Para quem acredita, ele é o anjo caído, o senhor das trevas. Para muitos, é apenas um personagem de ficção, presente no nosso folclore e em contos populares. Em sua essência, um transgressor – e nada melhor do que uma transgressãozinha neste mundo que parece ter encaretado tanto. Pegando carona no sucesso da refilmagem da novela “Pantanal” – que trouxe de volta o amigo do cramunhão (ou cramulhão), Xeréu Trindade, interpretado com perfeição por dois cantores, compositores e violeiros de primeira: Almir Sater, na versão original de 1990, e seu filho Gabriel Sater na atual –, mergulhamos nas profundas do nosso baú sonoro para fazer uma pequena diabrura: uma seleção das músicas mais infernais da paróquia. Se o tema te assusta, pode exorcizar o texto e ir direto para a playlist: a gente jura que ela está quentíssima!
O diabo não é tão feio como se pinta; que o digam Tião Carreiro e Pardinho. Na verdade, ele faz parte da nossa cultura desde sempre. O próprio Benedito Ruy Barbosa, criador do universo da novela “Pantanal”, já havia usado o cramunhão – também chamado de diabinho da garrafa – em “Paraíso”, de 1982: o jovem peão José Eleutério (Kadu Moliterno) era conhecido como o “filho do diabo” porque seu pai, o coronel Eleutério (o saudoso ator Cláudio Corrêa e Castro), seria dono de uma garrafinha com o tal capetinha dentro. Ainda no campo da teledramaturgia, a novela “O bem-amado”, de 1973, trouxe a figura do capitão Zeca Diabo (criado por Dias Gomes e interpretado de maneira impecável por Lima Duarte), ex-cangaceiro e ex-matador que era devoto do Padim Padre Ciço Romão Batista. Deus e o diabo, na terra do Sol, parecem sempre andar de mãos dadas...
Seja em Álvares de Azevedo (“Macário”) ou em Guimarães Rosa (“Grande sertão: veredas”), há sempre alguém em nossa literatura fazendo um pacto com o mafarrico. Ariano Suassuna mostrou o cabrunco sendo engabelado por João Grilo no “Auto da Compadecida”. Machado de Assis revelou, em “A igreja do diabo”, que o tiro do rabudo saiu pela culatra. E não nos esqueçamos da alcunha do poeta Gregório de Matos Guerra: o Boca do Inferno.
“No sertão do Brasil os cantadores vencem sempre ao demônio, porque cantam as velhas orações de força irresistível, como exorcismo, ladainhas, ofícios de Nossa Senhora, Magnificat etc.”, ensina Câmara Cascudo em seu “Dicionário do folclore brasileiro” (Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro, 1954). Segue o autor: “Os poderes e hábitos demoníacos no Brasil são idênticos aos europeus. Aceitava contratos para dar riquezas em troco da alma do contratante, entregue em certo dia e comumente sendo ludibriado”.
O excomungado tem presença constante na literatura de Cordel. Como ensinam vários livretos, no dia 24 de agosto, consagrado a São Bartolomeu, ele deita e rola no mundo, pois “Deus afrouxa o laço com que o subjuga”, nas palavras do poeta Marco Haurélio. São incontáveis os títulos que fazem referência ao maligno ou a seus domínios: “Chegada de Lampião no inferno”, um dos mais famosos, de José Pacheco, teve algumas de suas estrofes gravadas em disco por Expedito Baracho. Há ainda “O homem que enganou o diabo”, “A mulher que enganou o diabo”, “A sogra enganando o diabo” – todo mundo engana esse peste –, “O encontro de satanás com Roberto Carlos”... Quem mandou o “Rei” mandar tudo pro inferno? O pé-de-bode (que também é um dos sinônimos da sanfona de oito baixos, mas aqui no caso é o dito-cujo mesmo) foi tirar satisfação...
Antiga é a sua relação com a maior festa popular do mundo: já no século XIX, no Rio de Janeiro, empunhava seus tridentes nos desfiles da sociedade carnavalesca Tenentes do Diabo; no início do século passado, deu pinta no meio dos foliões do Clube Quatro Diabos, no Recife. O Grupo Manoel Pereira flagrou, em 1913, o “Diabo em folia”, dançando lascivamente uma deliciosa polca. No ano seguinte, o Grupo Ulisses encontrou “O diabo aos tombos”, provavelmente por não conseguir acompanhar a rápida polca. Ainda em 1914, o Grupo Chiquinha Gonzaga regravou “O diabinho”, tango carnavalesco da própria maestrina, lançado em 1910 pela Orquestra Columbia.
