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    Uma manhã de prosa com Leny Andrade: memórias da carreira na chegada aos 80

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Cabelo feito, rosto maquiado, brincos e colar. A senhora esbelta no canto do sofá, de poucos gestos e fala pausada, talvez já não se pareça tanto com a cantora foguenta e espevitada de alguns anos atrás. Mas, sim: é a mesmíssima Leny Andrade, às vésperas de completar 80 anos, neste 26 de janeiro de 2023. A data redonda foi o motivo da conversa que marcamos em sua casa: a de número 2 da Rua Nair Bello, onde Leny vive desde 2018, no Retiro dos Artistas, em Jacarepaguá.

    “Pode chegar, fica à vontade”, disse sorridente, antes de me dar um corte logo na primeira pergunta, com direito a dedo em riste: “Você para de me chamar de senhora!” De fato, tratamento cerimonioso não combina com Leny, seja por seu humor, seja pela franqueza com que conta suas histórias. “Sou carioca do Méier: foi lá também que começou minha história com a música, mamãe me ensinando piano quando eu tinha seis anos.” Tanto que já estava encaminhada musicalmente quando, mais adiante, seguiu com os estudos como bolsista do Conservatório de Música.

    Dona Ruth só torceu o nariz para o repertório popular que a filha escolheu quando encasquetou de ser cantora. “Mamãe preferia que eu cantasse mais pro chique”, relembra Leny, que tinha nove anos quando encarou pela primeira vez o auditório lotado de um dos programas de maior audiência da Rádio Tupi, o Clube do Guri. “Era um sucesso danado aquilo, mas sabe que eu não ficava nervosa? E olha que eu só cantava coisas de gente grande, tipo samba-canção”, recorda. “Desde novinha era meu gênero musical preferido, principalmente as coisas da Dircinha e da Dalva.”

    Não à toa foi cantando um samba-canção (“Risque”, de Ary Barroso) que passou no teste – levada pelo pai, o clínico geral Gustavo da Silva – para cantar no Clube do Guri. E depois, quando estreou no Programa Cesar de Alencar, na Rádio Nacional, interpretou “Se eu morresse amanhã de manhã” (Antônio Maria), que aprendeu a cantar ouvindo Dircinha Batista: “Aquilo era uma coisa no meu coração!” Já do repertório de Dalva de Oliveira gostava de tudo, especialmente as coisas do Herivelto Martins, um dos meus compositores preferidos: Herivelto doía no meu calo!”

    Tudo isso em plena adolescência – mas ai de quem perguntar se ela foi menina prodígio: “É muito chato criança sendo exibida!” Prefere dizer que foi precoce. E foi mesmo: estava ali pelos 15-16 anos quando começou a se apresentar em clubes da Zona Norte (“Menos nas gafieiras, que os velhos não deixavam”) e no Beco das Garrafas, em Copacabana, como pianista e cantora da boate Baccara, com autorização dos pais. Até que, certa noite, pediu ao Dr. Gustavo para levá-la à boate vizinha, Little Club, para ouvir a cantora que vinha fazendo o maior sucesso no Beco.

    “Era Dolores Duran: você não imagina a paixão que me deu quando ela abriu a boca!” No livro “A noite do meu bem” (Companhia das Letras, 2015), Ruy Castro conta que foi nessa noite – o ano era 1959 – que Leny conheceu aquela que seria uma de suas marcas registradas, o scat singing, ao ver Dolores cantar “How high the moon”, clássico do jazz composto por Morgan Lewis, com letra de Nancy Hamilton. A cantora-compositora seria, para sempre, uma das maiores influências de Leny, que, nesse mesmo ano, gravou a romântica “Quem sou eu”, de Dolores com o fiel parceiro Ribamar.

    No outro lado do disco – Mocambo 15280 – está o igualmente sofrido “Menos por você”, bolero de Hianto de Almeida e André Rosito. “Há quem pense que o bolero entrou na minha vida no tempo em que eu morei no México, mas a paixão é muito mais antiga, desde que eu comecei a ouvir Lucho Gatica, menininha ainda”, rebobina Leny, que viveu seis anos na Cidade do México (1966-1972), onde foi atração da principal casa noturna da época, o Riguz Bar. “Minha melhor lembrança mexicana? Os homens, claro! Minha Nossa Senhora... Eu pintei e bordei.”

    Consta que a vida romântica foi, de fato bem agitada, com direito a um breve casamento (1980-1982) com o escultor espanhol Carmelo Senna. Mas a citação mais carinhosa de Leny em nossa conversa foi ao compositor Claudionor Nascimento, que conheceu nos tempos de colegial: “Ele era meu amor, fazia tudo por mim, sabia? Quisemos casar, mas não conseguimos. Minha família não aceitava o fato de ele ser desquitado”, revela. “Além disso, foi uma pessoa fundamental na minha trajetória artística.”

    São de autoria dele as duas faixas do 78 rotações que marca a estreia fonográfica de Leny Andrade, em 1957: a valsinha “Homenagem à vovó” (parceria dele com Graciete Santana) e o samba-canção “Caminhos estranhos”, co-assinado pela própria Leny, que desconversa quando perguntada sobre a composição. “Ah... Sabe que eu nem lembrava mais dessa?”

    Claudionor Nascimento assina também a toada “Sem você”, que Leny gravou em 1964, acompanhada da orquestra do maestro Pachequinho. “Dessa nem tenho como esquecer: foi meu primeiro grande sucesso”, saboreia a cantora, que no outro lado do disco da gravadora Kat – que pertencia a Claudionor – se debulhou mais uma vez, no samba-canção “Separação” (Ari Rebelo).

    E amigo, Leny: quem foi o maior que você teve na música? “Durval Ferreira, né?”, responde, sem pestanejar. “Cantei tudo dele, praticamente a obra completa: um compositor e tanto, moderníssimo. Sem contar que ‘Batida diferente’ (dele com Maurício Einhorn) e ‘Estamos aí’ (dos dois com letra de Regina Werneck) são duas músicas das quais nunca consegui – e nem quis – me separar.”

    Aqui na Discografia Brasileira, Durval comparece duas vezes no repertório da amiga: numa com o balanço de “Sambop” (outra com Einhorn), no qual ela põe em prática a bossa vocal aprendida com Dolores. E também com o samba-canção “Meu amor foi embora”, de Durval sem parceiro. “Me doía o coração cantar essa música, sabe?”, confidencia Leny, de bate-pronto, entre a lamúria e a malícia. Bem que tentamos dar corda, mas ela cortou: “Ah... Eu já tinha minhas encrencas.”

    Ambas as gravações, lançadas em 1961, saíram também no primeiro LP de Leny Andrade, “A sensação”, feito naquele mesmo ano pela RCA Victor. Das doze faixas do repertório, outras duas também saíram em 78 rotações: os sambas “Águas paradas” (Israel da Paixão) e “Filosofia” (Aldacir Louro e Linda Rodrigues), que completam a dezena de gravações de Leny aqui na Discografia Brasileira.

    Já entre os lançamentos em LP, a carreira fonográfica seguiu com outros sucessos. Como os dois discos da Odeon que saíram em 1965: o LP de carreira “Estamos aí” (com arranjos de Eumir Deodato) e “Gemini V: show na boate Porão 73”, com o registro do show histórico que Leny fez com Pery Ribeiro e o conjunto Bossa 3 e cujo sucesso resultou na ida de todos para o México – onde recriaram o espetáculo e o disco.

    Após a bem-sucedida temporada mexicana, a carreira internacional de Leny acabou se consolidando nas décadas de 1980 e 90, depois que o sucesso de suas primeiras apresentações no Blue Note, de Nova York (1983), lhe abriu as portas também para outros palcos estadunidenses e também na Europa e no Japão. “Considerada por muitos a número um do jazz brasileiro – já foi chamada de ‘Sarah Vaughan brasileira’ pelo New York Post –, ganhou fãs ardorosos do quilate de Tony Bennett, Paquito D’Rivera e Liza Minelli”, enumera Rodrigo Faour no livro “História da Música Popular Brasileira sem preconceitos – vol. 2” (Editora Record, 2022).

    E suas vozes preferidas, Leny? “Gosto da Barbra Streisand, da Madonna, da Joyce e da Doris Monteiro. Ah, e da Elza, com aquelas arrepiadas que ela dava.” E entre os cantores: quais seus preferidos? “Meu amigo Tony Bennett, o Mark Murphy e o Lucio Alves, com aquela voz deliciosa de se ouvir aqui, ó, no pé do ouvido.”

    A sutileza e o canto intimista são os mesmos que, na avaliação de Leny, estão em falta em programas musicais como o The Voice Brasil, que vê de vez em quando pela televisão. “Esses cantores de hoje em dia podiam gritar um pouco menos, né?”, observa a veterana telespectadora, que tem preferido novelas e filmes em sua rotina pacata. “Minha vida no Retiro é bem tranquila, como você está vendo. Mas sempre tem algum movimento aqui em casa, pois moro na entrada da rua: todo mundo que entra na rua tem que passar por aqui.”

    Há também os amigos que volta e meia chegam para um café – bebida que Leny Andrade não dispensa, ao contrário das alcoólicas, que se acostumou a deixar de lado, mesmo trabalhando em tantas noites boêmias. “Foi a maneira que encontrei de proteger minha voz, o pessoal sempre soube que eu não era do birinaite”, sublinha Leny. “Mas sem café eu não passo.”

    Entre as visitas mais frequentes estão o casal Eliana e Gilson Peranzzetta: ela produtora, ele pianista e arranjador de mão cheia, além de parceiro da cantora em trabalhos marcantes como os songbooks “Cartola 80 anos” (1987) e “Luz negra: Nelson Cavaquinho por Leny Andrade” (1994). É na companhia deles, por exemplo, que sai de vez em quando do Retiro para visitar seu “escritório”, a cantina La Fiorentina, no Leme – local da comemoração dos 80 anos, com outros tantos amigos (como a cantora Áurea Martins e o pianista Osmar Milito, entre outros), bons pratos e muitas memórias.

    Tem alguma saudade em especial? “Que nada! Saudade eu não tenho de nada”, afirma, categórica, a veterana diva. “Mas posso te dizer que valeu a pena, viu? E que me sinto reconhecida por tudo que fiz. Viu só os lugares onde cheguei...? Vi e venci.”

    Foto: João Maia

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