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    Celly Campello, 80 anos: o broto mais legal da música brasileira!

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    “Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui / Vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim / Puxando o cabelo / Nervoso, querendo ouvir Celly Campello pra não cair / Naquela fossa”

    (Gilberto Gil, “Back in Bahia” – LP “Expresso 2222”, 1972)

     

    A história de Célia Benelli Campello poderia ser contada em poucas linhas: nascida na capital paulista, com cinco ou seis anos estreou como cantora na Rádio Difusora Taubaté, onde seus pais moravam e onde foi criada; estudou piano, violão, balé, inglês e foi campeã de natação; aos 12, apresentava seu próprio programa, na local Rádio Cacique; gravou o primeiro disco aos 15, em São Paulo; aos 16, explodiu como cantora; aos 19, abandonou a carreira no auge para casar com o namorado da adolescência; nas décadas de 1960 e 1970, ensaiou retornos à atividade artística, fazendo shows e gravando LPs; um câncer de mama a levou muito cedo, aos 60 anos, em 04/03/2003. Fim? Não mesmo.

    Pelo contrário: ela foi o começo. Antes de Wanderléa, Rita Lee, Baby (do Brasil) Consuelo, Paula Toller, Cássia Eller – bem antes de Fernanda Takai, Pitty, Érika Martins, Vanessa Krongold e Karina Buhr –, tivemos Celly Campello, que em 18 de junho (ela nasceu exatamente no mesmo dia, mês e ano de sir Paul McCartney) teria feito 80 anos. Primeira rainha do rock no Brasil, o brotinho de lacinhos cor-de-rosa ajudou a consolidar, entre nós, o gênero surgido nos Estados Unidos nos anos 1950 e que aqui chegou já em 1955, com a gravação de “Rock around the clock” por Nora Ney.

    Estávamos na iminência dos anos JK, os “50 anos em 5” – 50 anos de desenvolvimento em 5 de mandato (1956 a 1961) – projetados pelo presidente Juscelino Kubitschek. O país respirava ares de modernização e vivia a expectativa por um salto na economia que beneficiaria toda a população, além da espera pela nova capital federal, que começava a ser construída no Planalto Central. Era um cenário bem diferente do que se veria nos vindouros e tumultuados anos 60. A juventude brasileira da década de 1950 estava mais interessada nos assuntos cotidianos – namoricos às escondidas dos pais, as provas do colégio, grana para milk-shakes e hot-dogs, passeios de lambreta. O recém-criado rock parecia espelhar, em suas letras primordiais, os sonhos, as frustrações e a agitação juvenis – natural, já que seus representantes pertenciam a essa faixa etária.

    Em 1958, Bill Haley e Seus Cometas – os lançadores do seminal “(We’re gonna) Rock around the clock” em 1954 – se apresentaram, entre abril e maio, em programas de TV e casas de espetáculo de São Paulo, do Rio – incluindo o Maracanãzinho – e de Belo Horizonte. Dois ícones da futura Jovem Guarda davam seus primeiros passos: os Golden Boys, grupo criado neste ano, e o adolescente Roberto Carlos, novo crooner da boate Plaza, em Copacabana, com repertório voltado para o samba-canção e a nascente bossa-nova.

    Foi no mesmo ano que, em 11 de abril, a teenager Celinha entrou no estúdio da Odeon em São Paulo para gravar seu primeiro disco, juntamente com seu irmão Sérgio – de nome artístico Tony Campello –, seis anos mais velho. O 78 rotações trazia duas músicas compostas por Mário Gennari Filho, com o próprio na sanfona, e letras em inglês de Celeste Novaes: no lado A, “Handsome boy (Belo rapaz)”, por Celly; no outro, “Forgive me (Perdoa-me)”, com Tony. Em sua estréia fonográfica, a moça antecipava o tipo de repertório que viria a marcar sua trajetória: um rock romântico, meio ingênuo, meio inocente – tal como ela própria –, sem a rebeldia de Chuck Berry, Little Richard, Jerry Lee Lewis, Eddie Cochran, Buddy Holly e outros pioneiros.

