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    ‘Cantando na chuva’: as gravações nacionais das músicas do filme que há 70 anos encanta o Brasil e o mundo

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    Em abril de 1953, a Metro-Goldwin-Mayer (MGM) trouxe ao Brasil, em viagem promocional de suas estrelas de cinema, o ator Carleton Carpenter e as atrizes Pier Angeli e Debbie Reynolds. Esta última, aos 21 anos recém-completados, desfrutava da fama adquirida com o sucesso de “Cantando na chuva”, estreado em março do ano anterior nos Estados Unidos e lançado no Brasil em 30/06/1952. Os artistas ficaram dois dias em São Paulo e seguiram para o Rio de Janeiro, hospedando-se no Hotel Glória. Na semana que passaram na Cidade Maravilhosa, eles se apresentaram em cinemas da Metro, fizeram passeios turísticos e confraternizaram com a classe artística e com os fãs brasileiros (como mostra o bem-documentado blog Memórias Cinematográficas). No dia 13 de abril, durante o baile de gala oferecido aos três no salão do hotel, a simpática Debbie Reynolds – segundo matéria publicada na revista Cinelândia de junho de 1953 – cantou “Singin’ in the rain”, para deleite dos admiradores.

     

     

    A relação do Brasil com “Cantando na chuva” – mais precisamente, com as suas canções – tem início muito antes da visita de Debbie e mesmo do lançamento da fita no país. “O musical dos musicais” faz jus a este título não só por ser um dos mais populares filmes do gênero – e talvez da própria história do cinema –, mas por trazer, em sua trilha sonora, um repertório utilizado em musicais anteriores. Arthur Freed – letrista e produtor que atuou em Hollywood entre as décadas de 1930 e 1950 – pensou em fazer, para a MGM, uma película cuja história fosse baseada em seu catálogo de canções. Nem ele nem os roteiristas Betty Comden e Adolph Green imaginavam que estariam envolvidos na criação de uma lenda.

     

     

    Das 16 músicas mostradas na telona, apenas duas foram compostas para o filme. Freed aparece como coautor em 15, sendo 14 destas em parceria com o compositor Nacio Herb Brown. Sete delas saíram no Brasil – tanto em inglês quanto em suas versões em português – em discos de 78 rotações entre 1929 e 1953, mostrando que os intérpretes nacionais estavam antenados com o que se produzia em Hollywood. Esta conexão entre “Cantando na chuva” e as gravações lançadas em nosso país será mostrada a partir de agora. Preparem a pipoca, o refri, o guarda-chuva e o YouTube, e acomodem-se na poltrona, porque a sessão já vai começar!

     

     

    A história do musical se passa em 1927, ano da transição do cinema mudo para os filmes falados (os talkies, como eram chamados nos Estados Unidos). É a grande estreia da fita (muda) “O patife real”, estrelada por Donald “Don” Lockwood (Gene Kelly, codiretor de “Cantando na chuva” ao lado de Stanley Donen) e Lina Lamont (a espetacular Jean Hagen, “ladra” de cenas do início ao fim). Na entrada do teatro, fazendo um retrospecto de sua carreira, Don Lockwood lembra os tempos do teatro vaudeville ao lado do amigo e parceiro Cosmo Brown (Donald O’Connor, impecável). Aqui é mostrada a primeira música, “Fit as a fiddle”, de Al Hoffman, Al Goodhart e Arthur Freed, cuja gravação original em disco foi feita em 1932 pelos Fred Waring’s Pennsylvanians e um quarteto vocal masculino.

     

     

    Em seguida, há a festa de comemoração na mansão do produtor R. F. Simpson (Millard Mitchell). Os convidados dançam ao som de “Temptation”, primeira das parcerias entre Brown e Freed a aparecer no filme. A canção estreou na telona em “Going Hollywood” (1933): Bing Crosby canta a música enquanto recebe o olhar sedutor de Fifi D’Orsay. Por aqui, foi lançada somente em 1950 por Roberto Inglez e sua orquestra. Em 1952, Ivon Curi mostrou em disco a versão em português feita por ele, “Tentação”.

