“Que as expressões ‘baiano’, ‘baianada’ e assemelhados ganharam, na linguagem popular de largos segmentos do Sul do país, conotação que pretende ser ridicularizante e pejorativa, não é segredo nem exagero. A ‘resposta’ das músicas de Gordurinha põe o assunto no seu justo lugar. (...) A face histriônica de Gordurinha, que tanto lhe serviu na vida, nunca foi desprezada. Foi, mesmo, fator básico para a fixação e a popularidade da reivindicação do seu protesto. Essencialmente quando o assunto era Nordeste, quando o assunto era Bahia, baianos.”
(Cid Teixeira no prefácio do livro “Gordurinha: baiano burro nasce morto”, de Roberto Torres)
Compositor, cantor, instrumentista, humorista, produtor musical, radialista, ator, redator, artista de circo... Oxente, quem foi o infeliz que disse que baiano é preguiçoso? Até “O marido da vedete” sabe que “Baiano não é palhaço” e, se você não concorda, “O problema é seu”. Quem afirma é um dos maiores defensores da “Baianada”, Waldeck Artur de Macedo, nascido em 10 de agosto de 1922, há exatos 100 anos, no bairro da Saúde, em Salvador, e que eternizou o seu nome no livro de ouro da música popular brasileira utilizando um apelido bastante singular: Gordurinha.
Em seu balaio – tal como no de Jackson do Pandeiro – cabiam ritmos variados: baião, samba, coco, marcha, rojão e até tango. Ótimo cantor e excelente compositor, também teve atuação destacada como humorista, profissão forjada no picadeiro, seu primeiro palco, e sobretudo nas emissoras de rádio país afora. Muitas vezes usou o humor nas suas músicas como arma para denunciar o desrespeito aos nordestinos, que sofriam/sofrem preconceito e discriminação no Sudeste e no Sul, obrigados a engolir piadas e gozações de todo o tipo: “Só porque sou da Bahia, tu zombava, tu dizia que eu sou pau de arara”, reclamou em “Baiano da Guanabara”.
Outras vezes falou mais sério, ao tratar de assuntos como o êxodo dos retirantes e as secas (e inundações) que assolavam seu Nordeste natal, como em “Pedido a padre Cícero”: “O mato era verde, tá seco, danado / Tá esturricado e nada mais deu / Até a esperança, que dizem que é verde / Nem isso escapou, também já morreu”... Ou em “Perigo de morte”: “Quando há seca, é o gado que morre, é o povo que corre com medo que torre todo o sertão / Mas, se um dia a chuva desaba, parece castigo e tudo se acaba na inundação”.
O filho de um militar e de uma professora primária desde cedo mostrou vocação para não estudar. Gostava era de fazer poemas. Aos 16 para 17 anos, já cantava e tocava violão. Foi quando estreou na Rádio Sociedade da Bahia – PRA-4 – num conjunto vocal amador, Caídos do Céu. Em sua peregrinação pelas rádios soteropolitanas, conheceu o compositor e humorista Dulphe Cruz, que o convidou para formar uma dupla. Nascia aí o comediante que mais tarde faria muito sucesso até no Rio de Janeiro, então capital federal.
Dali para o circo foi um salto, ou uma pirueta. Com 19 anos, Waldeck conheceu o palhaço, trapezista e ator Joval Rios (Joval Angélico Pereira), em cuja companhia, a trupe Versalhes, começou a trabalhar como cantor e violonista – mas em pouco tempo já se destacava também como apresentador e ator. Praticamente “O dono do circo”. Foi uma verdadeira escola para o jovem, que desenvolveu a arte de entreter o público e aperfeiçoou sua verve cômica, atuando ao lado do palhaço Zebedeu (o próprio Joval). Foi este quem teve a ideia de rebatizar o parceiro: Waldeck Macedo era nome pomposo demais para o picadeiro. Um dia, ao ver o amigo – extremamente magro – tendo um ataque de asma, sem camisa, Joval exclamou num rompante: Gordurinha!
