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    Maestro Cipó, 100 anos: lembranças de um ‘lorde’ do saxofone, bailes e gafieiras

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    No último dia 24 de novembro, passou em branco o centenário de nascimento de um personagem importante na história da nossa música popular: Orlando Silva de Oliveira Costa, artista brasileiro que, se por um lado não teve o cartaz do xará cantor (das multidões), por outro foi um dos nomes mais respeitados no ambiente musical de sua época – as décadas de 1940 a 80. E este nome, na verdade um apelido que ganhou pela magreza na juventude, era Cipó. Ou melhor: Maestro Cipó, que além de reger também compunha, escrevia arranjos e era saxofonista renomado – segundo o bandleader Carlos Machado (Diário da Noite, 14-05-1958), chegou a ser “classificado pela revista americana Metronome como o quarto sax-tenor do mundo”.

    Nada mal para o músico que começou como autodidata, na infância, tocando uma flautinha de bambu que ele mesmo havia feito. “Quando garoto, costumava seguir a banda de música de sua cidade natal, Itapira, no interior de São Paulo, e se deliciava com os acordes”, contou o jornal O Fluminense (29-06-1986). “Ivanir Batista Nascimento, o mestre da banda, ficou encantado e resolveu ensinar música àquele pequeno prodígio, mal sabendo que estava abrindo a primeira porta para o ilustre maestro Cipó.” Segundo a matéria, assinada pela jornalista Leila Pinagé, o regente da banda ainda perguntou ao menino como fazia “acordes tão perfeitos” num “instrumento tão artesanal”: “Eu tampo só metade dos buraquinhos, para fazer os semitons.” 

    Tinha dez anos quando aprendeu a tocar clarinete, seu primeiro instrumento, seguido do saxofone, que passou a tocar na adolescência, participando das apresentações da bandinha itapirense, onde ficou por três anos. Já estava com seus dezoito (1940/41) quando, por necessidade financeira, mudou-se para São Paulo, capital, para defender seu sustento. Nas horas vagas do trabalho – como pintor de paredes – passava o tempo nas gafieiras, observando os músicos e arriscando-se nos vários instrumentos, como conta a mesma matéria do jornal O Fluminense: “Um dia, o baterista do conjunto de uma gafieira que Orlando frequentava, conhecido por João Lombriga, por ser muito alto e magro, começou a chamá-lo de Cipó, porque ele apresentava o mesmo tipo físico do músico.”

    Só em 1944, quando mudou-se para o Rio de Janeiro, pôde estudar teoria musical, com professores como o maestro Cesar Guerra-Peixe, na Escola Nacional de Música. Nessa época, já se sustentava como instrumentista nos cassinos cariocas e orquestras de baile como a do Copacabana Palace, nas quais ampliou ainda mais a diversidade de seu repertório. Em 1950, quando foi contratado pelos Diários Associados (para tocar na Tupi: Rádio e TV), já era fluente na linguagem musical estadunidense – uma das marcas de sua sonoridade.

    Não à toa, Carlos Machado destacou esta faceta no breve perfil dedicado a Cipó no Diário da Noite (14-05-1958): “Seu gênero preferido é o jazz, ao qual adapta nossas músicas.” Quem assina embaixo desta afirmação é o compositor e pianista João Roberto Kelly, que conviveu com o maestro nos corredores da TV Tupi, como contou num breve depoimento para este texto. “Ele era elegante não só no jeito de ser, como na música que fazia. Um craque no sax-tenor, assim como nas orquestrações: sabia tudo de jazz, era um craque nessa matéria.”

    Pois na Discografia Brasileira o jazz está presente não só na sonoridade de seu conjunto – Cipó e Sua Orquestra – como também em suas composições: como “Um choro com swing” (solado pelo trompetista Murilo em 1946), “Crazy idea” (com Cipó e Sua Orquestra, também em 1946), “Ineta” (arranjo de Cipó em 1954) e “Baterista maluco” (gravado por Turquinho e Sua Orquestra em 1960).

    Mesmo nos choros de sua autoria (gênero musical predominante em sua obra lançada em 78 rotações), o som de big band das gravações que fez evidencia uma certa inspiração em Glenn Miller e cia., como se pode ouvir em “Contaminado”, “Interpretando” (ambos de 1946) e “Escalando” (1950). Cipó também teve suas composições gravadas por “concorrentes”, como Fon-Fon e Sua Orquestra (“Deixa por minha conta”, 1944), Peruzzi e Seu Quarteto de Saxofones (“Dedicação”, 1945) e a Orquestra Todamérica (“Melódico”, 1950).

