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    Brasileira, profissão: cantora. O centenário de Bibi Ferreira, diva do teatro e também da música

    Fernando Krieger

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    Atriz, cantora, bailarina, diretora e apresentadora de TV, Bibi Ferreira será sempre reverenciada como uma das grandes damas do nosso teatro. A artista que nos deixou há pouco tempo, em 13 de fevereiro de 2019, aos 96 anos, e cujo centenário se comemora nesta semana, teve uma ligação intrínseca com a música, arte que permeou toda a sua existência, desde a infância até a maturidade. Compositora bissexta, cantora aclamada, Bibi deslumbrou audiências mundo afora, soltando a voz nos palcos em espetáculos como “Gota d’água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, ou encarnando Edith Piaf e Amália Rodrigues, ou ainda atacando de vedete no teatro de revista – onde debutou quando tinha apenas três anos!

     

    Pode-se dizer que a carreira de Abigail Izquierdo Ferreira, nascida no Rio de Janeiro em 1º de junho de 1922, começou com vinte e poucos dias de vida, quando, substituindo uma boneca que desapareceu nos bastidores da peça “Manhãs de Sol”, de Oduvaldo Vianna – que viria a ser seu padrinho –, entrou em cena no colo da então mulher de Vianna, a atriz Abigail Maia, de quem herdou o nome de batismo e que se tornaria sua madrinha. Situação bastante natural para quem veio ao mundo com DNA artístico: Bibi era filha do lendário ator, diretor e dramaturgo Procópio Ferreira e da atriz e dançarina espanhola (radicada na Argentina) Aída Izquierdo – a pessoa mais importante de sua vida, como declarou inúmeras vezes.

     

    Quando Aída, separada de Procópio, passou a integrar a Companhia Velasco – que excursionava por vários países e esteve no Brasil em 1923 –, resolveu levar a filha nas viagens. Foi nessa época – lembra Neyde Veneziano em “As grandes vedetes do Brasil” (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010) – que se deu a estreia oficial de Bibi no teatro de revista, “aos três anos de idade, em Santiago do Chile, na revista ‘La feria de las hermosas’, na Compañia de Revistas de Gran Espectáculo de Eulogio Velasco, como registra o jornal argentino La Nación”. Em matéria publicada naquele ano de 1925, transcrita no citado livro, o periódico informava que a menina “foi, durante muitos meses, a estrela da companhia de Eulogio Velasco. Saía a cantar e dançar junto à Maria Caballé [obs: uma das estrelas da companhia], e o público a ovacionava, pois fazia todos os seus números com o ritmo e a segurança de uma artista com muitos anos de prática. É um verdadeiro prodígio (...)”.

     

    Segundo a reportagem, Velasco ofereceu aos pais da garota “um contrato que invejaria qualquer primeira figura do seu elenco”. Mas Procópio exigiu a volta da filha ao Brasil. Em abril de 1927, prestes a completar cinco anos, a menina estava novamente no palco, representando o papel de Aidé justamente na peça “Manhãs de Sol”, agora encenada no Teatro Apolo, de São Paulo (conforme anunciavam o Correio Paulistano de 27 e 28/04/1927 e A Gazeta do dia 27), e mais uma vez ao lado da madrinha Abigail Maia. Curiosamente, a já veterana artista mirim faria seu début oficial apenas no ano seguinte: o Correio da Manhã de 27/11/1928, anunciando para aquele dia a dupla encenação (em vesperal e sessão noturna) de uma peça curta de Oduvaldo Vianna, “Folha caída”, no Teatro Trianon, destacava a “estreia da galante menina Bibi Procópio Ferreira”.

