O Diário de Notícias chegou às bancas informando que “Dalva não canta mais”, enquanto O Jornal estampou que havia “Outra Dalva no céu”. Já os leitores do Correio da Manhã souberam que “Morreu Dalva, a única”, enquanto o Jornal do Brasil trouxe a notícia no título: “Dalva de Oliveira morre após sofrer hemorragias e é velada no João Caetano”.
De uma maneira ou de outra, o que se viu nas bancas de jornal em 31 de agosto de 1972 foi mais do que a principal notícia da véspera. A morte de Dalva de Oliveira, há 50 anos, causou comoção nacional – e não só por ser a despedida de uma das maiores cantoras de seu tempo, aos 55 anos. Dalva era notícia acompanhada de perto desde seus primeiros sucessos, no início da década de 1940, passando pelo casamento com Herivelto Martins e os rumos artísticos e afetivos que tomou após a separação ruidosa entre eles, já nos anos 1950.
Mais recentemente, fãs vinham atentos às notícias médicas, como se pôde ler no Correio da Manhã daquele 31 de agosto. “Há oitenta dias ela foi internada às pressas, vítima de hemorragias internas. Sairia aparentemente recuperada, dentro de um mês, e dez dias depois ocorreu uma nova sucessão de hemorragias nas varizes surgidas no esôfago”, noticiou o impresso, informando em seguida que Dalva teve o baço extraído numa cirurgia, mas seguiu “à base de transfusões de sangue”.
Até que o quadro se agravou, como contou o Correio da Manhã: “Na madrugada de ontem, seus assistentes foram surpreendidos por uma sucessão maior de rupturas internas das varizes. A partir das 3 horas, ficaram conscientes de que nada mais poderia ser feito clinicamente para salvá-la”, relatou o diário. “Ao contrário das vezes anteriores em que entrou em crise aguda, Dalva de Oliveira não perdeu a lucidez. Pediu aos médicos que reunissem seus filhos. Estava consciente de sua morte muito próxima.”
“Dalva morreu lúcida no apartamento 304 da casa de saúde, ao lado dos filhos Peri, Ubiratã, Dalva Lúcia (que chegou segunda-feira da Argentina), das irmãs Margarida, Nair, Lila e da mãe, Dona Aída”, informou O Jornal de 31 de agosto. “Logo após seu falecimento – 17h15 de ontem – milhares de pessoas acorreram à Casa de Saúde Arnaldo de Moraes, em Copacabana.” “Hermínio Bello de Carvalho, Leni Andrade, Paulo Silvino, Aldacir Louro, José Ricardo, Valéria e Noel Carlos foram os primeiros artistas a chegar na casa de saúde”, como informou o Correio da Manhã. “De lá, foi transportada para o Teatro João Caetano, onde se iniciou o velório.”
Villa-Lobos e JK no fã-clube
“Villa-Lobos a considerava a maior cantora popular brasileira. Juscelino Kubitschek telefonou certa vez de Paris para o Hospital Miguel Couto, onde ela estava internada após um acidente de trânsito”, assinalou o Jornal do Brasil (31-08-72). “Na década de 50, muitas vezes o caminho do sucesso dependia da capacidade de assimilar seu estilo – como aconteceu, por exemplo, com Ângela Maria.”
“A vocação musical de Dalva – Vicentina Paula de Oliveira no registro de nascimento, em 1917 – foi uma herança do pai, carpinteiro profissional e saxofonista amador a quem, menina ainda, acompanhava nas noites de seresta em Rio Claro (SP), sua terra natal”, contou o JB no obituário. “Órfã de pai aos oito anos, interna num colégio, aprendeu a tocar piano e órgão e era destaque no coral que cantava durante a missa. Mudando-se para São Paulo com a mãe, aos 11 anos, foi cozinheira e, em seguida, faxineira numa casa de danças. Acabada a limpeza, sentava-se ao piano e cantava. Terminou convidada para integrar um grupo artístico que viajava pelo interior. Em Belo Horizonte, desfeito o grupo, conseguiu cantar na Rádio Mineira. Só então – 1933 – Vicentina passou a ser Dalva.”
“Aí, fui rebatizada por minha mãe”, disse Dalva em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, conforme souberam os leitores do Correio da Manhã (31-08-72). “Sabe, ela achava que Vicentina não era nome de artista e um dia resolveu me chamar de Dalva. Dalva de Oliveira. Soava bem melhor, mesmo.” O mesmo impresso contou que, pouco depois, deu-se a mudança para o Rio de Janeiro e a iniciação artística: “Foi Ademar Machado quem fez Dalva estudar canto com um maestro italiano. Em seguida ela conheceu Jaime Costa e, com ele, aprendeu os primeiros passos do teatro. Com Vicente Celestino, fazia pontas em operetas, aparições rápidas, de cinco, dez minutos.”
“Num show de teatro, ela conheceu o compositor Herivelto Martins, seu primeiro marido”, informou o jornal A Luta Democrática (01-09-72). “Formaram um trio com Nilo Chagas. Chamava-se Dalva de Oliveira e Dupla Preto e Branco. Mais tarde, Cesar Ladeira aconselhou a mudança do nome para Trio de Ouro.”
Já o obituário de O Jornal (31-08-72) recuperou aspas de Dalva sobre o início da vida conjugal: “Eu morei na Presidente Vargas: apesar de ter sido uma das fases mais tristes da minha vida ela foi muito marcante. Era um quartinho escuro do porão. Eu e Herivelto. Uma beleza. Uma noite, estávamos completamente duros. Ele pegou uma caixa velha de sapatos e escreveu essa coisa linda que se chama ‘Bom dia’.”
Dalva & Herivelto
“Durante quase 15 anos, o Trio de Ouro manteve-se como um dos mais importantes conjuntos vocais da música popular brasileira, lançando números como ‘Praça 11’ e ‘Ave Maria no morro’, essenciais em qualquer discografia retrospectiva”, contou o JB (31-08-72). Um dos filhos de Dalva de Oliveira – o cantor Peri Ribeiro – deve seu nome a um sucesso do Trio de Ouro, ‘Ceci beijou Peri’ (NR: a música se chama ‘Ceci e Peri’). Quando a cantora estava grávida, recebia diariamente cartas sugerindo que o filho se chamasse Peri, se fosse menino, ou Ceci, se fosse menina.” O mesmo JB informa que o casamento resultou em um segundo filho, Ubiratã Martins, mas acabou tendo “um fim melancólico, com um duelo de acusações graves em discos e entregue ao público na forma de canções. ‘Foi uma união sem paixão. Herivelto tinha medo que eu largasse o Trio. E casamos’, disse Dalva no depoimento ao MIS.”
De volta ao Correio da Manhã (31-08-72), sabemos que, logo após a separação, ocorrida durante uma viagem à Venezuela, Dalva não só deixou o conjunto, como passou a fazer gravações como solista, numa troca de farpas musicais que entrou para a história do cancioneiro brasileiro: “A disputa musical que travaram, de um lado Herivelto Martins com o novo Trio de Ouro, agora integrado por Nilo Chagas e Lurdinha Bittencourt, e de outro Dalva, amparada artisticamente por Ataulfo Alves e Nelson Cavaquinho, sensibilizou todo o país. Aí surgiram sucessos como ‘Errei sim’, ‘Tudo acabado entre nós’ (NR: ‘Tudo acabado’) e ‘Palhaço’.”
“O pessoal se divertia com o duelo musical que o Herivelto tentava manter comigo: era eu gravar uma música qualquer, que ele compunha outra com o David Nasser, em resposta”, disse Dalva ao MIS, segundo o Correio da Manhã. “Eu realmente nunca me preocupei com isso, o importante era o meu trabalho. Importante eram minhas apresentações com Chico Alves, por exemplo. A gravação da ‘Valsa da despedida’, ‘Dois corações’.”
“Dalva, encerrada a disputa, continuou em permanente ascensão”, informou o mesmo Correio da Manhã, listando como principais sucessos desta época o baião “‘Kalu’, com a então orquestra de Roberto Inglês, gravação feita na Inglaterra” e “Que será”. A própria cantora relembrou outros lançamentos que fez, em mais um trecho transcrito do depoimento ao MIS: “‘No sertão de Jequié’ também pegou muito. ‘Lencinho branco’ (NR: ‘Lencinho querido’), ‘Kalu’, ‘Estrela Dalva’...”