    No final de 1958, Celly lançou um disco só seu, cantando novamente em inglês – “Devotion” – e também em português: o samba-canção (o único que gravou) “O céu mudou de cor”. A carreira da menina que sonhava em casar e ter filhos teria terminado aí, não fosse pela insistência de seu principal incentivador. “Eu não teria existido artisticamente se não fosse Tony, meu irmão. Ele é um pouco mais velho, mas sempre fomos muito ligados”, disse à revista Fatos & Fotos de 19/09/1976. Na Manchete de 18 de dezembro do mesmo ano, Ronaldo Heim asseverou: “(...) Tony Campello continuava apostando nela. Ouviu a versão em português de Fred Jorge para ‘Stupid cupid’ de Sedaka e achou que a voz da mana era perfeita para a canção. Insistiu até Celly gravar a música. Foi uma explosão. Cem mil cópias vendidas, programas de rádio e televisão”.

    O disco, gravado em 24/02/1959 e comercializado em março, trazia de um lado “The secret” – mais uma que Celly interpretou com seu inglês impecável – e, do outro, “Estúpido cupido”, responsável pelo primeiro grande estouro da cantora. O rock de Neil Sedaka e Howard Greenfield havia sido lançado em 1958 por Connie Francis, de quem Celly era fã, e somente em 1959 ganhou o registro de Sedaka, seu coautor. Se hoje a versão de Celly para a música continua bastante conhecida, dá para se imaginar o sucesso assombroso que o disco obteve há 63 anos.

    A taubateana Celinha se viu subitamente transformada numa coqueluche juvenil, a sensação brasileira adolescente da época, ombreando com astros internacionais como o próprio Sedaka e Brenda Lee. Celly chegou a conhecer ambos, quando de suas vindas ao Brasil: a Little Miss Dynamite – então com 14 anos –, em setembro de 1959, visitou o Rio e São Paulo, onde tirou fotos ao lado dos irmãos Campello; e em novembro, em festa na casa de um produtor da TV Tupi paulista, Celly recebeu um beijo de Mr. Sedaka (então com 20 anos) em pessoa – beijo bem-comportado, na bochecha, registrado pelos paparazzi da época.

    “Estúpido cupido” saiu em compacto – o primeiro dos quase 30 de sua carreira fonográfica – e deu nome ao primeiro dos sete LPs (sem contar as coletâneas) que lançou entre 1959 e 1976. Os dois outros 78 rotações que Celly gravou ainda em 1959 traziam quatro canções estrangeiras, três delas – dois rocks, “Túnel do amor” e “Lacinhos cor-de-rosa”, e um calipso, “Muito jovem” – vertidas para o português por Fred Jorge. Compositor, novelista, jornalista, escritor, redator de rádio e produtor de rádio e televisão, Fued Jorge Japur (1928-1994) se tornaria um dos principais – talvez o principal – versionista dos primórdios do rock no Brasil.

    “O Fred tinha a propriedade muito interessante de saber compreender o que a garotada queria em termos de letra. E ele fazia as versões muito bem. Ele adaptava evidentemente aos costumes, às coisas que eram nossas. Muitas vezes as letras que ele fazia não tinham nada a ver, ou quase nada a ver, com o original. Ele aproveitava o tema e fazia pra gente. Foi uma pessoa realmente importante”, declarou Tony Campello ao programa Ensaio, da TV Cultura, onde foi entrevistado junto com a irmã Celly em 1995.

    A quarta música, o fox-canção “Tammy”, foi o tema principal do filme de 1957 “Tammy and the bachelor” (no Brasil, “A flor do pântano”), na voz de Debbie Reynolds, que fez um belo registro – mas a interpretação de Celly, na opinião de muita gente, é superior à da estrela de Hollywood (o autor deste texto faz coro). Também em 1959, Celly e Tony tiveram uma discussão feia – mas de mentirinha, na comédia “Jeca Tatu”, estrelada por Amácio Mazzaropi. Os inseparáveis irmãos debutaram na telona cantando “Tempo para amar” (de Mário Gennari Filho e Fred Jorge), com Tony fazendo o papel do mano que não deixava Celly namorar. Mas o país inteiro já namorava com ela, uma das primeiras a carregar o título de “namorada do Brasil”, junto com outras personalidades da época, como a atriz Eliana Macedo, a cantora, atriz e acordeonista Adelaide Chiozzo e a miss Marta Rocha.