     

     

    Na mesma festa há a deliciosa cena em que a aspirante a atriz Kathy Selden surge de dentro de um bolo gigante para apresentar, com as coristas do grupo Coconut Grove, “All I do is dream of you” – e Debbie Reynolds, a intérprete da personagem, sai do bolo para entrar definitivamente em nossos corações. A canção, também de Brown e Freed, foi lançada em “Sadie McKee” (1934), onde Gene Raymond canta e toca ukulele para Joan Crawford em mais de uma cena, e recebeu um arranjo muito interessante no filme “Uma noite na ópera” (1935), com o genial Chico Marx e seu jeito bem peculiar de tocar piano. Ainda em 1934, Cândido Botelho lançaria por aqui este megassucesso (que já teve dezenas de regravações mundo afora) com título em português, “Tudo me faz sonhar contigo”, e versos de João de Barro – obviamente o versionista não imaginava que a canção faria parte, 18 anos depois, do famoso filme; portanto, a menção à chuva na letra brasileira – inexistente na original em inglês – é apenas uma super coincidência. Assim como é uma coincidência bizarra a frase musical entoada pela orquestra aos 1’50’’ desta mesma faixa, que remete diretamente às primeiras notas da melodia de “Singin’ in the rain”...

     

     

    “Make ’em laugh”, de Brown e Freed, é uma das duas músicas compostas para o filme, mas não se pode chamá-la exatamente de original, vista que é totalmente inspirada em “Be a clown” (de Cole Porter), cantada por Judy Garland e Gene Kelly em “O pirata” (“The pirate”), de 1948. Agora é o próprio Gene Kelly quem assiste, sentado numa cadeira, à incrível performance de Donald O’Connor. No Brasil, a música ganhou uma versão, “Sempre rir”, muito famosa por ter sido o tema de encerramento do programa de TV do palhaço Bozo nos anos 80 do século passado. (A título de curiosidade, o próprio Bozo gravou sua versão de “Cantando na chuva”.)

     

     

    Lockwood e Lamont estão começando a rodar seu próximo sucesso, “O cavaleiro duelante”, ambientado na época da Revolução Francesa, quando as filmagens são interrompidas por R. F. Simpson devido a um fato inesperado: o tremendo estouro de “O cantor de jazz”, primeiro longa-metragem com falas e canto sincronizados a um disco de acetato. “Cantando na chuva” leva para a ficção os acontecimentos da vida real: o longa protagonizado por Al Jolson de fato revolucionou a indústria cinematográfica, praticamente obrigando as outras produções a seguir o mesmo caminho. Simpson decide fazer de “O cavaleiro duelante” um filme falado.

     

     

    O êxito deste tipo de filme e sua repercussão na imprensa são mostrados numa cena bem curiosa. Após uma sucessão de manchetes – “Revolução em Hollywood”, Estúdios se adaptam aos falados (talkies)”, “Filmes musicais varrem o país” –, há uma montagem com imagens e canções que se alternam freneticamente. São três as músicas da dupla Brown/Freed que fazem parte desse curtíssimo trecho: “I’ve got a feeling you foolin’”, lançada em 1935 no filme “Broadway melody of 1936” por June Knight e Robert Taylor; “The wedding of the painted doll”, cantada nesta sequência por um time de coristas vestidas de soldadas e estreada em 1929 no filme “The Broadway melody”, sobre o qual se falará mais adiante (no mesmo ano, Ghiraldini e sua Orquestra Hotel Esplanada registraram em disco, no Brasil, a sua versão instrumental da música); e “Should I?” (com Wilson Wood ao megafone, fazendo uma imitação do cantor Rudy Vallée), que apareceu originalmente em “Lord Byron of Broadway”, de 1930, na voz de Charles Kaley. O filme não fez sucesso, ao contrário da canção, registrada neste mesmo ano pela soprano carioca Elsie Houston.

     

     

    A agitada sequência leva à calma “Beautiful girl”, de Brown e Freed, interpretada por Jimmy Thompson. Sua estreia ocorreu em 1933, em dose dupla: no filme “Going Hollywood”, na voz de Bing Crosby, e em “Stage mother”, com Sam Ash.

     

     

    “You were meant for me”, outra da dupla Brown/Freed, é apresentada na cena romântica em que Don Lockwood cria, num galpão do estúdio de cinema, o “cenário adequado” – valendo-se de refletores (que criam efeitos de luzes), uma máquina de gelo seco, uma escada e um grande ventilador – para fazer uma declaração de amor a Kathy Selden. Foi originalmente lançada por Charles King em “The Broadway melody” (1929); no mesmo ano, apareceu em “The Hollywood revue of 1929”, cantada por Conrad Nagel, e em “The show of shows”. Também foi utilizada em “Penny serenade”, de 1941, e – claro – no filme homônimo “You were meant for me”, em 1948. No Brasil, recebeu versos em português de Haroldo Barbosa e foi gravada em outubro de 1952 por Diamantina Gomes com o título “Você nasceu para mim”.

     

     

    Para atuar no agora filme falado, Lina e Don passam a receber aulas de dicção. Enquanto a primeira sofre para se adaptar à nova realidade, o segundo tira de letra. Gene Kelly e Donald O’Connor dão mais um show de dança e sapateado no número “Moses supposes”, a segunda das duas composições feitas especialmente para o filme – e a única que não leva a assinatura de Arthur Freed. A letra é baseada num trava-línguas tradicional inglês, adaptado pelos roteiristas Betty Comden e Adolph Green e musicado por Roger Edens.

     

     

    A pré-estreia de “O cavaleiro duelante” é um fracasso. O que era para ser drama vira comédia; o público sai do cinema gargalhando com o desempenho de Lockwood e Lamont, pouco afeitos à nova maneira de atuar. Então Don, Cosmo e Kathy decidem transformar a película num musical, “O cavaleiro dançante”, com Kathy dublando a voz pouquíssimo atraente da estrela Lina Lamont. O trio protagoniza um dos números mais inesquecíveis, dançando e cantando outro clássico da dupla Brown/Freed: “Good morning”, que veio ao mundo em 1939 no filme “Babes in arms”, pelas vozes adolescentes dos inseparáveis Judy Garland e Mickey Rooney, numa interpretação tão deliciosa quanto a do trio Kelly-O’Connor-Reynolds anos depois.

     

     

    Don deixa a amada Kathy em sua casa e sai à noite pelas ruas da cidade. E então chega a cena que se tornaria uma das mais icônicas do cinema mundial. Mesmo quem nunca assistiu ao filme certamente já viu em algum lugar a imagem de um encharcado Gene Kelly pendurado num poste de luz ou sapateando em poças d’água. A história de “Singin’ in the rain”, clássico dos clássicos de Brown e Freed, tem início em “The Hollywood revue of 1929”, o segundo musical produzido pela MGM, com Ukulele Ike (Cliff Edwards) cantando (na chuva, claro) e se acompanhando ao som do instrumento que lhe deu o nome artístico, seguido pelo MGM Chorus e pelas Brox Sisters. A versão mostrada por Ike tem uma segunda parte bastante desconhecida hoje em dia. A música também aparece na cena final. No filme “The divorcee”, de 1930, a canção é executada no início como fundo musical, tocada por uma estação de rádio. Ainda em 1930, foi exibida – com letra em chinês! – na abertura de “The ship from Shangai”.

     

     

    Em “Speak easily”, de 1932, ela é interpretada por Jimmy Durante, que se acompanha ao piano (aos 37 minutos de projeção). Torna a aparecer em “Little Neelie Kelly”, de 1940, mostrada pela sempre adorável Judy Garland. Na TV, serviu como esquete cômico no show de variedades “The Colgate comedy hour”, em dezembro de 1950, onde Dean Martin apresenta a canção e Jerry Lewis providencia a “chuva”, levando o troco e arrancando gargalhadas da plateia – sobra até para o regente da orquestra! Nem mesmo Ol’ Blue Eyes resistiu: em 1951, no seu programa de televisão, Frank Sinatra vestiu o capote e, de guarda-chuva em punho, deu o seu recado. Tudo isso antes de 1952, quando estreou o “musical dos musicais”.

     

     

    A música-tema de “Cantando na chuva” é escutada no filme em três momentos: na abertura, quando passam os créditos, executada num medley com “You are my lucky star”; no memorável número solo de Gene Kelly, que gravou o áudio no dia 05/06/1951 e fez a filmagem em 17 de julho daquele ano; e na emocionante penúltima cena do filme, pouco antes de Lina ser desmascarada e Kathy ser revelada como a verdadeira dona da voz. No Brasil, “Cantando na chuva” – a música – saiu em cinco discos de 78 rotações, interpretada por Nicolas Pascelli (1930), pelo pianista Peter Kreuder (1950), pelo citarista Heitor Avena de Castro (1952), por Diamantina Gomes – que gravou em 1952 a letra em português feita por Haroldo Barbosa – e pelo Sinter Trio (1953). Os registros respeitam a versão original, trazendo a melodia da hoje pouco conhecida segunda parte, aquela cantada em 1929 por Ukulele Ike.

