“Mas se eu contar
O que é que pode um cavaquinho
Os hômi num vai crer”
Consta que o samba “Kid Cavaquinho” (João Bosco e Aldir Blanc) não foi inspirado em um personagem real. Mas os versos acima parecem feitos sob medida para um dos grandes – e mais populares – instrumentistas da história da música brasileira: Waldir Azevedo, autor de sucessos imbatíveis do repertório de choro e que, com seu cavaquinho, “cantou de galo” no rádio, na TV, em sua extensa discografia e em turnês pelo mundo todo. Uma trajetória que merece ser lembrada sempre, mas especialmente neste ano, quando se completa o centenário de seu nascimento (27-01-1923), no bairro de Piedade, Zona Norte do Rio de Janeiro, filho único de Benedita Santos Lima e Walter Azevedo, funcionário da Light.
“Nunca pensei em poder viver e sustentar minha família com um pedacinho de madeira e quatro arames esticados”, disse certa vez num programa de TV, com o bom humor característico com que revisitava a própria carreira. “Eu às vezes chego a pensar que isso é uma ousadia muito grande, sabe?” É que Waldir, quando menino, queria mesmo ser aviador. Mas o sonho acabou ficando pelo caminho e a aptidão musical, que ele já vinha demonstrando em apresentações escolares (no Colégio Assunção, em Cascadura, e no São Bento, no Centro, onde cursou o ginasial), acabou ganhando vez.
A primeira história que Waldir costumava contar sobre sua iniciação musical ainda não tinha cavaquinho: aos dez anos de idade, ele gostava de ver um amigo de apelido Marreco brincando de tirar som de uma flauta metálica e um dia quis comprar o instrumento. O garoto pediu dois mil réis e Waldir foi à luta. “Deu o que fazer para eu conseguir o dinheiro!”, contou em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS), em 1967. “Até passarinho eu cacei pra vender na feira.” Pois foi com a flautinha que experimentou o sucesso pela primeira vez: “Meus pais me levaram no Jardim do Méier e comecei a tocar músicas de carnaval. Quando percebi, estava rodeado de pessoas.”
Só depois foi aprendendo, aos poucos, os instrumentos de corda: violão, violão-tenor, bandolim e cavaquinho. Mais do que suficiente para tentar a sorte na Rádio Guanabara – aprovado no programa de calouros da emissora, com a nota máxima pela interpretação do choro “Cambucá” (Pascoal de Barros), conseguiu emprego como acompanhador de outros participantes no mesmo programa. Outro trabalho nesse mesmo início dos anos 1940 foi como músico do Cassino Copacabana, depois que encerrava o expediente como escriturário na Light (emprego em que seguia os passos do pai), de onde aliás dava suas escapadas diurnas para apresentações em outras rádios, como a Mayrink Veiga e a Cruzeiro do Sul.
Espanta que tenha conseguido tempo de namorar e até casar, com Olinda Barbosa, em 1945. Passavam a lua-de-mel numa fazenda em Miguel Pereira quando um telefonema atrapalhou os planos: era um funcionário da Rádio Clube do Brasil convocando Waldir para comparecer à emissora com certa urgência. “O Benedito Lacerda havia assinado com outra rádio e precisavam formar um conjunto logo”, contou o cavaquinista. “Disse à minha mulher que teríamos que interromper a lua-de-mel, pois o cachê compensava. Ela: ‘Vá você, que daqui eu não saio!’” Quem o escalou para a tarefa foi o violonista Dilermando Reis, que após seis meses passou a direção musical a Waldir, agora também líder de regional.
Entre programas de rádio e participações em discos de outros artistas, teve sua primeira composição gravada. Surpreendentemente não se trata de um choro, mas um samba: “Hoje, amanhã e depois”, parceria com Risadinha do Pandeiro (apelido de Moacyr Gomes) que o cantor Déo lançou em março de 1949. Dali a dois meses, em maio, Waldir lançaria seu primeiro disco como solista, a partir de um convite de Braguinha, que era diretor artístico da Continental e gostou de ouvi-lo tocar num dia em que passou pela Rádio Clube, no mesmo prédio da gravadora. “Por que você não grava aquele choro com a gente?”, contou o dirigente e compositor, no depoimento do cavaquinista ao MIS.
O choro era simplesmente “Brasileirinho”, que Waldir compusera em 1947 atendendo ao pedido de um sobrinho de dez anos de idade: o menino brincava com um cavaquinho sem três cordas (só tinha a ré) e pediu que o tio fizesse uma música, que começou como uma brincadeira. “Esta composição lhe rendeu o suficiente para comprar um apartamento à vista”, contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no livro “A canção no tempo – vol. 1” (Editora 34/1997). Do outro lado do disco (Continental 16050, de maio de 1949), Waldir lançou “Carioquinha”, também de sua autoria.
Até que no ano seguinte (1950), quando entrou em estúdio para gravar o choro balançado “Vê se gostas” (parceria com Otaviano Pitanga), faltava a música para completar o disco, como Waldir contou no depoimento ao MIS, relembrando a sugestão que recebeu de Chiquinho do Acordeom: “Por que você não grava aquele choro que você tocou lá em Friburgo e eu gostei? Aquele choro delicado.” Gravou, aproveitando como nome o adjetivo usado pelo próprio Chiquinho, “Delicado”, que superou “Brasileirinho” em termos de sucesso – leia mais neste post sobre o famoso baião de Waldir. “Talvez tenha sido um dos discos, se não o disco mais vendido, da Continental”, afirmou Braguinha, no mesmo depoimento.