Mais adiante, o impresso ressaltou que “o carnaval daria a Dalva de Oliveira maior fama. ‘Um pequenino grão de areia’ (NR: ‘Estrela do mar’) é um lançamento seu de sucesso permanente, como o são também as criações ‘Galo cantou na serra’ e, mais recentemente, ‘Máscara negra’ e ‘Bandeira branca’.”
No Jornal do Brasil (31-08-72), leu-se também sobre os capítulos seguintes da vida afetiva da cantora: “Em 1953 Dalva de Oliveira casou, no Chile, com o artista argentino Tito Clemente, que lhe deu uma filha, Dalva Lúcia, hoje com 17 anos. Mas Dalva não a via há quase uma década: ela foi morar no Chile, com o pai, após novo desquite”, revelou o JB, antes de informar ainda o último enlace da diva, com o motorista e secretário Manuel Nuno Carpinteiro, com quem estava quando sofreu um grave acidente de carro em Copacabana que resultou em três mortes e mais a internação da cantora, que passou alguns dias em estado de coma.
“Uma espécie de Edith Piaf nacional, Dalva de Oliveira retirava da própria vida – marcada pela tragédia, a frustração amorosa e uma incrível capacidade de estar sempre recomeçando – a força de sua arte”, definiu o obituário do JB. “Em nenhuma outra cantora brasileira os dizeres das canções guardam tanta intimidade com a história pessoal da intérprete.”
Confusão no velório
Não por outra razão a emoção coletiva foi a principal lembrança das cerimônias de despedida, a começar pelo que se passou no saguão do Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, onde seu corpo foi velado, cercado por uma multidão que se fez presente desde as primeiras horas após o falecimento, no início da noite de 30 de agosto.
“Alguns contratempos foram registrados durante o velório, inclusive tendo sido presos cinco batedores de carteira que se aproximavam do aperto para ‘aliviarem’ os descuidados. Uma mulher tentou até roubar o revólver de um soldado”, relatou a reportagem de A Luta Democrática (01-09-72), que seguiu o cortejo em carro aberto. “Cerca de cinco mil pessoas, com lenços brancos às mãos, despediram-se da ‘Rainha da Voz’ desde a saída do féretro, no Teatro João Caetano, ficando milhares de admiradores da artista desolados por não terem podido vê-la pela última vez.”
“O percurso, aberto por batedores, seguiu através da Presidente Vargas, Praça da Bandeira, 24 de Maio, Dias da Cruz, Adolfo Bergamini, Amaro Cavalcanti, Clarimundo de Melo, Ernani Cardoso, centro de Madureira, Cândido Benício e Estrada Intendente Magalhães”, detalhou o JB (31-08-72), cuja reportagem seguiu o percurso até o cemitério Jardim da Saudade, em Jacarepaguá. “Houve uma parada de 10 minutos na esquina da Rua Albano, onde Dalva morou.”
“Embora chegando ao Jardim da Saudade às 16 horas, somente às 17 horas o corpo de Dalva de Oliveira baixou à sepultura, no carneiro 407-A”, informou A Luta Democrática (01-09-72), enquanto o Diário de Notícias (da mesma data) atentou para o povo no cemitério: “Durante a cerimônia do sepultamento voltaram a ocorrer inúmeros distúrbios, com grandes correrias e a intervenção da Polícia Militar, que destacou dezenas de homens para orientar o trânsito e manter os admiradores afastados”, descreveu o impresso. “A cantora Ângela Maria foi uma das vítimas da confusão. Arrancaram-lhe a peruca a força e ainda lhe deram pontapés.”
“Dezenas de moças tentavam localizar os artistas que não compareceram e a multidão chegou a tomar o carro-reboque da Polícia Militar para transformá-lo em arquibancada”, descreveu o JB (01-09-72). “O cemitério, que ofereceu o jazigo perpétuo à família da cantora, aproveitou a ocasião para distribuir panfletos de propaganda e botões de rosa com cartões de informações e vendas de túmulos no ‘único cemitério-parque da cidade.’”
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / Acervo IMS