     

     

    “Would you?”, de Brown e Freed, é escutada primeiro no estúdio, onde Kathy está dublando a voz de Lina, e depois na tela grande, quando o resultado final é mostrado. Foi lançada por Jeanette MacDonald no filme “San Francisco” (1936) (no trailer há um trecho da música).

     

     

    O momento mais grandioso e ousado do filme, “The Broadway Rhythm ballet”, dura 13 minutos e também é antológico: trata-se da cena imaginada por Don Lockwood – e narrada por este ao produtor R. F. Simpson – do que seria a parte moderna de “O cavaleiro dançante”. Toda a descrição feita por Don é mostrada ao espectador, num show de canto, dança e sapateado, com dezenas de bailarinos, cenário multicolorido e a presença absolutamente inebriante de Cyd Charisse, que brilha como partner de Gene Kelly na cena do bar clandestino e na da “visão” de Kelly.

     

     

    “The Broadway Rhythm ballet” é, na verdade, um medley de duas composições da dupla Brown e Freed: “The Broadway melody” e “Broadway rhythm”. A canção “The Broadway melody” estreou na película homônima “The Broadway melody” (1929), primeiro musical da MGM, que venceu em 1930 o Oscar de melhor filme e marcou o início da parceria entre o compositor Nacio Herb Brown e o letrista Arthur Freed. Nesta fita ela aparece duas vezes: no início, com o próprio co-autor Nacio Herb Brown ao piano, acompanhando Charles King, e na cena em que o mesmo Charles King se apresenta no palco. Chegou ao Brasil ainda em 1929, pelas vozes de Francisco Alves e I. G. Loyola, ambos cantando, em português, uma letra de autor não identificado.

     

     

    Já “Broadway rhythm” teve seu début em “Broadway melody of 1936” (1935), na elegante interpretação de Frances Langford, que repetiu a dose – utilizando inclusive o mesmo playback – em “Sunkist stars at Palm Springs” (1936) (veja aqui as duas cenas simultaneamente). Em “Broadway melody of 1936”, Eleanor Powell dança ao som da música usando um figurino – cartola e terno de paetês – muito semelhante ao vestido por Carmen e Aurora Miranda no número “Cantores de rádio”, ao final do filme “Alô, alô, Carnaval”, rodado em 1935 – mesmo ano da estreia da fita estadunidense – e lançado em janeiro de 1936.

     

     

    Após a revelação de que Kathy Selden era a verdadeira dona da voz de “O cavaleiro dançante”, ela e Don Lockwood fazem um dueto apaixonado na última canção do filme, “You are my lucky star”, de Brown e Freed, também originária de “Broadway melody of 1936” (1935), onde é mostrada no início, na voz de Frances Langford, e é interpretada, mais para frente, por Eleanor Powell, que canta e dança – duas vezes – tendo a música ao fundo.

     

     

    “Cantando na chuva” é um dos grandes injustiçados do Oscar: Jean Hagen foi indicada a melhor atriz coadjuvante e Lennie Hayton, diretor musical, a melhor pontuação (scoring) de um quadro musical, mas nenhum dos dois ganhou. Em 1986, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas chamou Gene Kelly, Debbie Reynolds e Donald O’Connor – sempre divertido! – para anunciar o vencedor da categoria Melhor Canção Original (Lionel Richie, com “Say you, say me”). Mesmo Gene tendo recebido um Oscar honorário em 1952, e Debbie, o Jean Hersholt Humanitarian Award em 2015, por ter ajudado a fundar, em 1955, a entidade filantrópica The Thalians, de auxílio a pessoas com transtornos mentais – Donald nunca ganhou a estatueta –, é inacreditável que o lendário trio tenha subido ao palco em 1986 apenas para entregar um prêmio, saindo de lá sem um Oscar honorário por sua participação num dos melhores filmes (e o maior musical) de todos os tempos.

     


    Imagem: anúncio publicado em "O Jornal", 02/10/1952, Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional


     

     

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