Na mesma época, o moço começou a mostrar suas primeiras composições, como o samba “Produto nacional”, feito para a mulher de Joval, Leda Rios (Durvalina Feitosa), cantar nos espetáculos. Nunca gravado, sua letra foi publicada na biografia “Gordurinha: baiano burro nasce morto” (Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2009), de Roberto Torres.
Aos 21 anos, Waldeck chegou a desistir da carreira artística para se casar com Vandete Osório de Araújo, a Detinha, que conhecera no ano anterior, quando a trupe Versalhes passou por Vila da Pedra (futura Delmiro Gouveia), em Alagoas. Trocou o picadeiro pelo altar em 24 de fevereiro de 1944 e passou a bater ponto no setor de contabilidade da Companhia Fabril Mercantil, onde trabalhava seu sogro. Demitido em 1947, um ano e meio após o nascimento da primeira filha, retomou a vida artística, apresentando-se em programas de rádios em Maceió, em Salvador e no Recife, onde foi residir.
“Vim da Bahia pro Rio de Janeiro pra ganhar dinheiro, desaforo não / Pau de arara é a vovozinha, eu só viajo é de avião”. Vencer no Rio de Janeiro era um sonho pessoal. E não foi fácil. Segundo contou em entrevista à Revista do Rádio de 21/09/1963, sua primeira viagem à capital federal foi em 1948. Almejava trabalhar na Rádio Tupi, cujo diretor artístico era Antônio Maria, mas acabou conseguindo um contrato na Rádio Clube (mais tarde Mundial) que “só dava mesmo para pagar a pensão”. Voltou então para a capital pernambucana, para atuar na Rádio Jornal do Commercio e depois na Tamandaré.
A segunda tentativa foi em 1953, através de Victor Costa, diretor geral da poderosa Rádio Nacional. “Mãe! Tô na Guanabara! Não sou mais pau de arara! (...) Eu queria voltar pra Maceió, mas eu fico no Rio que é melhor!”, cantaria anos depois o Trio Nordestino em “Carta a Maceió”, espécie de “baião de breque” de Gordurinha – cuja carreira de comediante novamente não deslanchou na Cidade Maravilhosa. Em 1954, seguiu para São Paulo, batendo ponto nas emissoras criadas por Victor Costa: rádios Excelsior e Nacional de SP e TV Paulista.
Lá o compositor desabrochou. Em 1946, seu samba “Flora”, parceria com Osvaldo França, já tinha sido lançado pelos Vagalumes do Luar. A partir de 1954, com o baião “Quero me casar” na voz de Jorge Veiga, Gordurinha começa a se estabelecer como um dos pilares da música nordestina – curiosamente, foi nessa época (1955/56) que se separou de Detinha, assumindo seu romance com Eloide Warthon.
Debutou como cantor em agosto de 1955, gravando em duo com Léo Vilar – crooner dos Anjos do Inferno – um 78 rotações para a Continental com dois cocos seus, feitos em parceria com João Grimaldi: “São Paulo x Rio” e “Faroleiro”. O disco, no entanto, só seria lançado em fevereiro de 1956; portanto, sua estreia oficial acabou sendo em novembro de 1955, com o samba “Sonhei com você” (de Roberto Martins e Mário Vieira) e a marcha “Soldado da rainha” (dele com João Grimaldi), ambas registradas em estúdio em setembro de 1955, também em dupla. Gordurinha e Léo Vilar excursionaram com sucesso neste mesmo ano por diversos estados do Norte e do Nordeste.
Após o fim da dupla, participou, com Valter de Lima e José Nazareno, do Trio Nacional, perpetuado num 78 rotações de 1956 contendo “Agora é tarde” e “Quixeramobim”. Trocou, em 1957, a Nacional paulista pela Tupi carioca. Ali, passou a fazer dupla com seu conterrâneo Mário Tupinambá, o eterno Bertoldo Brecha da Escolinha do Professor Raimundo. Em 1959, ambos gravaram, em disco Continental, um dos grandes sucessos da carreira de Gordurinha, que Luiz Wanderley havia lançado pouco antes: “Baiano burro nasce morto”. Gordurinha aqui rebate um dos maiores estereótipos contra os nordestinos – “Cabeça grande é sinal de inteligência / Eu agradeço à Providência ter nascido lá” – e homenageia baianos ilustres: Castro Alves, a miss Martha Rocha e Rui Barbosa. Os comediantes voltaram a interpretar a música numa cena do filme “Titio não é sopa”, de 1960.