    O ano de 1960 começou com outro estouro. O sexto 78 rpm de Celly, gravado em fevereiro e lançado em março, trazia duas versões de Fred Jorge: uma para “Billy” e outra para o rock “Tintarella di Luna”, que a italiana Mina Mazzini havia lançado como single em setembro do ano anterior. Novamente pelas mãos de Fred Jorge, Celly experimentou um sucesso extraordinário com “Banho de Lua” – mais uma deliciosa interpretação, mais um clássico de seu repertório que tem atravessado gerações: “Tomo um banho de Lua / Fico branca como a neve / Se o luar é meu amigo / Censurar ninguém se atreve...”.

    Ainda em 1960, ela gravou mais três discos de 78 rotações, com cinco canções internacionais vertidas para o português por Fred Jorge: “Frankie”, “Não tenho namorado” – aqui o mano Tony faz uma participação especial –, “Mal me quer” e duas natalinas, lançadas em novembro, “Vi mamãe beijar Papai Noel” e a clássica “Jingle Bell rock”. O destaque do período foi “Broto legal”, versão – desta vez não de Fred Jorge, mas de autoria do ator e comediante Renato Corte Real – para “I’m in love”, surgida no ano anterior na voz de Arlene Fontana. O rock recebeu, em 1960, três registros em disco no Brasil: o do grupo paulista The Fellows – que cantou a letra em inglês –, o de Celly e o de Sérgio Murilo, com uma pequena variação: Celly mostrava a paquera do ponto de vista da moça – “E quando ele entrou / O broto logo me olhou / Pra mim sorrindo piscou / E pra dançar então tirou” – e Sérgio, do rapaz – “Eu, logo que entrei / O broto focalizei / Ela olhou, eu pisquei / E pra dançar logo tirei”.

    Broto é a planta no seu estágio inicial de desenvolvimento. Por analogia, a palavra era utilizada na época como sinônimo de gente jovem. A gíria vivia aparecendo nas canções de Celly – ela mesma um brotinho – e também nos títulos dos seus LPs: “Broto certinho” (1960) e “Brotinho encantador” (1961). Outro álbum seu, também de 1960, “A bonequinha que canta”, trazia na capa uma foto da estrelinha com a boneca Celly, fabricada em sua homenagem. Os irmãos Campello voltaram a aparecer no cinema neste ano, novamente num filme de Mazzaropi, “Zé do Periquito”, interpretando “Gostoso mesmo é namorar”, de Heitor Carillo.

    No programa Ensaio de 1995, ao enumerar os muitos prêmios que recebeu na carreira, Celly falou de um que ela considerava especial, concedido pela base militar da Ilha de Ascensão em 1960. Mário Júlio, na Revista do Rádio nº 592, de 21/01/1961, informava: “Oficiais da base norte-americana de foguetes teleguiados, localizada na Ilha Ascension, vieram a São Paulo entregar a Celly Campello o certificado conferindo-lhe o título de ‘A mais popular cantora’, na escolha procedida entre os moradores daquele lugar”. Na TV Cultura, em 1995, ela falou sobre as candidatas: “Entrou Doris Day, entrou Connie Francis, entrou Celly Campello (riu), e Brenda Lee... E eu ganhei com ‘Banho de Lua’”. A inscrição dizia: “The girl whose voice put us in orbit” (“A garota cuja voz nos colocou em órbita”).

    Agenda cheia, shows por todo o país, programas de televisão – inclusive o “Crush em hi-fi”, que ela e Tony apresentavam na Record desde 1959... A caseira Celly provavelmente sonhava com uma vida mais pacata, como daria a entender em depoimentos posteriores. Em 1961 e 1962, ela gravou apenas dois 78 rpm (os LPs já então passavam a tomar conta do mercado). O disco com duas composições de Paul Anka – “Gosto de você, meu bem” (letra em português de Romeu Nunes) e “Hey mama” (na versão de Fred Jorge) – foi lançado em 1961, mesmo ano do álbum que ela dedicou ao compositor: “A graça de Celly e as músicas de Paul Anka”. Eleita rainha pela Revista do Rock – em cuja capa da edição de fevereiro de 1962 aparecia, de faixa e coroa, ao lado do rei Sérgio Murilo –, ela viu, em maio deste ano, seu último 78 rotações chegar às lojas, trazendo mais uma com a assinatura de Fred Jorge, “Canário”, em dueto dos irmãos Campello, e “A lenda da conchinha”.