    Também de Cipó é a autoria de dois sambas-canção na Discografia Brasileira: “Busto calado” (com Rubens Campos), homenagem a Noel Rosa gravada por Carmen Costa em 1952, e a romântica “É sempre amor”, que saiu no ano seguinte cantada por Dóris Monteiro. 

    Já como acompanhante de gravações de outros solistas (e provável arranjador, já que a nobre função não era creditada) são mais numerosas na Discografia Brasileira as ocorrências do nome de Cipó – quase sempre creditado como Cipó e Sua Orquestra. Como a dupla Joel e Gaúcho, que o conjunto acompanha no samba “Adeus morena” (Antônio Almeida) e no bolero “Noemi” (Pedro Caetano e Alcir Pires Vermelho) num disco de 1945. No ano seguinte, tocou com o cantor Roberto Paiva nas gravações originais do fox “Subindo ao céu” (Mário Rossi e Roberto Martins) e do samba “Abandono” (Roberto Martins e Orestes Barbosa).

    Em 1951, foi a vez de Cipó e Sua Orquestra acompanharem os Garotos da Lua no disco que marca a estreia de João Gilberto, solista em ambos os lados, cantando o bolero “Quando você recordar” (Valter Sousa e Milton Silva) e o samba “Amar é bom” (Zé Kéti e Jorge Abdala). Já com o showman estadunidense George Green, foram 12 as gravações de Cipó, entre elas uma do samba “Maracangalha” (de Dorival Caymmi, com letra em inglês do próprio Green) e uma do rock “Little George” (outra de Green), ambas de 1957.

    Cipó também deixou seu som registrado em uma série de LPs marcantes à frente de sua orquestra, como “Assim eu danço...” (Sinter, 1958), “Melodias favoritas da tela” (Sinter, 1961) e “Ritmo espetacular” (Odeon, 1965), entre outros.

    Na década de 1960, seus arranjos para os diversos programas na Rádio e na TV Tupi deram popularidade a seu trabalho, especialmente depois de ter sido eleito pelo Correio da Manhã o maestro do ano de 1961, temporada na qual “brilhou intensamente”, segundo o períódico, na edição de 24-12-1961. Já no Diário de Notícias (30-11-1964), recebeu nota dez do colunista Aerton Perlingeiro pela sonoridade que imprimiu à programação da Tupi: “Cipó é moderno, é brilhante.”

    Quem viu de perto, como a cantora Áurea Martins, concorda. “Cipó era admirado pelo talento musical e também pela elegância com que se apresentava, sempre à frente de sua famosa orquestra de bailes, com músicos do mais alto gabarito”, relembra a crooner da noite carioca. “Quando venci o programa A Grande Chance, na TV Tupi, e fui contratada pela emissora, tive a oportunidade de conviver com Cipó, que trabalhava como diretor musical de toda a programação. Uma coisa que me orgulha: ele tinha uma grande admiração pelo meu canto – pode?”

    Nos anos 1970 e 80, seguiu à frente de sua orquestra popular, fosse como atração frequente nas gafieiras e bailes da noite carioca, fosse como contratado de outras emissoras de TV, como a Rede Globo e o SBT. Ele ainda fundou uma produtora de jingles, a Tape Spot, onde fez seus últimos trabalhos, na virada entre as décadas de 1980 e 90.  

    Cipó estava a 21 dias de completar 70 anos quando faleceu, em 3 de novembro de 1992, vítima de uma embolia pulmonar sofrida durante uma cirurgia para a colocação de quatro pontes de safena, no Hospital Silvestre, no bairro carioca de Santa Teresa. Seu corpo foi sepultado no Cemitério São João Batista, em Botafogo.

    “O Maestro Cipó foi um grande músico brasileiro, é uma pena que hoje seja menos lembrado do que merece”, diz a cantora Eliana Pittman, em depoimento para este texto. “Tive a sorte não só de trabalhar com ele, no Copacabana Palace, como também de ter um ótimo convívio com ele e toda a sua família: a esposa, D. Carmem e os filhos, pois éramos vizinhos na Rua Inhangá, em Copacabana. Era um lorde, viu?”

    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão/IMS

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