     

    Aos treze, Bibi mostrava seus dons musicais nos palcos cariocas, como na “Noite Farroupilha” levada nos salões do Clube Botafogo de Futebol e Regatas, quando apresentou um fox (Gazeta de Notícias, 19/09/1935). Com quatorze, estreava na telona, como lembram João Máximo e Carlos Didier em “Noel Rosa: uma biografia” (Universidade de Brasília: Linha Gráfica Editora, 1990), soltando a voz no filme “Cidade mulher” (de Humberto Mauro, 1936), lançando um samba de Noel Rosa e José Maria de Abreu, “Na Bahia”, que permaneceria praticamente ignorado até sua gravação, em 1983, pelo conjunto Coisas Nossas no LP “Noel Rosa – Inédito e desconhecido”. No caprichoso blog de Bernardo Schmidt há a informação de que a estrelinha também interpretou, na mesma fita, um fox (em inglês) de Raul Roulien e um tango de Heriberto Muraro.

     

    Em 1936, sua voz já ecoava no rádio, de acordo com a Gazeta de Notícias de 29 de dezembro, que colocava seu nome entre as atrações do programa “Hora H”, de Ary Barroso e Paulo Roberto, na Cruzeiro do Sul. A estreia radiofônica oficial da jovem ocorreu no dia 30/06/1937, pelas ondas da Ipanema. O periódico A Batalha chamava atenção para o “recital de canções típicas norte-americanas” de Bibi Procópio Ferreira: “As suas interpretações são invulgares e o seu talento é brilhantíssimo”. Nos dias que se seguiram, a imprensa não poupou elogios à novata de recém-completados 15 anos: “a garota que canta foxs (sic) com um it todo especial” (Gazeta de Notícias, 1º/07/1937); “estupendo recital (...). Os foxes que Bibi cantou ontem (sic) na PRH-8 foram notavelmente interpretados” (A Batalha, 02/07/1937); “Sensação do mês radiofônico” (Vida Doméstica de setembro). Em 1940, Bibi atuou com igual sucesso na Mayrink Veiga.

     

    O Imparcial de 25/09/1940 noticiou a participação do elenco da revista Carioca Cocktail – montada no dia 30 no Municipal do Rio de Janeiro em benefício das vítimas da guerra – no programa “Ondas musicais”, patrocinado pela Liga Brasileira de Eletricidade e transmitido por várias emissoras: “Bibi Ferreira, a talentosa filhinha de Procópio, esteve também muito segura no número ‘Mammie’, de sua autoria”. No espetáculo, estreado no Municipal e reprisado no João Caetano em 5 de outubro, Bibi fez, aos dezoito anos, sua primeira exibição no teatro de revista brasileiro; num dos esquetes de que participou, mostrou a composição, que até hoje permanece desconhecida. Outras criações suas felizmente receberam registros em 78 rotações e, posteriormente, em vinil.

     

    No início de 1941, ainda aos 18, a jovem causou sensação no Teatro Serrador, interpretando a estalajadeira Mirandolina na peça “La locandiera”, de Carlo Goldoni, integrando a Companhia Procópio Ferreira – dali a três anos, ela teria a sua própria companhia teatral. Em vários depoimentos, Bibi considerou esta como a sua verdadeira estreia nos palcos, fazendo raros comentários sobre toda a sua vivência anterior como atriz, bailarina – chegou a estudar, aos sete anos, com Maria Olenewa na escola de dança do Theatro Municipal do Rio de Janeiro – e cantora.

     

    Foi em 1941 que gravou seu primeiro disco, um 78 rpm lançado em agosto pela Columbia com as toadas – compostas pela própria Bibi – “Lá longe na minha terra” e “Fitinha encarnada”. Sua voz madura prenunciava a estrela que ela iria se tornar: estão ali o timbre enérgico e a interpretação vigorosa que marcariam sua carreira musical. No acompanhamento, os violões de dois dos maiores instrumentistas do país (de todos os tempos), Dilermando Reis e Meira (Jayme Florence).

     

    “Bibi Ferreira, que no começo deste ano se revelou a comediante cujo talento diariamente nós não nos cansamos de aplaudir no Serrador, acaba de aparecer em disco Columbia, com o sucesso característico e marcante de todas as suas manifestações artísticas”, escrevia Julio Pires na revista Carioca nº 320, de 22/11/1941. O autor do texto seguiu contando que “Bibi, como a tudo que empresta a sua múltipla e inconfundível sensibilidade, teve, na primeira gravação, a felicidade de, com a personalidade que lhe é nata, apresentar coisa inédita no gênero popular: poema, melodia e interpretação própria”.

     

    Julio Pires afirmava que as duas músicas estavam sendo “bastante tocadas nas vitrolas da cidade” e não poupava elogios: “Melodia simples, sem florilégios musicistas, elas têm o condão de nos fazer pensar, com prazer e emoção, na vida sem artificialismo da gente que vive por este Brasil enfora (sic), por entre as serras e planícies sem fim, gente romântica, singela, vibrante e emocional”. A página da revista trazia a letra de “Fitinha encarnada” e uma fotografia onde Dilermando e Bibi posavam, cada qual empunhando um violão, “momentos antes da gravação” da referida toada.

     

    É também com um violão nas mãos que ela aparece no papel da cabocla brejeira Teresa, cantando “Morena cor de canela” e “Trepa no coqueiro”, ambas de Ari Kerner Veiga de Castro, no filme “O fim do rio” (“The end of the river”, 1947), rodado em Belém do Pará com produção britânica. Sua intimidade com instrumentos musicais vinha da infância, quando aprendeu a tocar também piano e violino.

     

    Bibi cantou e atuou, ao lado da vedetíssima Mara Rúbia, em duas revistas de sucesso de sua companhia, “Escândalos 1950” – obrigada a renascer literalmente das cinzas após um incêndio no Teatro Carlos Gomes que destruiu cenários e figurinos – e “Escândalos 1951”. Do glamour adulto para o universo lúdico e pueril: em 1953, participou de três discos de 78 rpm da Odeon como a narradora de seis contos infantis de autoria de Alfredo Ribeiro (e Lille Reis, segundo informava A Cena Muda de 27/01/1954) musicados por Guari Maciel: “O patinho desobediente”, “A fada do futuro”, “O castelo do mágico Bem”, “A raposa lograda”, “O gavião ambicioso” e “O papagaio invejoso”. Quatro deles – o primeiro, o terceiro e os dois últimos – foram lançados em 1956 no compacto duplo “Histórias da tia Bibi”.

     

    Mudou-se para Portugal neste mesmo 1956, brilhando em várias peças do teatro de revista daquele país. Um recorte de jornal do seu acervo pessoal, mencionado no livro de Neyde Veneziano, fala do êxito que a “vedete bestial” obteve em terras lusitanas: “Lisboa aplaude. Lisboa, sem ciúmes bairristas do verdadeiro mérito, aplaude a brasileira conferindo-lhe o adjetivo supremo de bestial. Bestial é aqui sinônimo de colosso, de maior, de infernal”. Sua atuação como atriz, cantora e bailarina em “Curvas perigosas” entusiasmou o crítico Fernando Ávila, que, no Jornal Diário Popular de 28/09/1957 – citado também por Veneziano –, afirmou: “A vedeta brasileira desdobrou-se nalgumas oito ou nove intervenções e, em todas elas, deixou largamente documentada a versatilidade do seu talento”.

     

    De volta ao Brasil em 1960, tornou-se apresentadora do programa Brasil 60, na recém-inaugurada TV Excelsior, de São Paulo. Mas não ficou longe dos palcos, pelo contrário. “A partir dos anos 1960, quando retorna ao Brasil, a atriz priorizará os musicais, mantendo-se afastada da comédia até 2007”, conta Neyde Veneziano. Vários desses espetáculos seriam registrados em long-playings.

     

    O primeiro LP da artista, “Bibi Ferreira em pessoa”, foi prensado pela Philips em 1961. Com produção de Aloysio de Oliveira e arranjos de Lindolfo Gaya executados pela orquestra de Oswaldo Borba, possui apenas cinco faixas: “Mulher rendeira” (cantada em várias línguas, número que ela já mostrava em 1957 na televisão), “Cronista social” (esquete cômico de Renato Corte Real), a divertida “Operabrás” (onde ela se “recusa” a cantar em língua estrangeira, misturando melodias de óperas com letras de música popular, brincadeira que ela repetiria muitas vezes em seus shows ao vivo) e duas de sua autoria: “Belacap” (parceria com Jean D’Arco e Mário Meira Guimarães), declaração de amor ao Rio de Janeiro, e “O cruzeiro”, “homenagem” à desvalorizada moeda brasileira da época. Em 1962, o selo Carnaval lançou sua última gravação em 78 rotações, a despretensiosa marcha “Parará tchim bum”, de Edaor e Castrinho, que ela cantou ao lado do palhaço Chicharrão (José Carlos Queirolo).

     

    Nas décadas de 1960 a 1980, vieram os discos que eternizariam os musicais estrelados por ela: "Minha querida lady” (“My fair lady”, 1964), “Alô, Dolly!” (“Hello, Dolly!”, 1966), “Gota d’água” (1977) (Bibi apresenta aqui uma versão ao vivo da música-título em 1976) e “Piaf” (1983) (registro do show “Piaf, a vida de uma estrela da canção” – veja aqui uma entrevista concedida por Bibi a Hebe Camargo e várias cenas do espetáculo). Em 1978, dedicou um compacto duplo a um de nossos maiores compositores: “Bibi Ferreira e a música de Chico Buarque de Hollanda”.

     

    O ano de 1990 marcou a estreia de um grande sucesso, “Bibi in concert”, no qual ela passava em revista sua atuação em musicais, e que virou especial da TV Globo em 1992. “Bibi in concert 2”, outro fenômeno de público, estreou em 1994. Em 1998, dirigiu e também protagonizou, ao lado de Gracindo Júnior, a remontagem de “Brasileiro, profissão: esperança” (com texto de seu ex-marido Paulo Pontes e canções de Antônio Maria e Dolores Duran), anteriormente levado aos palcos por Maria Bethânia e Ítalo Rossi (1971) e por Clara Nunes e Paulo Gracindo (1973) – ambas as encenações dirigidas pela própria Bibi Ferreira.

     

    O CD dedicado ao espetáculo de 1998 foi o primeiro dos sete que ela lançou entre este ano e 2019: “Bibi canta Piaf” (gravado ao vivo em 2004 durante o show “Bibi canta e conta Piaf”, também disponível em DVD); “Tango” (2005), interpretando clássicos do gênero, acompanhada pelo piano de Miguel Proença; “Bibi Ferreira brasileira – Uma suíte amorosa” (2011), reunindo pérolas de nossa música popular; “Natal em família” (2012), com diversas participações especiais; “Histórias e canções” (2017), onde ela recria uma parte do repertório que marcou sua extensa e produtiva carreira musical (veja aqui a íntegra do show homônimo, filmado em 2013 no Palácio das Artes, em Belo Horizonte – com Bibi em plena forma, esbanjando plenitude do alto dos seus 90 anos!); e “Bibi Ferreira canta Sinatra” (2019), registro do espetáculo que ela chegou a apresentar duas vezes, em 2013 e 2016, na própria Nova York eternizada por Frank Sinatra.


    Bibi se encontrou pela última vez com seu público em dezembro de 2017, no encerramento da turnê do show autobiográfico “Por toda minha vida”. Aos 95 anos, Bibi Ferreira ainda é o espetáculo quando, inatingível na glória, pisa no palco sagrado, escreveu Mauro Ferreira em crônica de 12/11/2017 para o seu blog no G1. A soberana dos palcos encerrava assim, com muita música, a sua história. A história de uma das artistas mais talentosas que o mundo já conheceu.



    Foto: Coleção Walter Silva / Acervo IMS



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