“(...) desde o início de nossos Carnavais, uma fantasia salientava-se, era a mais usada, a mais amada pelos foliões: a de diabinho. A importância da fantasia de diabinho (também havia a de diabão) para o Carnaval de rua era tão grande que os jornais contavam do entusiasmo ou da fraqueza carnavalesca pelo número de diabinhos que apareciam. Eram vermelhos, com grande rabo, máscara animalesca de grandes chifres, na mão um tridente, no corpo uma roupa de malha justa. A fantasia de ‘diabinho’ foi eminentemente popular (...). Na verdade, nenhuma outra fantasia teve a importância da do diabinho em nossos passados Carnavais”, afirma a escritora, pesquisadora e foliona Eneida na sua “História do Carnaval carioca” (Editora Civilização Brasileira, 1958).
Nem Fra Diavolo (pseudônimo do poeta, jornalista e advogado paraibano Aprigio dos Anjos, irmão de Augusto dos Anjos), que durante anos escreveu sonetos ferinos para a revista “Fon-Fon”, escapou de cair na folia: João de Barro, Alberto Ribeiro e Carlos Martinez imaginaram como seria “Fra Diavolo no Carnaval”, marcha lançada em 1936 por Mário Reis.
O ser inominável que veste Prada já há muito domina a alma da cultura pop, presente até em desenhos animados: no das Meninas Superpoderosas, ele é um vilão super fashion, que usa cinto e botas, tem garras de caranguejo e, apesar de suas características andróginas, é conhecido apenas por... “Ele”. Em “A vaca e o frango”, “The Red Guy” recebeu, em português, o autoexplicativo nome Bum Defora. O Satã de “South Park” certamente não assustaria nenhuma criancinha – caso os pequeninos pudessem assistir à série animada adulta –, assim como não mete medo nos desbocados meninos e meninas que há 25 anos protagonizam a animação.
Nos quadrinhos, ele pode ser o demônio Trigon, pai da empata Ravena, dos Novos Titãs da DC Comics; o igualmente assustador Mephisto, da Marvel; o charmoso Lucifer Morningstar, da série Sandman; o Hellboy de Mike Mignola; o brasileiro Satanésio, nos anos 1970 (alguém se lembra dele?); o politicamente incorreto Nico Demo, da turma da Mônica; ou mesmo Brasinha, um capeta em forma de guri que a Harvey Comics – mesma editora de Gasparzinho, Riquinho, Brotoeja e outros – lançou em 1957. O esquentadinho personagem de fraldas emprestou, durante décadas, sua imagem para a versão infantil do mascote do America Football Club, fundado no Rio de Janeiro em 1904 e que passou a adotar o diabo como símbolo a partir de 1947 – e para o qual minha avó materna, super religiosa, torceu a vida toda. Brazinha (com “z”) também era o pseudônimo do compositor popular Gustavo Thomás Filho.
Aliás, a música brasileira, pródiga em canções de louvação e de caráter religioso, parece ter feito algum pacto com o tinhoso – mas nada maléfico, pelo contrário: desse “Pacto sinistro” – filme de Hitchcock, também diretor do cultuado “Festim diabólico” – resultaram criações incríveis. Algumas bem singulares, como “Capetão 66.6 FM”, que a angelical Fernanda Takai, do Pato Fu, interpreta com voz de arrepiar até o mais maquiavélico dos capirotos (uoooou, pega capetão!). Nada a estranhar: o maluco beleza Raul Seixas já havia ensinado que o diabo é o pai do rock.
Então everibódi rock: o sete pele teve seu nome invocado por Elvis ((“You’re the) Devil in disguise”), pelos Beatles (“Devil in her heart”), pelos Rolling Stones – afinal, a “sympathy” deles pelo diabo era simpatia ou compaixão? – e até pelo pacato Neil Sedaka, cujo sucesso “Little devil” foi lançado no Brasil como “Diabinho” na voz de Carlos Gonzaga em 1961. É desalentador, porém muito comum no mundo machista em que vivemos, que o mestre da tentação, em diversas manifestações artísticas e culturais – e mais flagrantemente na música –, seja frequentemente associado à figura da mulher...
A música popular flertou diversas vezes com o chifrudo. Três dos mais importantes conjuntos da nossa história fazem referência ao coisa-ruim – ou aos domínios deste – em seus nomes. A começar pelos Diabos do Céu, lendária orquestra liderada por Pixinguinha – que, não custa lembrar, é o autor do choro “Diabólica”. A antítese dos Diabos do Céu – no que tange à denominação do grupo – é o conjunto vocal Anjos do Inferno, batizado exatamente para brincar com o nome da orquestra de Pixinguinha. E temos os popularíssimos Demônios da Garoa, o grupo mais antigo do mundo em atividade: 79 anos de samba e simpatia! Houve ainda o conjunto vocal Os Quatro Diabos – que aparecem em sua primeira gravação como Os Cinco Diabos, devido à presença do cantor Arnaldo Pescuma entre eles.
Os Diabos do Céu esquentam nossa playlist com dois frevos freventes do grande mestre Levino Ferreira: “Diabo solto” e “Diabinho de saia”. Quase homônimo do cangaceiro Livino Ferreira – considerado por muitos historiadores como o cão na Terra, dez vezes mais sanguinário do que seu irmão Virgulino Ferreira, o Lampião –, o compositor, um dos maiorais do frevo de rua, também era um danado, mas para compor: estão aí “Satanás na onda”, “Segura esse diabinho” e “Encapetado”. Os demos e as demas parecem gostar de cair no passo: vide o “Diabo louro” de J. Michiles, consagrado na voz de Alceu Valença, o “Diabo moreno” de Samuel Valente ou o “Frevo diabo” de Edu Lobo e Chico Buarque.
A besta-fera existe desde o início dos tempos – bom, ao menos no que diz respeito à indústria do disco no Brasil. Em 1903, a Banda da Casa Edison já levava para a bolachinha a figura de “Sataniel”, uma variação do nome do príncipe do mal – homenageado com uma polca que de má não tem nada. Outra banda, a do Regimento de Fuzileiros Navais, ao se deparar em 1931 com o próprio “Satanás”, “cortou um dobrado” – ou melhor, tocou o dobrado homônimo do maestro Francisco Braga (autor do hino à nossa bandeira).
Os chamados “eruditos” vez por outra bebem dessa fonte – no caso, desse poço transbordante de lava e enxofre: vide Heitor Villa-Lobos, que compôs, em 1919, “O chicote do diabinho”, segunda peça da suíte para piano “Carnaval das crianças”; ou Hekel Tavares, cuja suíte sinfônica em seis quadros “André de Leão e o demônio de cabelo encarnado” (o curupira), gravada em 1937 por uma orquestra dirigida por ele, foi baseada num poema do modernista Cassiano Ricardo (em nossa playlist apresentamos o segundo quadro desta obra).
Exímio bandolinista e banjista, Aristides Júlio de Oliveira ganhou fama como band-leader e compositor, sob a alcunha de Moleque Diabo. Dele é o gracioso maxixe “Não digo”, que o clarinetista Frade (!) levou ao disco em 1926, com acompanhamento do Grupo do Jesus – só piada pronta! –, na verdade Antônio Rodrigues de Jesus, mestre da Banda do Batalhão Naval.
Em 1956, o bandolim divinal do grande Jacob solou em 78 rotações um dos clássicos da nossa música instrumental, composto por ele: “Diabinho maluco”. Outro choro, de autoria do flautista Dante Santoro, que ele lançou em 1937 e regravou em 1952, possui um título que é uma ótima sacada: “Inferno de Dante” faz alusão ao nome de seu autor e intérprete, ao mesmo tempo em que remete à primeira parte do poema “Divina Comédia”, do italiano Dante Alighieri.
Para encerrar, uma homenagem à viola endiabrada (que toca até sozinha!) de Xeréu Trindade, grande inspirador deste post: um cururu à altura das rodas de peão da fazenda de seu José Leôncio, lá no Pantanal. “O filho do diabo” – com chifrinho e tudo – curiosamente foi lançado em 1961 por uma dupla caipira intitulada... Irmãos Divino!
Imagem: capa de cordel na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS