravado pelo Trio de Ouro em 1951), foi o primeiro grande sucesso de Nora: “Ninguém me ama”, lançado no segundo disco dela, em setembro de 1952.
“Eu não me considero um compositor”, escreveu Antônio Maria em sua coluna A Noite é Grande, no Diário Carioca (16-02-1954). “Sou um camarada que fez um frevo do Recife, um ‘Menino grande’ e um ‘Ninguém me ama’. Se houve sucesso, se vendi mais de 100 mil discos, foi sem querer. E não ganhei só. Ganhou, o público, uma cantora a mais, que se chama Nora Ney.”
“‘Ninguém me ama’ nasceu como o maior samba-canção já escrito até então, e Mário Lago disse que, com ele, Maria inventara o ‘samba de mão no ombro’, em que o cantor parece pedir uma palavra amiga”, escreveu Ruy Castro em “A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção” (2015). Ruy conta que Nat King Cole, quando resolveu gravar o samba em português (1959), foi aprender todas as notas e silabas com Nora: “E não poupou elogios à professora”.
Logo ela ganharia seu primeiro fã-clube (o Canora – Clube dos Admiradores de Nora) e uma coluna na revista Radiolândia, onde os leitores saberiam de tudo um pouco: que Nora calçava 35, vestia manequim 42 e não gostava de cozinhar, bem como de nenhum afazer doméstico. Que costumava passar seu tempo cuidando dos filhos, Hélio e Vera Lúcia, e de suas diletas coleções – de xicaras e selos.
Também contou de sua origem, no bairro carioca de Olaria, onde nasceu há cem anos (20-03-1922), filha da dona-de-casa Maria de Souza Ferreira e do arquivista Dácio Custódio Ferreira. Que cursou o primário no Colégio Moreira e depois estudou na Escola Amaro Cavalcante, de onde saiu com diploma de perita contadora. Informou ainda que era sócia do Sinatra-Farney Fan Club, que não tolerava bebida alcoólica (embora gostasse de cerveja preta) e que preferia os cigarros Hollywood.
“O normal seria eu não fumar, pois isso dá cabo da voz. Mas quem é que tem forças de deixar de ter ao menos um viciozinho?”, confessou num dos textos da coluna (Radiolândia, 10-07-1954), em total coerência com outro grande sucesso de seu repertório, “De cigarro em cigarro” (Luiz Bonfá), lançado em março de 1953. Ambientado na mesma tristeza enfumaçada é outro sucesso daquele ano, “Bar da noite”, com letra de Haroldo Barbosa sobre melodia da compositora Bidu Reis.
Menos sofrido é o lado B desse mesmo disco (lançado em julho de 1953, pela Continental), no qual se ouve a primeira gravação de um sucesso de Mário Lago em parceria com Chocolate – apelido de Dorival Silva: “É tão gostoso seu moço”. Da mesma dupla de compositores Nora gravaria também “Vamos falar de saudade” (1955) e “Se o negócio é sofrer” (1957).
Outros grandes da música brasileira que tiveram suas dores-de-cotovelo pela voz do samba-canção: o expert Lupicínio Rodrigues, com “Aves daninhas” (abril de 1954), e Dorival Caymmi, com o petardo “Só louco” (agosto de 1956). Sem contar o iniciante Tom Jobim, que antes do frescor bossanovista era chegado a tristezas como as de “Solidão” (dele com Alcides Fernandes), que Nora lançou em junho de 1954.
Outros sucessos de seu repertório vieram do cinema: como “Limelight”, de Charles Chaplin, que virou “Luzes da ribalta” na versão João de Barro e Antonio Almeida gravada por Nora Ney em agosto de 1953. E o primeiro rock gravado no Brasil, “Ronda das horas”, como chamaram por aqui “Rock around the clock” (Max Freedman e Jimmy de Knight), que Nora cantou em seu inglês e sobriedade irretocáveis – os brasileiros ainda teriam que esperar um pouco mais para conhecer o tal “ritmo alucinante”.
Do mesmo mês do disco roqueiro de Nora – novembro de 1955 – é outra exceção a seu repertório noir: “Meu lamento”, samba em que ela – soltando a voz como nunca – é acompanhada pelo coro das pastoras de Ataulfo Alves, parceiro de Jacob do Bandolim na composição.
No repertório de Nora Ney também tem lugar para crônicas espirituosas como as de Billy Blanco. Seja no olhar naïf do samba “O morro” (parceria de Billy com Tom Jobim), lançado em disco em agosto de 1955. Ou na crítica “João da Silva”, no qual ela canta – num disco de julho de 1962 – o vaivém de um brasileiro entre as marcas multinacionais que atravessam seu cotidiano.
De suas 74 gravações em discos de 78 rotações, esta última é a que mais se aproxima do posicionamento político que sempre manifestou publicamente. Nora era engajada com as causas sociais e crítica ao capitalismo, o que lhe custou a demissão da Rádio Nacional após o golpe militar de 1964, quando seu nome foi incluído na lista de “subversivos”, assim como o de seu companheiro, o cantor Jorge Goulart.
Casal muito querido no meio radiofônico, Nora e Jorge se uniram no começo da década de 1950, depois que o primeiro casamento dela terminou nas páginas policiais – o comerciário Cleido Maia, com quem estava casada havia dez anos, forçou-a a ingerir 30 comprimidos de tranquilizante, conforme noticiado nos jornais. “Agira com ódio, pois os desentendimentos eram frequentes em sua casa. Só com a morte da artista sentir-se-ia feliz”, informou o Diário de Notícias (04-08-52), um dos muitos periódicos que acompanharam de perto o desenrolar do caso.
O casamento com Jorge Goulart durou meio século (embora oficializado só em 1992) e se desdobrou em muitos shows juntos, como os das caravanas musicais promovidas por Humberto Teixeira, para divulgar a música brasileira no exterior no fim da década de 1950. “Ousaram ao ser os primeiros brasileiros a fazer shows na União Soviética”, informou o obituário da cantora no jornal O Fluminense (29-10-2003). “Juntos percorreram ainda a China e países do leste europeu.”
Nora Ney tinha 81 anos quando faleceu, em 28 de outubro de 2003, no Hospital Samaritano, em Botafogo, após uma década de sucessivas internações em decorrência de dois AVCs, sendo sepultada no cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap. “Foi cantora solitária em nossa música popular”, escreveu Moacyr Andrade no obituário do Jornal do Brasil (29-10-2003). “Absoluta e única no estilo originalíssimo que criou, quase reinventando o samba-canção, ao qual sua fascinante voz grave, admiravelmente emitida, deu uma aura de doce e irresistível fatalidade.”
A cantora “que concentra em sua voz a trilha sonora da noite em algum bar de Copacabana nos anos 1950”, como definiu Zuza Homem de Mello, em seu livro “Copacabana: a trajetória do samba-canção” (2017). “É a voz de Nora Ney, a marca de uma escola que começa e termina com ela.”
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS