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    Da macumba ao breque, os 120 anos de Moreira da Silva, o malandro trabalhador

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Ninguém na música brasileira foi mais malandro do que Moreira da Silva. Primeiro, porque não houve quem encarnasse o tipo como ele, de chapéu-panamá, terno branco de linho, tiradas na ponta da língua e saraivadas de gírias: dinheiro era bufunfa; sujeito, vargolino; bolso, o buraco do pano; polícia, jungusta; delegado, delerusca... e assim por diante. Segundo, porque malandro mesmo ele nunca foi – órfão de pai desde os dois anos, ainda tinha dez quando virou trabalhador: primeiro numa fábrica de meias, depois numa tecelagem, aí numa fábrica de cigarros e no que mais pudesse contribuir com os ganhos da mãe, a doméstica Pauladina, que tinha também outras duas crianças para sustentar, a primogênita Rosália e a caçula Ruth.

    Entre elas estava Antônio Moreira da Silva, nascido há exatos 120 anos (01-04-1902) na Rua Santo Henrique, hoje Carlos de Vasconcelos, na Tijuca. Se não chegou a conhecer o pai, Bernardino da Silva (trombonista da banda da Polícia Militar), foi tratado como filho pelo padrasto, o manobreiro de bonde Otávio, com o qual conviveu só até os oito anos – sua idade quando ele e a mãe se separaram. Foi aí que, na condição de “homem da casa” (fosse um barraco no Salgueiro, um quartinho na Rua Barão de Mesquita, uma casinha na Penha, no Morro da Babilônia...), logo teve que trocar a escola pelos bicos diversos. Estabilidade mesmo só teve em 1926 (24 anos), quando virou funcionário público da Assistência Municipal, aprovado no teste para motorista de ambulância do Pronto Socorro da Praça da República – atual Hospital Souza Aguiar.

    Pois são justamente dessa época do volante e da sirene as primeiras incursões de Moreira no samba, cantando nas rodas onde era apresentado como “o Mulatinho da Assistência” ou “Antônio Moreira Mulatinho”, como informa Alexandre Augusto na biografia “Moreira da Silva: o último dos malandros” (Sonora Editora, 2013). Numa dessas rodas, no comecinho da década de 1930, foi ouvido pelo compositor e pai-de-santo Getúlio Marinho (apelidado de “Amor”), que o convidou para estrear em disco: em 30/11/1931, lá estava o rapazinho de bigode fino no estúdio da Odeon cantando o ponto “Ererê”, de Getúlio, lançado em disco em 1932. Do mesmo compositor foram as músicas que Moreira lançou na sequência, no mesmo 1932: “Rei de umbanda” e “Era meia-noite”, esta última com um relato sobrenatural:

    Era meia-noite quando o malvado chegou
    Quando o malvado pegou
    Todo mundo ajoelhou
    Todos eles iam dizendo
    Meu Deus do céu que horror

    A história de outro mundo teria se passado numa roda de pernada na Praça Onze, onde absolutamente nenhum dos batuqueiros valentes ficou de pé diante daquele “pretão alto, calado” que “ficou olhando, olhando”, como garantiu o sambista Bucy Moreira em depoimento ao jornalista Francisco Duarte transcrito no livro “Samba de sambar do Estácio”, de Humberto Franceschi (IMS, 2010). Neto da célebre Tia Ciata, Bucy foi um dos muitos personagens com quem Moreira passou a conviver depois que foi morar na Rua Salvador de Sá, nº 66, no mesmo Estácio em que o samba ganhava nova pulsação desde o fim dos anos 1920: de uma cadência “maxixada” para o “samba de sambar”. 

    Outro protagonista de lá era Oswaldo Caetano Vasques, mais conhecido por Baiaco – citado como batuqueiro e malandro em depoimentos dos contemporâneos do Estácio. São assinados por ele outros sambas lançados por Moreira da Silva no mesmo ano de 1932: “Vejo lágrimas” (parceria com o portelense Ventura) e “Arrasta a sandália” (com Aurélio Gomes), este o primeiro sucesso do cantor – ou “um dos maiores clássicos da música popular brasileira”, segundo Nei Lopes no livro “Sambeabá” (Casa da Palavra/Folha Seca, 2003).

    Sucesso ainda maior o cantor conheceria nos carnavais seguintes: no de 1933, foi o intérprete do samba “É batucada” (Caninha e Visconde Bicoíba), vencedor do concurso de músicas carnavalescas da Prefeitura do Rio e que ele mesmo lançou em disco logo depois, em março. Já na folia de 1935 o samba vencedor no concurso foi “Implorar”, sucesso de Moreira assinado por Kid Pepe, Germano Augusto e João da Silva Gaspar. 

    Implorar só a Deus
    Mesmo assim às vezes não sou atendido
    Eu amei e não venci
    Fui um louco, hoje estou arrependido

    A autoria deste samba, aliás, é um caso à parte: o biógrafo de Moreira, Alexandre Augusto, informa que os versos da segunda parte seriam de Orestes Barbosa, cujo nome foi substituído na autoria pelo do motorista português Germano Augusto, amigo de Kid – que por sua vez era pugilista. Já Gaspar, sambista salgueirense, seria o autor da primeira parte, como Kid Pepe disse à imprensa depois de dirigentes da escola de samba Mocidade Louca de São Cristóvão terem ido aos jornais garantindo que “Implorar” era de um compositor da agremiação, o falecido Seda.

    Menos imprecisa é a história de como Moreira da Silva encontrou uma de suas marcas registradas, em abril de 1936, durante uma apresentação no Cine Teatro Méier, na Rua Arquias Cordeiro: ele cantava um samba de Tancredo Silva quando resolveu inserir trechos falados durante as pausas que eram feitas pelo conjunto de acompanhamento. Uma bossa como as que fazia o cantor Luís Barbosa e que Moreira consagrou com o nome de samba de breque – palavra que vinha de “break” (parada ou freio em inglês). Ele gravaria aquele samba, chamado “Jogo proibido”, só em 1953, com seu nome dividindo a autoria com o do verdadeiro compositor – como ele faria em tantos outros sambas. Já em “Jogando com o capeta”, gravado por Moreira em 1958, a co-autoria é de Ribeiro Cunha – proprietário de uma chapelaria no Largo da Carioca que socorria o cantor com dinheiro e, em troca, virava “parceiro”.

    Pois foi durante a consolidação do breque que Moreira começou a assumir de vez a persona do malandro, tanto na própria indumentária quanto nas letras em primeira pessoa que cantava. Como a do samba “No morro de São Carlos” (Hervé Cordovil e Orestes Barbosa), de 1933, que esbarrou na censura do Governo Vargas – ainda antes do Estado Novo – por fazer apologia à vadiagem. Do outro lado da moeda estava o malandro enquadrado, personagem de “Olha o Padilha” (Bruno Gomes, Ferreira Gomes e Moreira da Silva), que foi aprovado pelo próprio “muso”, o delerusca Deraldo Padilha, antes de sair em disco, em julho de 1952. Já o meio-termo talvez esteja em “Não sou mais aquele”, que Moreira assinou com Vespasiano Luz em 1939, contando a história do malandro regenerado (ou quase) que certo dia se vê obrigado “a aplicar uma boa lição num cabra que se diz malandro diplomado”: 

    E ele agora vive aí pelas esquinas
    Discutindo e se batendo tal qual um pardal
    Dizendo que quem disse que eu não era
    Mais aquele se esqueceu que ainda sou “O Tal”

    “O Tal” foi o apelido que recebeu após assinar em 1937 com a Rádio Mayrink Veiga, então dirigida por Cesar Ladeira, criador de epítetos famosos como “A Pequena Notável” (Carmen Miranda), “O Rei da Voz” (Francisco Alves) e “O Cantor das Multidões” (Orlando Silva), entre muitos outros. Com o sucesso na Mayrink – e logo depois na Nacional – Moreira conseguiu manejar sua promoção no hospital: passando de motorista a chefe de núcleo e, depois, encarregado da garagem – função na qual se aposentará em 1958.

    Até lá lançará crônicas divertidas como a de um jogo Brasil x Argentina (“Copa Roca”, que ele assina com Lourival Ramos, em 1943), a de um polígamo bom de conta (“Mil duzentas e noventa e seis mulheres”, com Zé Trindade, em 1953), a do malandro que quer comer fiado (“Chang-lang se queimou”, com José Figueira, 1938) e a de outro, espirituoso, que para cobrar uma dívida transporta-se “em pensamento” para o Polo Norte, como se ouve em “Amigo urso” (Henrique Gonçalez, 1941):

    Eis que de repente vi surgir na minha frente
    Um grande urso, apavorado me senti
    E ao vê-lo caminhando sobre o gelo
    Porque não dizê-lo, foi que me lembrei de ti

    Do outro lado do 78 rotações que trazia a primeira gravação de “Amigo urso” – Victor 34.754 – estava mais uma ótima história em forma de samba, “Esta noite eu tive um sonho”, que Moreira da Silva assina ao lado do compositor de fato da música, o grande Wilson Batista. Outro samba onírico de Wilson no repertório de Moreira é “Acertei no milhar”, maior sucesso da turnê do cantor em Portugal, em 1939, gravado por ele no ano seguinte. Neste, a autoria é assinada também por Geraldo Pereira, outro grande nome do samba, mas que aqui aparece numa jogada (mais uma!) de Morengueira, que diria em tantas entrevistas que deu “uma força” ao amigo.

    Nos anos seguintes, Geraldo contribuiria – de fato – para o repertório do amigo com grandes sambas, como por exemplo dois  lançamentos de 1943: “Voz do morro” (sobre a recém destruída Praça Onze) e “Samba pro concurso” (ambientado na sede da Estação Primeira de Mangueira). Também de Geraldo Pereira é um dos grandes sucessos de Moreira, o samba de breque “Na subida do morro”, que saiu disco em 1952, com versos que hoje estariam sumariamente “cancelados”:

    Na subida do morro me contaram
    Que você bateu na minha nega
    Isto não é direito, bater numa mulher que não é sua
    Deixou a nega quase nua, no meio da rua

    Quando este samba foi feito, em fins da década de 1930, para uma peça teatral que Geraldo criou no morro da Mangueira, a composição esbarrou na censura do Estado Novo, incomodada com a nudez da “nega”. E assim o samba, mais um co-assinado pelo chapeleiro Ribeiro Cunha, saiu com Moreira da Silva dizendo “crua” no lugar de “nua”, para o alívio da boa sociedade da época, que não pareceu se incomodar com os tabefes aplicados na personagem.

    Fechando a galeria de grandes compositores no repertório de Moreira em 78 rotações está Miguel Gustavo, que passou a colaborar com o cantor já nos anos 1960. Jinglista de mão-cheia, são dele os sambas cinematográficos de bangue-bangue que saíram no início daquela década, tendo como protagonista um certo Kid Morengueira: “O rei do gatilho”, lançado em 1962, e “O último dos mohicanos”, de 1963.

    A essa altura a carreira fonográfica de Moreira também contabilizava LPs como o dez polegadas “Moreira da Silva, ‘O Tal’” (Santa Anita, 1955), “O último malandro” (Odeon, 1958) e “Moreira da Silva, o tal malandro” (Odeon, 1962), entre outros. 

    Nas capas, a recorrência do chapéu, do terno branco e referências ao universo da malandragem evidenciam a persona que seguiu com Moreira por toda a carreira. Nas entrevistas sempre bem-humoradas. Em turnês como a do Projeto Pixinguinha, criado pela Funarte em 1977, quando rodou o Brasil na companhia do discípulo Jards Macalé. Na gravação primorosa com que lançou em disco o samba “Homenagem ao malandro” (Chico Buarque), em 1978. E até na era dos CDs, quando foi o decano do disco “Os 3 malandros in concert – Moreira da Silva, Bezerra da Silva e Dicró” (CID, 1995), paródia gaiatíssima dos tenores José Carreras, Plácido Domingo e Luciano Pavarotti.

    “Eu sou o cantor mais antigo do mundo”, assegurava o veteraníssimo malandro nas entrevistas de divulgação desse disco, o derradeiro de sua trajetória, encerrada em 6 de junho de 2000, aos 98 anos, quando faleceu de câncer no Hospital dos Servidores do Estado, onde passou as duas últimas semanas internado, depois de ter se sentido mal em seu apartamento, no Catumbi. “Kid Morengueira fez seu último breque, mas deixou escrito (ou falado) um dos mais interessantes e certamente o mais longo capítulo do samba”, escreveu o jornalista João Pimentel, no obituário do jornal O Globo (07-06-2000).

    Pois aqueles que compareceram ao Teatro João Caetano, onde seu corpo foi velado antes de seguir para a cremação no Caju, encontraram Moreira em seu figurino completo, como informou O Dia (07-06-2000): “terno e chapéu brancos, flor vermelha na lapela e camisa abóbora”, descreve o texto assinado por Mauro Ferreira e João Paulo Arruda, informando ainda que sobre o caixão repousava a bandeira do time de seu coração, o Flamengo. Já o humor peculiar se fez presente no último pedido feito à família – que suas cinzas fossem jogadas na Baía de Guanabara: “Não vou dar confiança das baratas me tocarem! Prefiro a cremação!”

    Foto: IMS / Coleção José Ramos Tinhorão

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