Assim, é provável que poucos tenham se espantado quando, em 1951, Waldir foi mais uma vez ao topo das paradas de sucessos com o choro romântico “Pedacinhos do céu”, composto por ele em homenagem às filhas, Miriam e Marly. Surpresa, no caso deste choro, só mesmo saber que ele, assim como “Brasileirinho”, saiu no lado B de seu disco, contrariando uma prática na época, de reservar o lado A para a principal aposta de sucesso da gravadora – no caso do disco de “Pedacinhos do céu”, a aposta era o ótimo e menos conhecido “Pisa mansinho”, choro dançante de Jorge Santos.
A cantora potiguar Ademilde Fonseca, já então famosa por cantar ligeiro, foi outra que fez muito sucesso com os choros de Waldir, lançando em sequência as versões cantadas de “Brasileirinho” (com versos de Pereira Costa, em 1950), “Delicado” (letra de Ari Vieira, em 1951) e “Pedacinhos do céu” (letrada por Miguel Lima, também em 1951). As gravações da “Rainha do Chorinho” certamente contribuíram para a popularidade dos choros de Waldir, mas vale ressaltar que os próprios lançamentos do cavaquinista – todos anteriores aos registros de Ademilde – tiveram ótimas vendas.
No depoimento ao MIS ele relembrou o susto que levou ao chegar no caixa da Continental e receber um bolo de notas de dinheiro um mês após o lançamento de “Brasileirinho”: “Cento e vinte contos. Eu nunca tinha visto tanto dinheiro! Embrulhei tudo num jornal e, pela primeira vez na vida, fui pro Méier de táxi. Já em casa, minha mulher se assustou: ‘Meu filho, o que você andou fazendo? Roubou alguém?’”
A veia de compositor seguiu fértil nos anos seguintes, como em 1952, quando lançou números importantes em sua obra, como a valsa andada “Chiquita” e o choro dolente “Mágoas de cavaquinho” (com Fernando Ribeiro), que figuram entre as 70 ocorrências do nome de Waldir Azevedo como autor aqui na Discografia Brasileira.
Se nenhuma outra composição dele alcançou a popularidade dos sucessos iniciais, por outro lado as gravações seguintes evidenciam a técnica apurada que aprimorou com as sucessivas apresentações em shows e programas de rádio que passou a fazer. Como que pondo à prova sua técnica e agilidade, lançou em 1953 números como o choro “Brincando com o cavaquinho” e a czarda (gênero tradicional húngaro) “Voo do marimbondo”, esta última em rota tangente à do russo Rimsky-Korsakov em seu famoso “Voo do besouro”, que também inspirou Jacob do Bandolim a planar em “O voo da mosca”.
Já da música estrangeira de fato, há alguns exemplares entre as 80 gravações que fez como solista em discos de 78 rotações. Entre elas estão a “parceria” que promove entre Gounod e Bach na “Ave Maria com prelúdio”, que gravou em 1953, e as profanas “Balada de Bat Masterson” (Corwin e Ray) e “O passo do elefantinho” (Henry Mancini), que importou do repertório estadunidense no início da década de 1960. Mais inspiradas são as interpretações que deu a clássicos do samba, como “Na Baixa do Sapateiro” (Ary Barroso), que gravou em 1955, e “Na cadência do samba” (Ataulfo Alves e Paulo Gesta), em 1963.
A essa altura, já ia longe sua discografia em LP, aberta em 1957, com “Cavaquinho maravilhoso”, e seguida de dezenas de lançamentos, como os emblemáticos “Tocando para você” (1971) e “Minhas mãos, meu cavaquinho” (1976). Ambos retratam a fase brasiliense do músico, que viveu na capital do país de 1971 até sua morte, em 20 de setembro de 1980, aos 57 anos, vítima de um aneurisma na aorta abdominal. Nesta última década de vida, contribuiu para a consolidação do Distrito Federal – já homenageado por ele em “Dançando em Brasília” (1959) – como um dos principais polos do choro no Brasil.
Também digna de nota é sua participação em LPs como “Brasília Ritmos – Ritmos do Brasil”, disco coletivo também de 1959, com registros do conjunto montado para excursionar pela Europa com recursos da Lei Federal Humberto Teixeira, criada para promover a música brasileira no exterior. As participações de Waldir nestas caravanas – juntamente com Sivuca, Poly e outros grandes músicos – são apenas uma parte da bem sucedida carreira internacional que construiu.
“Brasileirinho”, por exemplo, foi gravada por inúmeros intérpretes estrangeiros (entre eles o japonês Yo-Yo Ma e o conjunto alemão German Brass) e acabou eternizado nas apresentações de solo da ginasta gaúcha Daiane dos Santos nas Olimpíadas de Atenas (2004) e outras competições internacionais. Já “Delicado” correu cinemas do mundo – em filmes como “Diários de motocicleta” (Walter Salles, 2004) e “O irlandês” (Martin Scorsese, 2019) – e foi gravado por artistas do quilate de Carmen Miranda, que cantou o famoso baião em sua última aparição pública, a poucas horas de sua morte (05-08-1955), no Jimmy Durante Show, programa da TV estadunidense NBC.
Provas de que Waldir Azevedo conseguiu não só sustentar muito bem sua família com o tal “pedacinho de madeira com quatro arames esticados”, como também entrou para a história da música brasileira, ampliando o alcance do legado de cavaquinistas antecessores, como os pioneiros Mário Álvares e Nelson Alves, o bandleader Canhoto (Waldiro Tramontano), os modernos Garoto (Aníbal Augusto Sardinha) e José Menezes, e Jonas Pereira da Silva, craque nos solos e no centro, entre muitos outros. A Waldir coube o feito de levar o cavaquinho – e com ele o choro – ao mapa mundi da música.
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS