A Maior. A Incomparável. A Favorita da Aeronáutica. A que canta e samba diferente.
Epítetos que dão a medida da popularidade da cantora Marlene na história do rádio no Brasil. Mas que, talvez pela mesmo caráter superlativo, passam longe de definir a importância que ela teve como artista: pela expressão (vocal e corporal) com que “dizia” as músicas de seu repertório; pela excelência com que lançou sucessos de carnaval – de marchinhas espirituosas a sambas de cunho social; pela maneira como se atualizou – em termos de repertório e atitude – ao longo de sua carreira, como cantora e atriz.
Tudo bem diferente do que estava previsto quando nasceu, há cem anos (22 de novembro de 1922), numa família pobre de imigrantes italianos do bairro da Bela Vista, em São Paulo. Ainda mais quando o pai, o ferreiro Vitório, faleceu tuberculoso a uma semana do nascimento da menina, deixando viúva Antonieta, costureira e professora, com sete filhos para criar. E assim, logo que concluiu o ensino ginasial no Colégio Batista Brasileiro, a caçula da prole entrou para a Faculdade de Comércio do Estado de São Paulo, para se tornar contadora – profissão que chegou a exercer, brevemente, num escritório de representação de fumo.
As cantorias corriam sempre em paralelo: primeiro na escola e depois no programa Hora do Estudante, que começou a frequentar na Rádio Bandeirantes de São Paulo. Até que o passatempo começou a ficar sério e a emissora precisou criar um nome artístico para a moça – que se chamava Victória Bonaiutti de Martino – para evitar encrenca com a mãe, evangélica fervorosa. Dali por diante passou a ser Marlene (como a alemã Marlene Dietrich, estrela de Hollywood), cada vez mais aplaudida no rádio paulistano.
Logo seguiu para o Rio de Janeiro, conseguindo as primeiras oportunidades nos Cassinos Icaraí e da Urca, que viviam seus últimos tempos de glória antes da proibição dos jogos de azar, em 30 de abril de 1946, determinada pelo general Eurico Dutra, então presidente da República. Felizmente, por essa época já tinha caído nas graças das emissoras cariocas de rádio: primeiro na Globo, depois na Mayrink Veiga e por fim na Rádio Nacional, que a contratou em 1947. Tinha acabado de gravar seu primeiro disco: um 78 rotações na Odeon que saiu em agosto de 1946, com os sambas “Swing no morro” (Amado Régis e Felisberto Martins) e “Ginga, ginga, mulato” (Hélio Nascimento e João de Deus), interpretados por Marlene com os Brazilian Serenaders.
Logo estaria cantando no Copacabana Palace e lançando discos em sequência – um segundo na Odeon e mais cinco na Star. Até que chegou a sua gravadora mais constante, a Continental, onde gravou de 1948 a 55. Entre os inúmeros sucessos que lançou, destaca-se o disco de outubro de 1949 em que fez as gravações originais de dois sucessos da dupla Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: os baiões “Qui nem jiló” e “Macapá”. Em ambas, Marlene divide o microfone com Os Cariocas e a Orquestra Tabajara.
A trajetória seria a de mais uma grande artista da época não fosse pelo concurso de rainha do rádio de 1949 – ano em que a Associação Brasileira de Rádio tinha decidido mudar as regras do certame, que nas edições anteriores era decidido pelos cronistas. Pois em 49 a decisão seria no voto popular, através de cupons comprados pelos fãs, com a renda revertida para a construção do “hospital dos radialistas”. E aí que, quando todos contavam com a coroa na cabeça da popularíssima Emilinha Borba, veio a vitória surpreendente de Marlene.
Os 529.982 votos que lhe valeram o título (deixando Emilinha em 3º lugar, atrás também da vice-campeã Ademilde Fonseca) tiveram participação direta da Companhia Antarctica Paulista: a empresa abraçou a campanha de Marlene em troca de tê-la como garota propaganda do novo refrigerante que lançava no mercado, o Guaraná Caçula. Uma jogada bem-sucedida, ainda mais depois das reações dos fãs de Emilinha, da festa dos fãs de Marlene e do tanto que as revistas se aproveitaram das tretas.
Embalada pelo bafafá, a Continental – onde Emilinha também era contratada – resolveu juntá-las em gravações a serem lançadas no início de 1950. Nelas estão um samba, “Eu já vi tudo” (Peterpan e Amadeu Veloso), e duas marchas: “Casca de arroz” (Roberto Roberti e Arlindo Marques Jr.) e “A bandinha do Irajá” (Murilo Caldas). Todas as três gravações muito bem feitas (as duas primeiras com acompanhamento da Orquestra Tabajara), mas nenhuma com repercussão à altura das contendas entre seus fãs no auditório-front da Rádio Nacional.
Pois sucesso mesmo foi o que Marlene fez com “Se é pecado sambar” (Manoel Santana), sua principal aposta para o mesmo carnaval de 1950, primeiro após o concurso. Já na folia de 51, o lançamento de “Sapato de pobre” (Luiz Antonio e Jota Junior) inaugurou um capítulo importante em seu repertório: o dos sambas com temática social, entre eles “Zé Marmita” (Luiz Antonio e Brazinha, 1953), “Patinete no morro” (só de Luiz Antonio, 1954) e “Saudosa maloca” (Adoniran Barbosa, 1955).
