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    Nelson Gonçalves e o sucesso, um encontro inaugurado há 80 anos, em ritmo de fox

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Antes de ser artista, Nelson Gonçalves já tinha tentado de tudo. De pugilista a garçom, de engraxate a leão-de-chácara, além de guia de deficientes visuais – ganha-pão na infância, em São Paulo, onde vivia desde 1921, quando, aos dois anos de idade, mudou-se com a família de sua cidade natal, Santana do Livramento (RS), na fronteira com o Uruguai. Já crescido, quando decidiu ser cantor e partiu para o Rio de Janeiro, no fim da década de 1930, sua caminhada seguiu aos tropeços. Tanto nas emissoras de rádio, onde invariavelmente era gongado nos programas de calouros – o temido Ary Barroso chegou a sugerir que voltasse a ser garçom. Quanto nos primeiros discos, que começou a fazer na Victor, a partir do último trimestre de 1941, lançando sambas e valsas que passaram em brancas nuvens, sem alterar sua rotina de dureza, entre quartos de pensões, cortiços e empadinhas que serviam de almoço.

    Até que veio agosto de 1942 e Nelson conheceu o sucesso em ritmo de fox – o gênero musical surgido nos Estados Unidos em meados dos anos 1910 e que pegou por aqui nas décadas seguintes, graças aos discos e filmes que vinham de lá. A virada do nosso já então ex-pugilista veio há exatos 80 anos, com o lançamento de um clássico do repertório romântico: “Renúncia”, composição do carioca Roberto Martins (1909-1992) com o petropolitano Mário Rossi (1911-1981). Ambos trabalhavam como guardas civis, mas volta e meia davam seu jeito de se encontrar para compor – são deles outros sucessos como o samba “Beija-me” (1943), a marchinha “Roberta” (deles com Roberto Roberti, 1943) e a valsa “Bodas de prata” (1945).

    “E o curioso é que Nelson não estava interessado em ‘Renúncia’, só a gravando em cumprimento a uma determinação de Vitório Lattari, diretor da Victor”, contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no livro “A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras – vol. 1” (Editora 34, 1997), antes de trazerem uma história de bastidores do que se passou no dia 27 de maio de 1942, quando “Renúncia” foi gravado. “Por isso chegou ao estúdio sem conhecer a melodia. Temendo que ele errasse na gravação, a ser realizada após breve ensaio, Roberto Martins gratificou o saxofonista Luís Americano para que antecedesse a entrada do cantor com um solo do tema.”

    Nelson Gonçalves aprendeu a melodia e se integrou perfeitamente ao arranjo – com direito a um solo murmurado (em bocca chiusa) no trecho instrumental, a exemplo do que seu ídolo Orlando Silva fizera em 1938, ao lançar outro fox de sucesso, “Nada além” (Custódio Mesquita e Mário Lago). Além de Luís Americano no sax alto, o conjunto que acompanhou Nelson na gravação inaugural do fox de Roberto Martins e Mário Rossi tinha Carolina Cardoso de Menezes no piano, Garoto no violão-tenor, Faria no contrabaixo e Duca na bateria – a escalação (tão rara em gravações antigas) é outra informação preciosa do livro “A canção no tempo”.

    A própria gravadora Victor era outra que, aparentemente, não depositava tantas fichas no sucesso de “Renúncia”, que acabou saindo no lado B do disco de 78 rpm que chegou às lojas de música naquele agosto de 1942. Na outra face – tradicionalmente destinada à principal aposta do disco – estava Nelson cantando “Isso aqui tem dono”, samba patriótico de Benedito Lacerda e Darci de Oliveira que, embora ambientado no principal tema da época (a Segunda Guerra Mundial), não faria tanto furor quanto o fox. Mas o fato é que o disco agradou: um “autêntico hit” deste “cantor que conquista brilhantemente o estrelato da música brasileira”, como definiu Scylla Gusmão na edição de 15-08-1942 da revista Fon Fon.

    O elogio seria ratificado dali a alguns meses no jornal A Manhã (16-05-1943), que classificava Nelson como “o cantor de mais rápida carreira no país, tendo se firmado definitivamente na consagração popular com o seu recente e retumbante sucesso com a interpretação do fox ‘Renúncia’”. No livro “Os reis da voz” (Casa da Palavra, 2013), o autor Ronaldo Conde Aguiar informa que o disco vendeu mais de cem mil cópias e o sucesso da música, relançada em ritmo de samba no carnaval de 1943, fez de Nelson crooner do Copacabana Palace. Agora, além dos 600 mil réis que recebia da Rádio Mayrink Veiga pelo programa fixo na emissora, passaram a entrar todo mês 9 contos de réis: uma bolada que fez com que ele pudesse levar a família – a companheira, Elvira, e os filhos Marilene e Nelson – para morar pertinho do mar, na Rua Gustavo Sampaio, no Leme.

    O conforto familiar, no entanto, duraria pouco: após a separação, a vida pessoal de Nelson passaria por turbulências sucessivas, sempre fartamente noticiadas na imprensa. Nas páginas de jornais e revistas alternavam-se notas sobre sua vida amorosa, o vício em cocaína e até uma detenção, em 1966, acusado de tráfico de entorpecentes. Tratou-se e, já nos anos 1970, voltou aos palcos e às gravações, que se seguiram até a década de 1990, quando continuou somando números a sua impressionante discografia: ao todo, foram lançados 128 LPs e cerca de 300 compactos.

    Já em 78 rotações, foram 316 as gravações de Nelson Gonçalves. Entre elas estão sucessos que se seguiram a “Renúncia”, como “Maria Betânia” (Capiba, 1945), “Espanhola” (Benedito Lacerda e Haroldo Lobo, 1946), “Normalista” (Benedito Lacerda e David Nasser, 1949), “Serpentina” (Haroldo Lobo e David Nasser, 1950), “A camisola do dia” (Herivelto Martins e David Nasser, 1953), “Carlos Gardel” (Herivelto Martins e David Nasser, 1954), “Meu vício é você” (Adelino Moreira, 1955), “Vermelho 27” (Herivelto Martins e David Nasser, 1956), “História da Lapa” (Wilson Batista e Jorge de Castro, 1957), “Nega manhosa” (Herivelto Martins, 1957), “A volta do boêmio” (Adelino Moreira, 1957) e “Fica comigo esta noite” (Adelino Moreira e Nelson Gonçalves, 1961), entre outras.

    Quando faleceu, em 18 de abril de 1998, a dois meses de completar 79 anos, foi lembrado não só pelos sucessos e pelo vozeirão, como também por suas vendagens – com 38 discos de ouro e 20 de platina, era simplesmente o segundo recordista de discos vendidos na música brasileira, atrás apenas do imbatível Roberto Carlos.

    Foto: Coleção Humberto Franceschi / Acervo IMS

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