    Celly saiu de cena neste mês, mais exatamente nos dias 5 (registro civil) e 7 de maio (cerimônia religiosa), para dar lugar à sra. Célia Campello Gomes Chacon, casada com José Edwards Gomes Chacon, seu namorado desde a adolescência. Em entrevista à Radiolândia nº 376, de maio de 1962, feita dias antes do enlace matrimonial, ela confessava: “O sucesso veio a meu encontro, não lutei por ele nem com ninguém em busca dele, exceto o sacrifício imposto pela profissão artística no que respeita a viagens longas e cansativas, ao controle rigoroso dos horários, ao afastamento de casa e do noivo etc. (...) Valerá a pena continuar após o casamento? (...) Ainda permaneço na dúvida. (...) Intuitivamente, entretanto, acho que darei por finda a carreira...”.

    Para espanto dos seus inúmeros fãs, o primeiro grande ídolo do rock da juventude brasileira se aposentava, cedendo o lugar para os novos roqueiros que, na metade da década, inaugurariam um novo movimento musical no país. Do qual ela se recusou a tomar parte, como contou em entrevista ao Pasquim publicada em agosto de 1972: sondada em 1964 para apresentar o programa “Jovem Guarda”, ela – mãe de Cristiane, logo chegaria Eduardo – declinou do convite, abrindo caminho para o trio Roberto-Erasmo-Wanderléa, os anfitriões da atração transmitida pela TV Record entre 1965 e 1968.

    Uma vez rainha, sempre rainha. Ela continuaria até o fim da vida fazendo apresentações esporádicas nos palcos e na TV. Lançou um LP em 1968, “Celly”, que marcava os dez anos de sua primeira gravação e serviria de ensaio para o seu retorno às atividades artísticas. Em 1975, já morando em Campinas, participou do Hollywood Rock no Rio de Janeiro, no estádio de General Severiano, em Botafogo (veja aqui um trecho do documentário “Ritmo alucinante”, com entrevista de Celly e Erasmo Carlos a Scarlet Moon por ocasião do festival).

    Em agosto de 1976, estreou na Rede Globo a telenovela de Mário Prata “Estúpido cupido”, cuja trilha sonora trazia duas gravações originais de Celly, a própria música-título – utilizada na abertura – e “Banho de Lua”. O LP com as canções da novela “vendeu 500 mil exemplares em um mês e meio”, revelou Ronaldo Heim na Manchete de 18/12/1976. O público e a mídia redescobriram a cantora, como contou Heim: “Celly voltou a se sentir ídolo, reconhecida na rua, perseguida pelos fãs, distribuindo autógrafos”. Ela deu diversas entrevistas e até lançou disco naquele ano – seu derradeiro LP, “Celly Campello”.

    Apesar de não ter sido “convidada” para a “Festa de arromba” que Erasmo Carlos promoveu em 1965 – e que citava outros expoentes dos primórdios do rock brasileiro, como Ronnie Cord, Demétrius e o próprio Tony Campello, todos pré-Jovem Guarda –, Celly foi lembrada em 1976 por Rita Lee e Paulo Coelho em “Arrombou a festa”: “Celly Campello quase foi parar na rua / Pois esperavam dela mais que um ‘Banho de Lua’”.

    “Acho que sou meio água com açúcar”, disse ela à Manchete de 18/12/1976. Até podia ser, Celly. Mas mestre Gil, nascido oito dias depois de você, é que estava – sempre está – certo: pra não afundar nessa fossa que o mundo se tornou, nada melhor do que entrar na máquina do tempo, colocar um disco seu na vitrola e, por instantes, imaginar que a vida poderia ser mesmo um “Mar de rosas”...

    Foto: Coleção Walter Silva / Acervo IMS

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