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    Nossa Senhora do Samba: na missa ou na batucada, salve a Penha!

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    E quem diria que Nossa Senhora da Penha de França – que apesar do nome era espanhola – se tornaria uma das santas católicas mais queridas do Brasil? Que ela seria “musa” em tantas composições da nossa música popular e em sua devoção seria criada uma das festas mais importantes na história do samba? Afinal, sambista que se prezasse dedicava os domingos de outubro a comparecer a seu santuário – fosse pra rezar na igreja-ícone da zona norte carioca, fosse pra cantar e batucar no arraial, ao pé da escadaria.

    O mangueirense Cartola, por exemplo, era um que não perdia a “Festa da Penha” e fazia questão de estar bem vestido, como cantou num samba com o parceiro Asobert (apelido de Adalberto Alves de Souza): 

    Uma camisa, um terno usado alguém me empresta
    Hoje é domingo, eu preciso ir à festa
    Não brincarei, quero fazer uma oração
    Pedir à santa padroeira proteção

    O samba, no entanto, nem sonhava existir quando começa essa história, nos tempos do Brasil Colônia, lá no século 17: conta-se que foi em 1635 que um capitão português andava por aquelas terras quando se viu ameaçado por uma cobra. Evocou o nome de Nossa Senhora da Penha e eis que apareceu um lagarto para atacar a cobra e salvar-lhe a vida. O militar, em agradecimento à santa, providenciou a construção de uma ermida, que ao longo dos séculos 18 e 19 passou a uma pequena capela e, depois, a igreja.

    A basílica como conhecemos hoje – com suas duas torres pontiagudas e as laterais avarandadas – remete a 1902, quando foi concluída sua última reforma, tendo como referência a arquitetura neogótica. Encarapitada no alto de uma rocha, já então tinha sua longa escadaria – construída em 1819 – como primeira prova de fé para os fiéis que iam ao santuário fazer suas preces. Tanto que é sobre ela uma das primeiras frases em “Uma festa na Penha”, arranjo cômico de 1908 que é o registro mais antigo referente à Penha na Discografia Brasileira. 

    “Meu Deus! Quando eu me lembro que tenho que subir esses 369 degraus...”, diz um dos intérpretes da cena gravada em disco, subestimando a subida – na verdade, de 382 degraus! – do arraial para a igreja. Logo depois, é a vez de uma voz feminina escrachar: “Viva o corno do meu marido, que está cheio de vinho!” A exclamação é uma referência a um costume dos antigos frequentadores da igreja: gente da comunidade portuguesa que costumava aproveitar a festa da Penha bebendo vinho em chifres de boi.

    A data dos festejos foi outro costume que mudou: devido às chuvas, que invariavelmente desabavam sobre o Rio de Janeiro no dia 8 de setembro (data original), acharam por bem transferir a comemoração para o primeiro domingo de outubro – deu tão certo que logo a festa se espraiou também pelos domingos seguintes do mês. Segundo Roberto Moura no livro fundamental “Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro” (Funarte, 1983), passava de cem mil o número de pessoas que compareciam à Penha – chegadas de trem, carroça e até mesmo de barco – da Praça XV até o porto de Maria Angu, em Olaria.

    A essa altura a festa já era mais brasileira do que lusitana, com destaque para a presença cada vez maior da população negra, que levava seus costumes ao arraial, no pé da escadaria, onde se dava a festa de fato. “A presença maciça dos negros tinha componentes comerciais, religiosos e musicais. Vendiam-se comidas, celebravam-se os orixás e, apesar da repressão policial, cantava-se e dançava-se”, descreve Luiz Fernando Vianna no livro “Geografia carioca do samba” (Casa da Palavra, 2004). “Se nas casas das ‘tias’, na Cidade Nova, a música era tocada entre quatro paredes (com exceção do carnaval), na festa da Penha essa música ia para o espaço público, para o meio da multidão.”

    À entrada do povão na festa seguiram-se providências do poder público, que mobilizou aparato policial e militar para evitar desordem – como os agentes de segurança destacados para apalpar e revistar os romeiros logo que estes desembarcavam do trem, como conta Lira Neto no livro “Uma história do samba: as origens” (Companhia das Letras, 2017). As rodas de samba chegaram a ser proibidas (em 1904, 1907 e 1912) e era comum confiscarem instrumentos musicais – como o pandeiro de João da Bahiana numa destas idas à Penha.

    “Espúrio, perseguido pela polícia, realizado às escondidas, o samba nas suas manifestações precárias, em ‘rodas’ (...), encontrou na festa da Penha local próprio para se realizar”, relata o cronista Jota Efegê na Revista da Música Popular (setembro de 1955). “Trajando roupas novas, ritual que criaram e observavam, os sambistas marcavam encontro no arraial para, em confraternização quase sempre de pouca duração – pois vários conflitos ocorriam entre eles com tiros e navalhadas – entoar seus refrãos”, conta o veterano jornalista, citando versos de “O malhador”, composição de Donga e Pixinguinha e Donga (1918) entre os mais cantados nas rodas. Frequentador da festa, Pixinguinha ambientou nela seu samba “Promessa”, de 1928.

    Mas quem abafava mesmo na Penha era José Barbosa da Silva, o Sinhô, que, segundo Lira Neto, conquistou em 1921 o troféu do “domingo dos barraqueiros” (o último de outubro), quando seu bloco – a Embaixada do Sinhô – se apresentou cantando sua marcha “Fala baixo” e acabou eleito o melhor da festa, segundo júri formado por representantes dos jornais A Pátria, A Noite e O Suburbano. No domingo seguinte (já em novembro), quando o Jornal do Brasil realizou nova disputa na Penha, quem levou o troféu foi o bloco os Silenciosos das Laranjeiras, de José Luís de Moraes, o Caninha – nome querido da festa, onde emplacou sucessos como “Quem vem atrás fecha a porta” e “Esta nega qué me dá”

    A rivalidade que se estabeleceu entre Caninha e Sinhô – que ainda cantou a festa no samba “Viva a Penha” – inspirou uma quadrinha muito cantada nos anos 1920, como relembrou João da Baiana em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. 

    São dois cabras perigosos
    Dois diabos infernais
    José Barbosa da Silva
    José Luís de Moraes

    Assim, juntamente com os quitutes que eram vendidos pelas baianas (entre eles a moqueca de Tia Ciata), a música se tornou o ponto alto no arraial da Penha. Cantores e compositores passaram a aproveitar a festa para testar a popularidade das músicas que pretendiam gravar para o fevereiro seguinte – uma espécie de “prelúdio do carnaval”, na definição de Jota Efegê. Como o samba “Tatu subiu no pau”, que o maestro Eduardo Souto levou à Penha antes da música se tornar uma das mais cantadas de 1923. Outra que os devotos do arraial conheceram antes do público foi o samba “Braço de cera” (Nestor Brandão), que Francisco Alves lançou em disco em 1927.

    Já entre os compositores que tiveram a Penha como inspiração, um dos destaques é Noel Rosa, que faz menção a ela em oito de seus sambas – contra quatro citações de seu próprio bairro, Vila Isabel. Entre esses estão clássicos de seu repertório, como “Feitio de oração” (sua primeira parceria com Vadico, lançada em disco em 1933) e “De qualquer maneira”, parceria com Ary Barroso gravada só em 1939, dois anos após a morte de Noel. Ary já tinha citado o santuário em 1928 (“Vou à Penha”) e citaria mais uma vez em 1958 (“Eu fui de novo à Penha”), ambos sambas românticos, assim como “Santa padroeira” (Victor Hugo), que Silvio Caldas lançou em 1930.

    Outro representante do samba no “asfalto” que falou da Penha em seus sambas foi João de Barro, o Braguinha. Como em 1931, quando se juntou ao salgueirense Canuto para dar voz ao malandro regenerado que dizia: “Vou à Penha rasgado”. E em 1954, quando sagrado e profano se encontram no samba-canção em que se declara a uma certa “Maria da Penha”, que tem nome de santa e olhos infernais que “queimam, torturam, maltratam”.

    Já em outros gêneros, a santa mereceu músicas como o “Baião da Penha”, parceria do maestro Guio de Moraes com o jornalista David Nasser que fez muito sucesso em 1951, com a súplica do romeiro na voz de Luiz Gonzaga, que pede a “bênção, padroeira / Pra essa gente brasileira / Que quer paz pra trabalhar...” Menos altruísta é a valsa sertaneja “Senhora da Penha” (Francisco Ávila), de 1956, na qual o sujeito – aqui interpretado nas vozes terçadas dos irmãos Zico e Zeca – agradece à santa milagrosa por ter se regenerado: largou a bebida, o fumo e o baralho.

    Seja como for – por amor ou regeneração – Nossa Senhora da Penha entrou de vez no cancioneiro popular brasileiro, com uma predileção especial dos sambistas, que compareciam ao santuário na mesma medida em que louvavam a santa em forma de samba, como Alcides Gerardi cantou numa composição de Jair Maia e Felisberto Matins (“Festa da Penha”, 1956).

    Toda a Penha está em festa
    E a igreja está florida
    A colina iluminada
    Em louvor à santa querida
    Muita gente vem de longe
    Suas promessas pagar
    Vou também agradecido
    Aos pés da santa rezar

    “A festa se transformou no maior evento popular do Rio de Janeiro depois do carnaval”, define Luiz Antonio Simas no livro “Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia” (Bazar do Tempo, 2022), destacando a vitória popular contra a resistência da elite. “A despeito da repressão, o povo deu nó em pingo d’água, virou dono da festa e dela fez seu pertencimento”, escreve o professor, arrematando que, “de certa forma, a serpente representada pela República das oligarquias perdeu a batalha para o lagarto carioca, mais chegado por aqui aos sambas que aos fados.”

    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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