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    Há 60 anos, a música popular evoluía ‘Na cadência do samba’ de Ataulfo Alves

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    “O samba tem pra mim tanta importância que quando afirmo que quero morrer na sua cadência não estou brincando. Falo a sério. Ele, a bem da verdade, é o meu amigo de todas as horas”.
    (Ataulfo Alves – Jornal do Brasil, 23/07/1964, Caderno B, seção “O samba cá entre nós”, de Mauro Ivan e Juvenal Portella)


    “Sei que vou morrer, não sei o dia / Levarei saudades da Maria / Sei que vou morrer, não sei a hora / Levarei saudades da Aurora / Quero morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba”. Há 60 anos mantendo-se como um dos clássicos absolutos das rodas de ontem, hoje e sempre, “Na cadência do samba” é das mais conhecidas e admiradas composições do mineiro Ataulfo Alves (1909-1969), um dos maiores autores de nossa música popular – e um verdadeiro criador de sucessos.

    Não foi de Ataulfo a primeira composição intitulada “Na cadência do samba”: a primazia coube ao pernambucano Luiz Bandeira, que lançou em 1956 um samba com este nome, como contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no segundo volume de “A canção no tempo” (São Paulo: Editora 34, 1998): “Existem dois sambas com o título de ‘Na cadência do samba’. O primeiro, de Luiz Bandeira, foi por ele lançado em junho de 56, sem maior sucesso. Tempos depois, adotado como prefixo e fundo musical para cenas de futebol no jornal cinematográfico Canal 100, de Carlos Niemeyer, popularizou-se, tornando-se conhecido pelo verso inicial ‘Que bonito é’” (veja, no final da playlist abaixo, as três gravações deste samba em 78 rotações). Até hoje, o arranjo instrumental de Aldo Taranto gravado pelo conjunto de Waldir Calmon no LP “Samba... alegria do Brasil” (1956) e utilizado nos programas do Canal 100 desperta, em muita gente, a nostalgia dos grandes jogos de futebol do passado.

    “Cadência do samba”, expressão exaustivamente falada e escutada, já era usada na imprensa pelo menos desde a década de 1920. Adoasto de Godoy, chamando a marcha “Ai, seu Mé” de samba, escreveu na edição de 16/11/1922 de O Paiz: “Animado pela cadência do samba, arrebatado pela sua desmedida e intolerável ambição, o Sr. Nilo Peçanha redobrava de astúcia...”. Uma matéria de capa do jornal A Noite de 01/03/1924, assinada por Leal de Souza, descrevendo uma “sessão de magia negra” – o velho preconceito contra as religiões de matriz africana –, dizia, no final do texto: “uma senhora (...) caiu em súbito transe e desandou a dançar, com encantadora elegância, batendo os pés na cadência do samba”.

    “Pois o meu nome não se vai jogar na lama / Diz o dito popular: morre o homem, fica a fama”. Ataulfo gostava de criar em cima de provérbios populares, que não raro batizavam suas composições: “Fale mal mas fale de mim” (parceria com Marino Pinto), “Antes só que mal acompanhado” (com Benedito Lacerda), “O vento que venta lá”, “As árvores morrem de pé”, “Laranja madura”, “Nem que chova canivete”... e, claro, “Atire a primeira pedra” (com Mário Lago), expressão tirada de uma passagem bíblica.

    O dito “Morre o homem, fica a fama” já tinha sido utilizado por Ataulfo em 1943: “Inimigo do samba”, parceria de Ataulfo com Jorge de Castro gravada por Orlando Silva, diz em sua letra: “Pra você que é inimigo número um do samba brasileiro / Pra você matar o samba, tem que me matar primeiro / Mesmo assim, depois de morto inda lhe darei trabalho / Morre o homem, fica a fama e com a fama lhe atrapalho”.

    Como na vida “nada se cria, tudo se copia” – já dizia o filósofo Chacrinha, parafraseando Lavoisier –, em julho de 1962 Tião Carreiro e Carreirinho fizeram, em “A viola e o violeiro” – no único disco que gravaram juntos –, a defesa da “classe de violeiro”: “Pra destruir nossa classe, tem que me matar primeiro / Mesmo assim, depois de morto ainda eu atrapaio / Morre o homem, fica a fama e minha fama dá trabaio”.

    A expressão “batucada de bamba” não era usual na imprensa até o advento do samba de Ataulfo. Não seria de espantar se o próprio compositor a tivesse criado. A ideia de “morrer numa batucada de bamba”, contudo, não era nova: Jota Efegê, em texto publicado n’O Jornal de 20/09/1964, menciona “Quero morrer cantando”, de Walfrido Silva, que Francisco Alves gravou em 1934: “Quero morrer cantando um samba / No meio de uma roda bamba”.

    Ataulfo participou, em 1961, da quarta edição da Caravana da Música Popular Brasileira, projeto criado por Humberto Teixeira (quando atuou como deputado federal entre 1955 e 1959) para fazer a propaganda da nossa música popular no exterior. “Na cadência...” pode ter estreado durante estas apresentações, como informam os três fascículos sobre Ataulfo que a coleção “História da Música Popular Brasileira”, da Abril Cultural, lançou em 1970, 1977 e 1982: “[Ataulfo] Levava em sua bagagem duas músicas recém-lançadas, de diferentes estilos, mas com a mesma alta qualidade: ‘Mulata assanhada’ e ‘Na cadência do samba’”. A primeira não era tão nova: chegara às lojas em 1956 nas vozes de Ataulfo Alves e Suas Pastoras. Já a segunda ainda não havia recebido nenhum registro fonográfico.

    Antes mesmo de sua chegada aos discos, o samba de Ataulfo era curtido na night carioca. Braga Filho, em sua coluna do jornal A Noite de 06/02/1962, listou-o entre “as músicas mais executadas nos bares, boates e nas matinês carnavalescas da Z. Sul”. Neste mesmo ano, “Na cadência do samba” recebeu quatro registros em 78 rotações: o de Jorge Veiga (gravado em maio), o de Elizeth Cardoso (que canta “mas o meu nome ninguém vai jogar na lama”, versos que acabariam se tornando os mais conhecidos, e “na cadência bonita de um samba”), o de José Menezes (instrumental) e o do próprio autor, lançado em outubro, portanto há exatos 60 anos. Esta versão é a mesma que abre o LP de Ataulfo “Meu samba... minha vida”, também de 1962.

    A edição 691 da Revista do Rádio (15/12/1962), em sua seção Parada de Sucessos – que listava as músicas “em maior evidência (venda de discos e execução)” –, mostrava Elizeth e Jorge Veiga dividindo o primeiro lugar com suas respectivas versões do samba de Ataulfo, que recebeu mais três interpretações em 78 rpm no ano seguinte. Uma lançada em janeiro de 1963, a do cavaquinista Waldir Azevedo (instrumental), e duas em fevereiro: a de Clóvis Pereira (também instrumental, solada em órgão elétrico, com refrão cantado) e uma regravação feita por Ataulfo, certamente satisfeito com a fama que sua criação vinha obtendo.

    O próprio autor, de início, parecia não acreditar muito no sucesso da composição, como se depreende da leitura da biografia “Ataulfo Alves: vida e obra” (São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2009), de Sérgio Cabral. Escreve este: “Gravado no ano anterior [1962] por Jorge Veiga e Elizeth Cardoso, o samba ‘Na cadência do samba’ também foi gravado por Ataulfo, que, na esperança de ver sua obra executada pelas emissoras de rádio, utilizou mais uma vez um recurso de que poucos compositores escaparam: deu a parceria da música a Paulo Gesta, que trabalhava como discotecário da Rádio Tamoio, na esperança [de] que ‘Na cadência’ tivesse uma boa divulgação pelo menos na Tamoio”.

    Artifício que se provaria dispensável, como conta Cabral: “O sucesso do samba, porém, foi tão grande que Ataulfo concluiu que nem precisava apelar para esse tipo de parceria, pois todas as emissoras do Brasil tocaram o samba imediatamente. Também surpreendido pelo sucesso, Paulo Gesta ficou muito grato e convidou o compositor e a esposa Edith para padrinhos do filho, que acabara de nascer”. A julgar pelo número de composições com coautoria atribuída a Paulo Gesta – só na página do Instituto Memória Musical Brasileira são 78 –, a estratégia de Ataulfo pode ter sido também empregada, como afirmou Sérgio Cabral, por vários outros autores...

    Já Mister Eco (codinome do jornalista e crítico baiano Eustórgio Antônio de Carvalho Júnior), em sua coluna “Madrugada” no Diário Carioca de 07/09/1962, negava que o compositor fosse adepto de tal prática: “Ataulfo Alves gravou para o Carnaval deste ano um belíssimo samba intitulado ‘Na cadência do samba’” – informação duvidosa: não se tem notícia de uma gravação feita por Ataulfo antes da lançada em outubro de 1962. Segue o articulista: “Não sendo compositor de sustentar programadores desonestos nem pagar orquestras para executar as suas composições, a música do ‘Ministro’ [obs: Ataulfo era também chamado de Ministro do Samba] foi totalmente boicotada e poucos dela tomaram conhecimento. Ataulfo não se entregou. Regravou o samba com ele próprio, com Elizete [sic] Cardoso e com Jorge Veiga e vai lançar as três gravações na praça, neste mês de setembro”. Vale o registro da nota, apesar de sua aparente contradição com fatos e datas.

    “‘Na cadência do samba’ é uma prova de que o compositor Ataulfo está em plena forma”, registrou Sérgio Porto em sua coluna “Desfile” na Tribuna da Imprensa de 12/09/1962, ao escrever sobre o disco de Jorge Veiga. O cantor também recebeu elogios: “A interpretação – no disco em epígrafe – é a prova de que Jorge Veiga ainda é Jorge Veiga”. “Imenso Ataulfo é best-seller novamente com seu novo e esplêndido ‘Na cadência do samba’”, afiançava a legenda da foto do compositor mineiro publicada na matéria “Bossa velha é que dá bom caldo”, d’O Cruzeiro de 05/01/1963. O hit de Ataulfo virou nome de pocket-show apresentado no início de 1964 na boate Top Club, na Praça do Lido, em Copacabana: “E temos ainda o Top Club onde Ataulfo Alves, Paula [do Salgueiro] e Jorge Veiga continuam a trilha do sucesso, ‘Na cadência do samba’”, informava Eli Halfoun na Ultima Hora de 09/03/1964.

    Numa apresentação ao vivo de Ataulfo para a TV Record em 1967 (veja aqui um trecho, em vídeo colorizado), pode-se ter uma ideia do quanto a música havia caído no gosto popular. Acompanhado pelo regional do Caçulinha, o compositor desfila seus grandes sucessos (assista aqui ao vídeo completo); logo após “Mulata assanhada”, assim que Ataulfo dá a deixa – “Sei que vou morrer, não sei o dia” –, o público responde: “Levarei saudades da Maria”, cantando em seguida o refrão a plenos pulmões, num coral bonito de se ouvir. Cinco anos depois de seu lançamento, o samba recebia, através da voz do povo, seu definitivo atestado de perenidade na MPB.

    “Ataulfo Alves morreu ontem no Rio. Mas não como desejava: na cadência bonita do samba”, dizia a chamada no alto da página do Jornal da Tarde (SP) da segunda-feira, 21/04/1969. Mas por um triz seu desejo não se concretizou. Internado na Casa de Saúde São Sebastião, no Catete, para se operar de úlcera duodenal – problema agravado por uma vesícula atrofiada e uma icterícia, como ele mesmo revelara ao Jornal do Brasil do dia 13 –, levou consigo para o hospital seu violão, companheiro de tantos sambas. Após a cirurgia, feita no dia 15, apresentava uma recuperação bastante satisfatória, embora proibido de receber visitas num primeiro momento.

    Ao compositor Jair Amorim, que foi vê-lo na manhã de sábado, dia 19, Ataulfo – decidido a fazer uma seresta para alguns amigos – pediu, segundo o Jornal da Tarde de 21/04, “para convidar alguns colegas para a serenata, logo depois do jogo Flamengo e Botafogo”, no dia seguinte. Não houve tempo: no mesmo sábado, entrou em coma, vindo a falecer no domingo, dia 20 de abril, a dias de completar 60 anos, em 2 de maio.

    “Na cadência do samba” viria a receber mais de uma centena de regravações, nem só de artistas ligados a esse gênero. Os Novos Baianos mostraram sua versão no LP “Vamos pro mundo” (1974) (aqui o grupo interpreta a música numa apresentação para o programa de TV “Fantástico”, levado ao ar em maio daquele ano). O samba está em “Cássia Eller”, terceiro álbum da cantora, lançado em 1994 (veja aqui a saudosa artista ao vivo, em interpretação de voz e violão).

    A juventude que revitalizou a Lapa carioca no início do Século XXI nunca deixou o clássico de fora do repertório das rodas e dos shows, como mostram diversos vídeos na Internet, entre eles o do grupo Sururu na Roda, postado em 2006. Prova de que o “Lenço branco” de Ataulfo, sua marca registrada, continua passando de mão em mão através das novas vozes da MPB, como desejava o mestre: “Vai, meu lenço branco / Tremular noutras mãos / Vai manter a tradição do que é nosso / De geração a geração”.

    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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