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    Bossa nova em 78 rpm: aos 85 anos, Roberto Menescal tem ‘saudades do futuro’

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Foi rodeado de filhos e netos que o compositor e produtor Roberto Menescal comemorou seus 85 anos, completados no último dia 25 de outubro. Na véspera, passou café para nos receber em sua residência – uma casa num condomínio na Barra da Tijuca onde vive com Yara (sua companheira há 59 anos) e de onde sai o mínimo possível. A conversa foi no jardim, entre cachorros, tartarugas e principalmente suas bromélias, que ele cultiva às centenas, assim como suas histórias. Essas ele conta com prazer e leveza (é bossa nova até nisso), seja relembrando suas composições, seja falando das gravações e produções que fez. 

    Como a era dos discos de 78 rotações vai até 1964, são apenas sete as composições de sua autoria presentes aqui na Discografia Brasileira, todas em parceria com um personagem fundamental em sua história: o jornalista Ronaldo Bôscoli, nove anos mais velho que Menescal e que já tinha músicas gravadas quando se conheceram, na segunda metade da década de 1950. “Eu comecei a compor porque queria ser parceiro do Bôscoli, um cara que eu admirava e que acabou sendo um dos grandes amigos que fiz na minha vida”, recorda. “Volta e meia me perguntam como é que a gente se dava tão bem, mas o fato é que a gente se completava. Ele com o gênio forte dele, eu com o diálogo, o entendimento das coisas.”

    O início não foi tão fácil: primeiro porque foram necessários dois encontros fortuitos – numa festa no Jardim Botânico, depois na Praia de Copacabana – para que Ronaldo levasse fé no convite de Roberto: “Temos feito umas reuniões de música no apartamento de uma amiga nossa, uma menina chamada Nara, acho que você vai gostar.” Segundo porque, quando finalmente deu as caras, elegeu Carlos Lyra como seu parceiro na turma. “Eu ficava só olhando os dois fazendo música e esperando minha vez”, relembra. “Um dia o Carlinhos não apareceu, o Ronaldo ficou puto e aproveitei a chance.”

    Entre os sambas que a dupla fez estão clássicos da bossa nova, como “Rio”, gravado duas vezes em discos 78 rotações, ambas em 1963: com o conjunto vocal Os Cariocas e a cantora paulista Marlene. “Fui ao programa do Flávio Cavalcanti, que me pediu explicações, daquele jeito dele, sobre ‘essa bobagem de um rio que mora no mar’. Ele não tinha entendido que esse Rio era o de Janeiro”, diverte-se Menescal, relembrando que a música foi uma das muitas feitas durante as famosas reuniões de bossa nova na residência da família de Nara Leão. 

    Outra feita no famoso apartamento da Avenida Atlântica (no edifício nº 2.856), em Copacabana, foi “Telefone”, depois que Bôscoli – já então namorando Nara – escapuliu da festinha na sala e foi até o aparelho do apartamento, onde tentou ligar para outra garota, mas só dava ocupado. Na volta, comentou ao pé do ouvido com Menescal: “Já estou tentando há um tempão e nada. Parece que ela deu meu telefone pra mim.” “Será que alguém entende essa letra hoje?”, questiona. “Ninguém mais sabe que tuén-tuén era som de telefone ocupado e trim-trim é quando ele toca.” Aqui na Discografia Brasileira, o samba pode ser ouvido na voz de Agostinho dos Santos, que também gravou “Negro”, música que, a exemplo de “Dan cha cha cha” (gravada por Isaurinha Garcia em 1963) não está entre as mais conhecidas de Menescal e Bôscoli.

    Outro local importante para a parceria é Cabo Frio, cidade fluminense da Região dos Lagos, onde o violonista costumava ir para praticar pesca submarina. “Ronaldo morria de medo de mar, mas volta e meia pedia para ir comigo nessas pescarias. Vestia roupa de borracha e pé-de-pato, mas só mergulhava depois que a Nara dissesse para ele como estava a temperatura da água”, conta. “Me lembro bem do fim de tarde em que, depois de voltar do mar, ficamos vendo o anoitecer do Morro da Prainha: a noite caindo sobre aquele areal de dez quilômetros, a praia que não tem mais fim.” Foi quando compuseram “Nós e o mar”, que chegou aos discos de 78 rotações em gravações de Claudete Soares e Carminha Mascarenhas, ambas em 1962.

    Mais animada foi a pescaria em que o barco enguiçou, Roberto e a turma à deriva. A tarde já estava no fim quando o socorro chegou: no alívio do susto, foram rebocados para o continente rimando que “o barquinho vai, a tardinha cai...” Já no dia seguinte Ronaldo relembrou o esboço de melodia que Roberto cantarolava – para aliviar o ambiente – enquanto tentava religar o motor, aproveitando o barulho que se repetia: “taca-taca-taca-tá...” Engrenaram na composição de “O barquinho”, gravada em três discos de 78 rotações, todos de 1961: com Peri Ribeiro, o conjunto de Valter Vanderlei e Maysa. Esta última está presente na Discografia Brasileira cantando mais uma parceria de Menescal e Bôscoli: a singela “Dois meninos”.