“Quem ouve as piadas do Gordurinha pelo rádio, suas gargalhadas loucas, seus ditos jocosos, há de imaginar que o rapazinho, em casa, também faça das suas. De nossa parte, sabemos não seria possível. Via de regra o humorista é um homem triste, caladão, introspectivo”, dizia a matéria do Jornal das Moças de 30/10/1958. Sua vida pessoal contrastava com o tipo engraçado que interpretava nos discos e no rádio. Como conta Roberto Torres em seu livro, Waldeck havia perdido em 1952 duas filhas gêmeas com meses de idade. Por causa da vida artística, dava pouca ou quase nenhuma atenção à família. Após a separação, deixou Detinha e os filhos desamparados, sem ajuda financeira; eles chegaram a passar fome e morar na rua em São Paulo. Seu filho Walmir viria a falecer em 1961, aos 13 anos, após várias passagens pelo Juizado de Menores. A relação com Eloide – com quem também teve duas filhas gêmeas – iria terminar neste mesmo ano.
Como compositor, também revelaria seu lado mais sério, sobretudo quando tratasse de temas importantes, como a situação precária dos estudantes, retratada em “Carta de ABC”, de 1962: “A blusinha remendada, bem velhinha, amarrotada, e calças que nem têm cor / Dizem que a vida é uma comédia, mas a dele é uma tragédia, e desconhece o autor (...) / Sem merenda e sem recreio, sem direito a ter um meio, o João nasceu no fim”. Ao expor as mazelas dos nordestinos, falava com conhecimento de causa. “Vendedor de caranguejo” tornou-se um hit em 1958 nas vozes do grupo Os Cancioneiros e de Ari Lobo: “Eu perdi a mocidade com os pé sujo de lama / Eu fiquei anarfabeto, mas meus fio criô fama”.
Gordurinha cantou não só a seca do Nordeste, mas também a chuva devastadora que, após um período de estiagem, chegou sem avisar, fazendo transbordar a barragem do açude de Orós, no Ceará. Dona de uma das melodias mais bonitas de sua obra, “Súplica cearense” (1960) foi composta em parceria com o sanfoneiro Nelinho e traz versos inspirados e pungentes: “Ó Deus, perdoe esse pobre coitado / Que de joelhos rezou um bocado pedindo pra chuva cair sem parar / Ó Deus, será que o Senhor se zangou / E só por isso o Sol retirou, fazendo cair toda a chuva que há?”. Na letra, o sertanejo ainda se penitencia pela própria desgraça: “Ó Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe / E eu acho que a culpa foi desse pobre que nem sabe fazer oração”.
1958 marca o nascimento de um clássico dos clássicos da MPB: ao mesmo tempo em que critica a invasão estrangeira na música brasileira, “Chiclete com banana” promove o encontro desta com o bebop estadunidense. A ideia partiu de Gordurinha, que a levou a Jackson do Pandeiro e Almira Castilho. No livro “Jackson do Pandeiro: o Rei do Ritmo”, de Fernando Moura e Antônio Vicente (São Paulo: Ed. 34, 2001), Almira explica por que o samba, apesar de feito a seis mãos, foi creditado apenas a ela e Gordurinha: “Eu não podia assinar composição com Jackson. Ele era da UBC e eu da SBACEM [OBS: Associações de gestão e distribuição de direitos autorais]. Como tudo o que fazíamos era em conjunto, quando aparecia algum parceiro, ora registrava ele, ora eu, dependendo da sociedade do camarada. (...) No caso de ‘Chiclete com banana’, a criação foi coletiva. Os três participaram diretamente, mas só dois podiam assinar”.
Gordurinha e Jackson haviam se conhecido no início da década de 1950 no Recife. O paraibano gravaria, em 1958, “Meu enxoval”, parceria de Gordurinha e Almira (sob o pseudônimo “José Gomes”, nome verdadeiro de Jackson), e, em 1959, “Chiclete com banana”, que o próprio Gordurinha também registrou em disco no mesmo ano. Mas a primazia do seu lançamento não foi nem de um nem de outro, e sim de Odete Amaral, num 78 rotações lançado em maio de 1958 e pouquíssimo badalado na época. Foi a versão de Jackson que levou a composição – a primeira a falar de “samba-rock” na música brasileira – ao triunfo.
Outro sucesso estrondoso, bastante executado nas rádios quando foi lançado em 1960, o “Mambo da Cantareira” (que ele compôs em parceria com Barbosa da Silva, dando o crédito a Eloide Warthon) retrata, de maneira bem-humorada, o sofrido deslocamento casa-trabalho-casa feito cotidianamente pela classe operária: “Só vendo como é que dói / Só vendo mesmo como é que dói / Trabalhar em Madureira, viajar na Cantareira e morar em Niterói”... Chegou a ser cantado, como lembra Roberto Torres, durante uma greve dos trabalhadores das velhas barcas da Companhia Cantareira que promoviam a travessia Rio-Niterói pela Baía de Guanabara.
A Bossa Nova entrou na crônica afiada do “baiano escolado, adiantado”: sua “Bossa quase nova”, de 1961, tem um quê de Juca Chaves – ou este é que teria algo de Gordurinha? Em 1963, ele lançou seu último disco de 78 rotações, interpretando a desesperançosa “Nordeste sangrento”, de Elias Soares, e “Cinquenta megatons”. Foi nesta década que trabalhou como produtor musical da gravadora Copacabana, onde o Trio Nordestino, descoberto por ele, gravou seus primeiros long-playings. Neste período, o baiano lançou os cinco LPs de sua carreira: “Gordurinha tá na praça” (1960), “Mamãe! Estou agradando” (1961), “A bossa do Gordurinha” (1962), “Gordurinha... Um espetáculo!” (1963) e “Gordurinha” (1969).
Tendo lançado músicas com teor de crítica política – como “Não entendi bulufas” e “De trás pra frente” –, Gordurinha, segundo Roberto Torres, “sentiu que a coisa iria ficar feia” quando eclodiu o golpe militar em 1964: “No Rio de Janeiro, as portas começaram a se fechar e seus passos passaram a ser acompanhados de perto por agentes dos órgãos de segurança. Dono de uma obra politicamente participante, ele era um artista incômodo”. Acabou fazendo as malas e retornando para o Recife com a então companheira, a ex-dançarina circense Shirley de Torres. Voltou às origens, ao circo, apresentando-se como palhaço, atuando ainda em cinemas e clubes. “Foram tempos de obscuridade, tempos de dureza”, escreve Torres.
Conseguiu o cargo de diretor artístico da Rádio Clube de Pernambuco, mas um infarto o levou de volta ao Rio, onde gravou seu último LP, “Gordurinha”, recheado de melancolia. Com problemas de saúde, chegou a pesar mais de 100 quilos. “A pretexto de aliviar o sofrimento das constantes crises de asma, que o seguira por toda a vida, Gordurinha se viciara em injeções de morfina, que ele próprio se aplicava em doses cada vez maiores”, revela Torres, acrescentando que o vício existia desde meados dos anos 1960. No dia 16 de janeiro de 1969, ele tomou a última injeção. Minutos depois, um infarto fulminante provocado por overdose tiraria a sua vida, aos 46 anos.
Autor de “Oito da Conceição”, que retrata a celebração de Nossa Senhora da Conceição da Praia no dia 8 de dezembro na sua Salvador natal, Gordurinha teria ficado feliz com a reportagem publicada no jornal O Globo do dia seguinte à sua morte, sobre a lavagem das escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim. O título da matéria afirmava: “Festa de Bonfim foi a maior de todos os tempos”. Ficaria igualmente feliz ao saber que suas músicas, nas décadas seguintes, continuariam sendo redescobertas, cantadas, reverenciadas – e talvez se surpreendesse ao escutar a versão drum’n bass de Karla Sabah para “Chiclete com banana”: Tio Sam de frigideira numa batida eletrônica brasileira!
Na foto, Gordurinha / Fonte: Internet