“Jorge Ben é o fato mais importante da música popular brasileira desde João Gilberto.”
Assim o crítico Júlio Hungria, do jornal Correio da Manhã, batia o martelo sobre a principal novidade da música popular brasileira naquele ano de 1963: o músico carioca do Rio Comprido que, assim como o baiano de Juazeiro fizera em 1958, propunha um novo jeito de cantar e tocar samba. Também como João, estava longe de ser uma unanimidade, até porque sua música não se parecia com nada do que se fazia na música brasileira. Nem “Garota de Ipanema” (de Tom Jobim e Vinicius de Moraes), nem “Parei na contramão” (de seus amigos Roberto e Erasmo Carlos), só pra citar dois dos maiores sucessos nacionais daquele ano.
Pois a originalidade de não ser uma coisa nem outra – e aproveitar-se de elementos das duas, como roqueiro que era, além de devoto de João Gilberto – foi justamente um dos trunfos do artista que aniversaria neste dia 22 de março, nascido sabe-se lá em que ano. O próprio Jorge conta que é de 1945, mas no início da carreira chegou a dizer que era de 1944. Fora as fontes de referência que cravam 1942 e, mais recentemente, uma certidão de nascimento desencavada pela jornalista Kamille Viola (autora do livro “África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver”) que estabelece o longínquo 1939 como ano de seu nascimento.
Independentemente de sua idade (se 77, 78, 80 ou 83 anos), o fato é que o tal samba até hoje soa jovem. E já soava quando surgiu, lá em julho de 1963, quando saíram suas primeiras gravações, em seu único 78 rotações no site Discografia Brasileira. O disco Philips P-61208-H, que trazia as gravações originais de seus primeiros sucessos. No lado A, o samba “Mas que nada”, e no B, “Por causa de você, menina”. Em ambos, Jorge tem o acompanhamento do Copa 5 – conjunto formado por J.T. Meirelles (no saxofone), Luiz Carlos Vinhas (no piano), Manoel Gusmão (no baixo), Pedro Paulo (no trompete) e Dom Um Romão (na bateria).
O maior sucesso ficou por conta de “Mas que nada”, que o próprio cantor-compositor define como “misto de maracatu” e “samba de preto-velho”, mas na verdade estava mais para a segunda vertente, como devem ter percebido os ouvintes que já conheciam o LP “Tam... Tam... Tam...!”, que a Polydor havia lançado em 1958, com gravações de pontos religiosos e batuques. Na faixa 3 está a provável inspiração de Jorge, o tema de “Nanã Imborô (Candomblé)”, como se pode ouvir no episódio 1 do documentário “Imbatível ao extremo: assim é Jorge Ben Jor”, escrito e apresentado por Paulo da Costa e Silva na Rádio Batuta (ouça aqui a série).
Muito além de uma das raízes fundamentais do samba, a matriz africana estava entre suas referências mais próximas e mais referidas nas primeiras entrevistas que deu à imprensa. Até mesmo o nome artístico que escolheu para o lugar do de batismo – Jorge Duílio Lima de Menezes – tinha a ver com essa raiz. “Meu avô, que era etíope, chamava-se Ben Jorge. Em homenagem a ele inverti o nome”, contou à Revista do Rádio (28-09-1963). “Espero que, quando ganhar um bom dinheiro, tenha a oportunidade de fazer uma viagem ao continente africano.”
A homenagem deve ter amenizado a resistência de sua mãe, a dona-de-casa Sebastiana Saint Ben Lima, chamada por todos de Sílvia. Ela, assim como o pai do rapaz, o estivador e feirante Augusto Menezes, era contra sua carreira artística – ela queria o filho médico pediatra; ele, advogado. Tanto que Jorge já tinha sido projeto de padre (no Seminário São José, onde estudou) e de oficial do exército (no serviço militar), além de despachante, como num contraponto às noitadas roqueiras que ele varava na esquina das Ruas do Mattoso com Haddock Lobo, perto da Praça da Bandeira, experimentando solos de guitarra e vocais com Tim Maia, Erasmo Carlos e outros futuros colegas de carreira.
Destes, foi o primeiro a estourar, com uma nova rotina que, como se lia numa outra reportagem na Revista do Rádio (30-11-1963), logo não daria tempo para seus passatempos favoritos: jogar futebol de areia pelo Atlanta, assistir a filmes de faroeste e cuidar de seus passarinhos – entre eles um curió que era seu preferido. “Vai ser um sacrifício habituar-me com gravata, coisa que bem poucas vezes usei”, disse o jovem artista, que a essa altura ainda se acostumava com a rotina de atração da boate Bottles’, no Beco das Garrafas.
Foi lá que o jornalista e compositor Antonio Maria o viu pela primeira vez, numa noite que virou assunto em sua coluna em O Jornal (08-11-1963): “Seguiu-se o show de Jorge Ben, que, coitado, não canta nada. Suas composições são na base do ‘lá-lá-ê-uá-uá’.” A impaciência era a mesma já demonstrada em outra edição do mesmo periódico (09-10-1963): “Liguei o rádio e Jorge Ben estava cantando, com todos os ‘xx’ da vida, aquele ‘Voxê paxa e não me olha, mas eu olho pra voxê’”, relatou, irônico, o colunista. “De fato, não há a menor razão para se fazer o esforço sibilante de dizer ‘você’ quando, com língua grossa, pode-se dizer perfeitamente ‘voxê’.”
Também colunista de O Jornal, Ary Vasconcellos discordou de Maria: “A verdade é que o ‘voxê’ funciona como bossa e, longe de prejudicar, colaborou muito no seu sucesso”, contrapôs na edição de 15-10-1963, antes de elogiar os vocalises em falsete (“são outra bossa extra do cantor e que funcionam magnificamente”) e o violão: “É gostoso e balança bem a roseira.” “Jorge Ben não é bem: é ótimo”, exaltou Ary, não sem antes criticar os versos de Jorge: “Tem ‘achados excelentes’, mas deveria buscar um parceiro à altura”.
A mesma ressalva foi a que fez Sérgio Bittencourt, de maneira mais enfática. “Jorge Ben é, de fato, um ótimo melodista, com absoluto senso de harmonia e ‘comunicabilidade’ musical. Mas deveria ser proibido pelos amigos de fazer letras”, opinou em sua coluna no mesmo Correio da Manhã (03-10-1963), usando a régua bossanovista ao avaliar “Mas que nada”. “Imaginem um Vinicius partindo desta gostosa exclamação e desenvolvendo, com graça e poesia, o resto!”
Já Claribalte Passos, do mesmo Correio da Manhã (29-09-1963), preferiu apontar para o futuro. “Jorge Ben e sua música, na verdade, vão revolucionar o mundo do disco nacional, em estilo próprio e boa dicção, não sendo um imitador de ninguém”, previu, ciente de que, como novidade, era natural que dividisse opiniões. “Está diante do tribunal do povo e o tempo se encarregará do ‘veredictum’.”
Com o sucesso do 78 rotações, o produtor Armando Pittigliani partiu para o primeiro LP de Jorge, “Samba esquema novo”, que saiu pela Philips dois meses depois – em setembro de 1963 – tendo as duas gravações já lançadas balizando o repertório: “Mas que nada” abrindo o lado A e “Por causa de você, menina” encerrando o lado B daquele disco que entraria para a história também pelo lançamento de outros sucessos como “Balança pema” e “Chove chuva”, muitas vezes regravados por Jorge e outros artistas.
Quanto às primeiras músicas dele, “Mas que nada” tornou-se sucesso obrigatório em seu repertório e também uma das músicas brasileiras mais executadas no exterior a partir de 1966, quando foi lançada nos Estados Unidos numa gravação do pianista Sérgio Mendes com seu conjunto, Brazil 66 (ouça aqui). “Por causa de você, menina” recebeu inúmeras regravações por artistas diversos, entre eles o cantor e guitarrista Bebeto (2002) e cantoras como Leila Pinheiro (1993), Clara Moreno (duas vezes: em 2004 e 2015), e Ivete Sangalo (2016).
Já Jorge seguiria nos anos 1960 transitando com sua popularidade por turmas diversas da música brasileira. Do samba estilizado no “Fino da bossa” às guitarras rivais da “Jovem Guarda” (ambos programas da TV Record) e depois o “Divino maravilhoso”, conduzido pelos tropicalistas na TV Tupi. Em termos fonográficos, lançaria na década seguinte outros LPs muito cultuados, como “A tábua de esmeralda” (1974), “Gil e Jorge: Ogum – Xangô” (com Gilberto Gil, em 1975) e “África Brasil” (1976), entre outros.
Rebatizado como Jorge Benjor (sobrenome artístico depois fragmentado em Ben Jor), entrou na década de 1990 redescoberto por uma nova geração de fãs que o acompanhariam em shows e no lançamento de novos discos e sucessos, como “W/Brasil”, “Engenho de Dentro”, “Ela mora na Pavuna” e “Gostosa”, entre outras jovialidades.
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS