Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira
Todo o Brasil emudeceu
Chora o mundo inteiro
O Chico Viola morreu
O samba de Nássara e Wilson Batista saiu em disco em dezembro de 1952 reverberando a maior comoção da música brasileira naquele ano: a morte do cantor mais popular do país, Francisco Alves, ocorrida de maneira trágica no dia 27 de setembro daquele ano. O “Rei da Voz” trafegava pela Via Dutra voltando de São Paulo para o Rio de Janeiro, quando seu carro colidiu de frente com um caminhão na altura da localidade de Una, município de Pindamonhangaba (SP). O primo de Chico, Haroldo Alves, que viajava no banco do carona, foi arremessado pelo para-brisa e sobreviveu após período em coma, enquanto o motorista do caminhão, João Valter Sebastiani, teve ferimentos leves. Já o cantor morreu na hora (17h30), no incêndio que deixou em chamas seu carro, um Buick placa 11-65-80 D.F.
Segundo o jornal O Dia (28-09-1952), foi o delegado policial de Pindamonhangaba quem retirou o corpo do cantor das ferragens (“quase irreconhecível, totalmente carbonizado”, descreveu o Jornal do Brasil de 28-09-1952), levado imediatamente para o necrotério da cidade, de onde foi transferido no dia seguinte para o Rio de Janeiro. A notícia se espalhou imediatamente pelas emissoras de rádio – a começar pela Rádio Nacional, da qual era contratado com exclusividade desde 1941, como atração fixa da faixa de maior audiência da emissora, nos domingos ao meio-dia. Depois, assinou também com a Nacional de São Paulo, onde tinha se apresentado antes de pegar a estrada a caminho de casa.
“Quando os ponteiros se encontram na metade do dia, os ouvintes da Rádio Nacional também se encontram com Francisco Alves, o Rei da Voz”, dizia a vinheta de abertura do programa, no qual Francisco Alves cantava não só lançamentos do momento, como também números de sua extensa e bem-sucedida carreira fonográfica: desde 1920, quando lançou seu primeiro disco, foram 1.051 gravações, conforme se vê aqui na Discografia Brasileira. Entre estas estão marcos da música brasileira, como os sambas pioneiros do bairro do Estácio, as gravações em dueto com Mário Reis, incontáveis sucessos de carnaval e músicas estrangeiras vertidas para o português – com destaque para os tangos e canções estadunidenses que o povo via primeiro no cinema.
Tão logo saiu a notícia, as gravações de Chico Alves tomaram a programação musical no rádio, com destaque para o último sucesso de carnaval lançado por ele, a marcha “Confete”, de David Nasser e Jota Junior. Nenhuma, no entanto, foi tão tocada quanto “Cinco letras que choram”, o samba-canção de Silvino Neto lançado por ele em 1947, com versos de uma despedida amorosa, aqui ressignificados na comoção que tomou os fãs: “Quem fica também fica chorando / Com o coração penando / Querendo partir também...”
O corpo do Rei da Voz foi velado na Câmara Municipal do Rio até o fim da manhã do dia 29, de onde partiu em cortejo num carro do Corpo de Bombeiros até o Cemitério São João Batista, em Botafogo. No trajeto, o povo atirava flores sobre o caixão, que chegou coberto ao destino final, onde foi sepultado, acompanhado por uma multidão que seria reeditada nos anos seguintes, nos cortejos fúnebres do presidente Getúlio Vargas (1954) e da cantora Carmen Miranda (1955).
“Cem, duzentas mil pessoas? Quem sabe ao certo, se a vista do repórter se perdia ao longo de ruas e avenidas da zona sul? Foi um espetáculo comovente, o coroamento das manifestações de dor popular pela morte trágica do Rei da Voz”, dizia a crônica do jornal O Dia (30-09-1952). Já o Diário de Notícias (30-09-1952) informou que a “cerimônia final foi perturbada” (“12 pessoas tiveram que ser atendidas pelo serviço médico”) e que “foi preciso o trabalho de 12 atletas da Polícia Especial” para a urna funerária chegar ao túmulo – hoje adornado por um busto de bronze com uma imagem sorridente de Francisco Alves.
Em outubro, os fãs se consolaram com inúmeros discos que a Odeon relançou com antigos sucessos do cantor. Também puderam ouvir suas últimas gravações, feitas em setembro com acompanhamento de coro infantil: uma da marcha-hino “Brasil de amanhã” e outra da valsa “Canção da criança”, ambas assinadas pelo próprio Francisco Alves com René Bittencourt.
E logo vieram também as homenagens musicais, como o samba dos versos que abrem este texto, “Chico Viola”, gravado por Linda Batista com o Trio Madrigal em 08-10-1952, apenas onze dias após o fatídico acidente automobilístico. Ainda mais rápida foi Dalva de Oliveira, que entrou em estúdio no dia 03-10 para homenagear o amigo e parceiro de gravações cantando a marcha-rancho “Meu rouxinol” (Mário Rossi e Pereira Matos): “Perdeu a voz ao pôr-do-sol / Meu rouxinol adormeceu / Dorme com Deus / Descansa em paz, meu rouxinol...”
A música caipira também prestou suas homenagens em dois discos que saíram em março de 1953. Num deles, o Duo Brasil Moreno cantava, como num obituário: “Vinte e sete de setembro / Triste dia que Deus marcou / Às cinco e meia da tarde / Morreu um grande cantador” (“A morte de Francisco Alves”, de Raul Torres e Sebastião Teixeira). No outro disco, era como se o relato prosseguisse nas vozes de Tonico e Tinoco, parceiros de José Maffei em “Chico Viola morreu”: “Quando o céu escureceu / Um violão sem companheiro/ Uma voz emudeceu / Um Brasil sem cantador / Chico Viola morreu...”
Também em março de 1953 saiu a primeira gravação de “Silêncio do cantor”, composição de Joubert de Carvalho e David Nasser gravada pelo novato João Dias, afilhado musical do homenageado: “Quando meu canto esquecido / For um pássaro ferido / Que já não pode voar / Tu, só tu, meu violão / Amigo na solidão / Saberás me suportar...” Dois meses depois (maio), outro samba-canção pranteava o cantor morto na voz de Carlos Galhardo: “Existe lá na beira da estrada / Uma cruz abandonada / Que nos traz recordação / Quem passa rende culto à saudade / De uma voz que a cidade / Consagrou com devoção” (“Uma cruz na estrada”, de Irani de Oliveira e Ari Monteiro).
Já em setembro de 1953, quando completava-se um ano do acidente, a Odeon lançou mais um disco com gravações deixadas por Francisco Alves, ambas feitas em 10-09-1952: no lado A, uma regravação da canção “Malandrinha” (Freire Jr.), que o próprio Chico havia lançado no longínquo 1928, e no B o primeiro registro de “A mulher do meu amigo”, samba de Denis Brean e Oswaldo Guilherme.
Já as homenagens continuaram nos anos seguintes: teve um samba-canção em 1954 (“Francisco Alves”, de Herivelto Martins e David Nasser), um tango em 1955 (“Chico Viola”, de Carlos Paez Vilaró, V. S. Vignoli e Casablanca) e uma valsa em 1956 (“Adeus de Chico”, de Valadares Lago e Geraldo Tavares). Nesta última – homenagem derradeira em 78 rpm – a “originalidade” fica por conta de um recurso de gosto duvidoso: o cantor Paulo Amolinari, com um timbre vocal parecido com o de Francisco Alves, se dirige aos fãs, como se falasse do além:
Oh Deus, pois eu me fui dessas paragens
Sem lhes dar o meu abraço fraternal
Mas minh’alma presente às homenagens
Invisível seguiu meu funeral
E agora sem poder conter o pranto
Agradeço a vocês de coração
E volto para o céu aonde canto
Pras crianças de Cosme e Damião...
Menos mal que os fãs podiam matar a saudade nos mais de 500 discos lançados pelo próprio Rei da Voz – todos devidamente disponíveis aqui na Discografia Brasileira.
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS