Botar a boca no trombone: expressão corrente que significa abrir o verbo, dizer tudo, dar o recado, o papo reto.
E quem diria que, na música brasileira, o trombone daria seu recado de tantas maneiras diferentes...? Nas gafieiras, nas bandas de música, rodas de choro, blocos de carnaval, conjuntos de samba-jazz e até nas orquestras – populares e de concerto. Desgarrado de sua origem – a Europa do século XV – naturalizou-se brasileiro graças ao talento (e ao suingue) de mestres como Candinho, Esmerino Cardoso, Zezinho, Vantuil de Carvalho, Norato, Raul de Barros, Nelsinho, Raul de Souza, Zé da Velha...
Outro nome obrigatório neste time é o de Astor Silva, trombonista, compositor, arranjador e líder de conjuntos nascido há cem anos – em 10 de maio de 1922 – no bairro do Catumbi, zona norte do Rio de Janeiro. Sem instrumentistas na família ou na vizinhança, já tocava pandeiro e cantava em coral quando, aos dez anos, aprendeu as primeiras notas, nas aulas com Romeu Malta (música) e Djalma Freitas (embocadura).
Não à toa demonstrou desenvoltura no trompete, no bombardino e no trombone tão logo foi matriculado no Instituto João Alfredo – o antigo Asilo dos Meninos Desvalidos, instituição criada 1874, no bairro de Vila Isabel, que formou outros músicos importantes, como o maestro Francisco Braga e os trompetistas (e também maestros) Albertino Pimentel e Paulino Sacramento, além do já citado Candinho e tantos outros.
Como aluno interno do João Alfredo (assim rebatizado em 1910), Astor não só intensificou os estudos musicais como a prática, tocando na banda dos alunos, da qual logo se tornaria maestro, aos 12 anos, atento à batuta de ídolos como os maestros/arranjadores Zacarias e Lírio Panicalli. O jazz seria outra referência importante, saberiam os leitores da Revista do Rádio numa edição de 1956: “Astor é um enamorado da música norte-americana, dizendo que nenhuma outra oferece melhores oportunidades do que ela. Mas não despreza o samba.”
O ecletismo se consolidou logo que começou a trabalhar, ainda na adolescência. “Tinha eu apenas 16 anos quando Luís Americano levou-me para o Dancing Avenida. Depois, o maestro Fon-Fon convidou-me para fazer parte de sua orquestra, que tocava no Cassino Atlântico. Não pude aceitar o convite porque não tinha roupas”, relembrou Astor em 1964, numa entrevista à Revista do Rádio. “Acabei indo mesmo para o Cassino Icaraí, onde permaneci por um ano. Mas veio a lei que determinou o fim do jogo e eu voltei a tocar em um dancing da Cinelândia.”
A proibição dos jogos de azar no Brasil, em 1946, coincidiu também com o início das atividades de Astor na Orquestra Tabajara, que havia chegado ao Rio de Janeiro no ano anterior, contratada pela Rádio Tupi. Criada na segunda metade da década de 1930, em João Pessoa, a Tabajara já era sucesso nos bailes e emissoras de rádio do Nordeste do país, guiada pela batuta do clarinetista e saxofonista pernambucano Severino Araújo. Com ela, rodou o Brasil e viajou à Argentina, ao Uruguai e à França.
Pois foram com a big band de Severino as primeiras das muitas gravações feitas por Astor sem o devido crédito – afinal, na era dos 78 rotações não havia o costume de se fazer ficha técnica dos discos, detalhando os participantes de gravações, ainda mais de conjuntos grandes como a Tabajara. Assim, em muitos casos o ouvinte tinha que supor quem estava tocando em determinado disco, como no lançamento do samba “Escurinho” (Geraldo Pereira), em gravação de Ciro Monteiro, “muito valorizado pelo cantor e pelos acompanhamentos de um bom conjunto, onde salientamos um excelente trombone (possivelmente de Astor)”, como escreveu o crítico Lúcio Rangel na Revista da Música Popular – edição n° 6, de março/abril de 1955.
Já entre as gravações creditadas, as primeiras que saíram são de 1948, quando Astor e Seu Conjunto acompanharam a cantora paulistana Neide Fraga em duas composições de Nelson Trigueiro: o samba “Meu amor partiu” e a marcha “Um pouquinho de amor” (co-assinado por Avaré e Orlando Monelo). Seu nome estamparia os selos de outras 199 gravações lançadas em 78 rotações, entre elas as primeiras de sucessos como os sambas “A fonte secou” (Monsueto, Tuffic Lauar e Marcleo), “Olha o Padilha” (B. Gomes, F. Gomes e Moreira da Silva) e “Vida de rainha” (Alvaiade e Monarco) e as marchinhas “Sassaricando” (Luiz Antônio, Jota Júnior e O. Magalhães) e “A água lava tudo” (Paquito, Romeu Gentil e J. Gonçalves).