Desta linhagem é também o samba “Lata d’água” (mais um de Luiz Antonio e Jota Junior), que Marlene gravou para o carnaval de 1952, com grande arranjo do maestro Radamés Gnattali – é possivelmente o maior sucesso de sua carreira. Contribuiu para sua popularidade a inclusão no repertório do filme “Tudo azul”, de Moacyr Fenelon, em mais uma grande performance de Marlene.
Outro sucesso na mesma temática é “Lamento da lavadeira”, composição de Monsueto Menezes (com Nilo Chagas e João Violão, em 1956), também autor (com Arnaldo Passos) de “Mora na filosofia”, que Marlene gravou em disco – acompanhada pelo conjunto de Raul de Barros – para o carnaval de 1955.
Paralelamente aos sambas de protesto, a voz do povo também teve vez em seu canto através das marchinhas jocosas que Marlene lançou em disco, ecoadas pelo povo nos salões e nos blocos de rua. Como as mexeriqueiras “Marcha do sapinho” (Humberto Teixeira e Norte Victor), de 1953, e “Coitadinho do papai” (Henrique de Almeida e M. Garcez), seu primeiro sucesso carnavalesco, gravado por ela com os Vocalistas Tropicais para a folia de 1947. E também as insinuantes “Eva” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira) e “Sereia da areia” (João de Barro e Antonio Almeida), que ficaram entre as mais cantadas de 1952.
Há sucessos também em outros gêneros musicais além do samba e da marchinha. Como a valsa “Marlene meu bem”, que Mário Lago compôs como prefixo do programa que ela comandava na Rádio Nacional ao lado do marido, o ator Luiz Delfino, que divide com ela a gravação, feita em 1955. E também “Tome polca” (José Maria de Abreu e Luís Peixoto), polquinha serelepe com ares de 1900 que Marlene gravou em 1950, com acompanhamento de Guio de Moraes e Seus Parentes.
No fim dessa mesma década, faria história como atração do Olympia, de Paris, dividindo a noite com Edith Piaf em apresentações no primeiro trimestre de 1958. De volta ao Brasil, emplacaria mais um grande sucesso em 78 rotações com “O apito no samba”, outra composição de Luiz Antonio (em parceria com Luiz Bandeira) que ela gravou – com toda a batucada a que tinha direito – para o carnaval de 1959. Mais sutis são as gravações que fez de “Saudade da Bahia” (Dorival Caymmi) em 1957 (quatro anos antes da famosa regravação de João Gilberto) e das bossa-novistas “Brigas nunca mais” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), em 1959, e “Rio” (Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal), em 1963.
Nessa época, Marlene já se dividia entre a música e a carreira de atriz, que iniciou em fins da década de 1940 e seguiu em sua trajetória até os anos 1980. Entre revistas, comédias e dramas, destacam-se trabalhos como “Depois do casamento” (1952), que marca a criação de sua companhia teatral com Luiz Delfino; “Botequim” (1972), de Gianfrancesco Guarnieri; e a “Ópera do malandro” (1979), de Chico Buarque, em cujo LP gravou “Viver do amor” e “Uma canção desnaturada”.
Outros espetáculos marcantes de que participou também renderam grandes discos. Como “Carnavália”, que resultou em dois LPs (volume 1 e volume 2) e traz registros do show que Sidney Miller e Paulo Afonso Grisoli montaram no Teatro Casa Grande (1968) e no qual Marlene dividia os microfones com os cantores Blecaute e Nuno Roland e com a jornalista Eneida de Moraes. Já no espetáculo “Te pego pela palavra”, que estreou na boate Number One (1974), ela interpretava sozinha o repertório definido por Hermínio Bello de Carvalho, intercalando antigos sucessos carnavalescos e canções engajadas.
Neste último ela reafirma a personalidade já demonstrada em “É a maior!” (1970), show/disco também dirigido por Hermínio, aqui em parceria com Fauzi Arap. Até a voz – mais rascante, pungente e encorpada – é uma versão mais madura e potente do canto (às vezes juvenil) que se ouvia em suas gravações até o início da década de 1960 – aí incluídos seus primeiros LPs: “Marlene apresenta sucessos de Assis Valente” (Sinter, 1956), “Explosiva!” (Odeon, 1959), “Caixinha de saudade” (Odeon, 1960) e “Sa-sa-ruê” (Continental, 1963).
A estes títulos juntam-se ainda o LP “Antologia da marchinha” (Philips, 1977) e 145 gravações em discos 78 rotações, fora os compactos, as coletâneas e outros projetos de que participou. Entre os discos de carreira que fez em sua trajetória estão ainda um CD (“Estrela da vida”, 1998) e um DVD (“Marlene: a rainha e os artistas do rádio”, 2008), últimos lançamentos da artista, reclusa na fase final de sua vida.
Marlene tinha 92 anos quando faleceu, em 13 de junho de 2014, no Hospital Casa de Portugal, no bairro carioca do Rio Comprido, onde havia se internado uma semana antes, com um quadro de pneumonia severa. Seu corpo foi velado no saguão do Teatro João Caetano, com a presença de parentes, amigos e, claro, seus apaixonados fãs – como os da Associação Marlenista, que seguiria divulgando os feitos e glórias de sua “Incomparável”. Após a cremação, no Memorial do Carmo (Caju), o filho único de Marlene, Sérgio Henrique, atendeu ao último pedido da mãe, jogando suas cinzas na Baía de Guanabara.
>> Para saber mais sobre (e ouvir) a grande cantora centenária, acesse o especial “Marlene, a incomparável”, produzido por Joaquim Ferreira dos Santos para a Rádio Batuta.
Foto: IMS / Coleção José Ramos Tinhorão