    No porta-retratos: Menescal com Ronaldo Bôscoli e Luís Carlos Miele

    Não foi só no campo artístico que Maysa foi decisiva para a dupla Menescal e Bôscoli. Casada com este último desde 1961, ela foi responsável pelo início - no mesmo ano - da atividade profissional que acompanharia Menescal por toda a vida: a de produtor de discos. “Quando ela me convidou para produzir o LP ‘O barquinho’, avisei que nunca tinha feito aquilo. Ela me respondeu na lata: ‘Tudo tem sempre um começo. O seu é aqui.”

    A sensação de espanto foi a mesma quando, na segunda metade da mesma década, o executivo André Midani o contratou para produzir discos na gravadora Philips (depois Polygram), na qual atuaria também como diretor artístico, entre 1970 e 85. “Foi um período em que parei de tocar por completo, mas aprendi muito: sobre o mercado fonográfico e sobre como lidar com Gal Costa, Caetano Veloso, Raul Seixas, Ângela Rô Rô, Sidney Magal… ”

    Em 1971, produziu “Construção”, primeiro disco de Chico Buarque depois que este voltou da Itália, onde se exilou durante o regime militar. E para Elis Regina,  o histórico “Elis”, em 1972. “Ela me convidou para fazer essa produção e já chegou me dizendo o que queria: Edu, Chico, Caetano, Gil, Milton: duas inéditas de cada um”, relembra Menescal, que retrucou dizendo que seria difícil, pois todos estavam estourados.

    “Pedi a ela que me desse a chance de propor coisas novas e fui às fitinhas cassete que chegavam pra mim na gravadora e ficavam empilhadas na minha mesa. ‘Mas como é que eu vou gravar músicas de quem não conheço?’, perguntou. Respondi que depois a gente cuidava disso. Daí vieram ‘Mucuripe’ (Fagner), ‘Casa no campo’ (Zé Rodrix e Tavito), ‘Bala com bala’ (João Bosco e Aldir Blanc)…”

    Mesmo depois que pediu demissão da Polygram, em 1985 (durante uma turnê pelo Japão com a amiga Nara Leão), fez produções marcantes, como dois discos de sucesso em 1988: “Bênção, bossa nova”, de Leila Pinheiro, e “Aquarela brasileira”, de Emílio Santiago. “No início, ele resistiu ao projeto de regravar sucessos, disse que os fãs não iam gostar”, conta Menescal. “Ele, que vendia entre 10 mil e 12 mil cópias por disco, subiu pra 800 mil. Veio pra mim surpreso: ‘Que sorte, hein?’ Sorte nada, foi a primeira vez que pudemos meter a mão num trabalho seu. ‘Aquarela’ virou o disco das festas.”

    Causos que Menescal conta com indisfarçado prazer, não só porque são finais felizes, mas também porque tem noção do quanto se divertiu em todas elas. “Imagina que eu tinha meus 18, 19 anos e estava estudando pra entrar pro Banco do Brasil, pra Marinha e pra Faculdade de Arquitetura”, sorri, abrindo mais uma história. “Quem me desencaminhou foi Tom Jobim. Depois de uma gravação que fiz a convite dele, saímos para jantar e contei o que vinha fazendo. Ele: ‘Mas você não quer ser músico? Larga essas bobagens!’ Meu pai não entendeu nada, só cortou a mesada e pediu que eu fosse conversar com meus irmãos.”

    Menescal se vê entre Sylvia Telles, Tom Jobim (de paletó) e Marcos Valle

    De fato, dos quatro filhos de Francisco Menescal e Dulce Batalha (Bruno, Ricardo e Renato completavam o quarteto) só Roberto não seguiu o roteiro traçado pelo pai, engenheiro civil de profissão. D. Dulce era capixaba e conheceu Francisco quando este foi abrir estradas no Espírito Santo. Casaram-se e fixaram residência em Vitória, onde nasceu Roberto (25-10-1937), que tinha apenas três anos quando a família se mudou para o Rio de Janeiro, indo morar numa casa na Rua Jardim Botânico. Já tinha onze quando veio nova mudança, desta vez para Copacabana, num apartamento na recém-inaugurada Galeria Menescal, que pertencia a um primo de Seu Francisco, Humberto Menescal. “Me perguntavam se eu era dono da galeria e eu não confirmava nem negava. Dava pra tirar uma onda, né?”

    Nada comparável, no entanto, à ‘onda’ que foi o primeiro concerto internacional da bossa nova, realizado há 60 anos – 21 de novembro de 1962 – no suntuoso Carnegie Hall, em Nova York. Curioso que Menescal por pouco não ficou fora da noite histórica. “Eu não fazia ideia de que lugar era esse ou da importância desse show, tanto que, quando me telefonaram convidando, respondi que não podia, pois já tinha uma pescaria marcada em Cabo Frio”, proseia. “Até que Tom Jobim (ele de novo!) me ligou em seguida: ‘Tá maluco, cara? Isso não é por nós, não. É pelo Brasil’.” No fim das contas, Menescal subiu no palco não para tocar violão (pois não conseguiu ensaiar com os conjuntos do show), mas para soltar a voz. “Cantei ‘O barquinho’ e ainda errei a letra (ouça aqui). Mas foi uma noite linda e muito aplaudida.”

    Que ninguém pense, no entanto, que as histórias de Menescal têm qualquer ranço saudosista. “Foi bom, fui feliz à beça, mas passou, né? Não curto essa de ficar revivendo o que eu fiz, tanto que evito ter fotos minhas na parede, álbuns, essas coisas”, filosofa. “Eu tenho saudades é do futuro.”

    Fotos: Pedro Paulo Malta

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