A estreia fonográfica como solista se deu em 1951, suingando seu trombone em dois choros de gafieira lançados num mesmo disco do selo Rio: “Dragão dengoso” (Altivo Pinto e Oscar Camelo) e “Comprando barulho” (Djalma Mafra e Neufar). Primeiras das 24 ocorrências de Astor Silva na Discografia Brasileira como solista ou líder de conjunto. Destas, são igualmente dignas de nota o “Chorinho da Nice” (de sua autoria), com acompanhamento da Tabajara, sua versão para a salsa “El bodeguero” (do cubano Richard Egües) e os sambas que gravou em ritmo de charleston: “Maracangalha” (Dorival Caymmi) e “Não tenho lágrimas” (Max Bulhões e M. de Oliveira).
Aqui no site Discografia Brasileira há ainda outras 19 ocorrências do nome de Astor Silva como autor, sendo as primeiras de um mesmo disco de 78 rotações da Continental lançado em 1952, com os choros “Humildemente” e “Cadillac enguiçado”. Em ambos, Astor assina as composições com os parceiros Manoel Araújo e José Leocádio, com quem forma o trio de trombones presente em ambas as gravações, nas quais se ouve também o saxofone de Zé Bodega, apelido de José (irmão de Manoel e Severino) Araújo, seu colega na Tabajara. É, aliás, da famosa orquestra popular a gravação original de sua composição mais conhecida, o “Chorinho na gafieira”, de 1953.
Também de sua lavra são choros como “No melhor da festa”, “Chorinho de boate” e “Sombra e água fresca”, que o próprio trombonista – identificado como “Astor e Seu Conjunto” – lançou pela gravadora Todamérica em meados da década de 1950. Sem contar as cantadas, como o samba “Alta noite”, uma parceria sua com Del Loro (apelido de Lourival Souza) que Jamelão gravou na Sinter em 1954.
Na década de 1960 foi a vez de Astor intensificar sua atuação como músico acompanhante e diretor de conjuntos em gravações de cantores diversos. Assim, tornou-se nome recorrente em discos como os do já citado Jamelão (intérprete de “Linguagem do morro”, de Padeirinho e Ferreira dos Santos), de Lana Bittencourt (com quem gravou o “Poema das mãos”, de Luiz Antonio) e Ciro Monteiro, que em “Quatro loucos num samba” (de Ciro com Mary Monteiro) cita o amigo instrumentista:
Astor no seu trombone, coisa louca...
Grita que também tá nessa boca!
Segundo a crítica especializada de O Jornal (21-01-1962), foi “o melhor orquestrador” de 1961, quando se destacou na Odeon por LPs como “A bossa negra”, de Elza Soares, no qual assina todos os arranjos (ouça aqui), e “Luís Eça & Astor – Cada qual melhor!”, dividindo com o pianista a interpretação de clássicos brasileiros e estadunidenses (clique aqui para ouvir). No ano seguinte, assinou contrato com a gravadora Columbia/CBS, onde foi diretor artístico e seguiu fazendo LPs emblemáticos como “Os Ipanemas”, de 1964 (clique para ouvir).
Já à frente de outro super conjunto, Os Sambistas do Asfalto, gravou dois LPs – em 1960 e 1967 – fazendo jus ao crivo do radialista Walter Silva (o Pica-pau), que numa das crônicas de seu livro “Vou te contar: histórias de música popular brasileira” (Códex, 2002) o define como simplesmente “o melhor arranjador para samba que o Brasil já teve”.
Até sua morte precoce, aos 46 anos incompletos (em 12 de fevereiro de 1968), Astor deixou também gravações históricas com novatos que logo se tornariam grandes sucessos da música popular brasileira. Como Elis Regina, que em 1962 foi acompanhada por “Orquestra / Astor (Direção)” no samba suingado “Um dois três balançou” (Alcir Pires Vermelho e Nazareno de Brito). E Roberto Carlos, que teve sua companhia em diversas gravações de sua fase inicial, entre elas a primeira de “Parei na contramão” (dele com Erasmo Carlos), lançada em fevereiro de 1964.
Um desfecho que, embora aparentemente na contramão dos sambas, marchas e choros que abriram a carreira fonográfica de Astor (lá na década de 1940), se encaixa perfeitamente na trajetória eclética com que deu seu recado – como trombonista e arranjador – na história da música popular brasileira.
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS