“Ao meu afilhadinho Rodrigo, com todo o carinho do seu padrinho Pixinguinha.”
A dedicatória com letras trêmulas vinha na pauta musical em cujo pentagrama o veterano chorão havia escrito as notas iniciais da melodia de “Carinhoso”. O papel estava com Pixinguinha quando ele entrou na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, naquela tarde de sábado, 17 de fevereiro de 1973, para batizar o filho do amigo Euclides de Souza Lima. Vestia terno tropical marrom claro e sapatos novos: traje apropriado para a ocasião, apesar do calor que fazia e da atmosfera fuzarqueira nos arredores do templo – a duas semanas do carnaval, era dia de desfile da Banda de Ipanema.
Pixinguinha vinha reclamando de uma “dor esquisita” na altura do estômago e chegou a afrouxar o cinto. Ao ser chamado pelo frei Waldemar e receber a caneta para assinar no livro de registros, queixou-se mais uma vez (“Acho que não vou escrever meu nome direito”) e tombou. No misto de comoção e desespero que tomou os fiéis, uma ambulância foi chamada – em vão. A extrema unção foi dada pelo padre no ato e subitamente desabou um dilúvio sobre Ipanema. A notícia logo chegou à Banda, que, em volta da igreja, cantou o maior sucesso do mestre, “Carinhoso”, desde então número obrigatório no cortejo do bloco (como neste registro de 2013).
“Vinha eu com a camisa do Vasco toda molhada pelo temporal que caiu durante o desfile, ligeiramente bêbado, quando o fotógrafo Walter Firmo me deu a notícia”, escreveu o jornalista Sérgio Cabral – depois biógrafo de Pixinguinha – num texto publicado n’O Pasquim (edição da semana entre 27-02 e 06-03-1973), intitulado “O maior de todos”. “Pixinguinha é o nome mais importante de toda a história da música popular brasileira. Ele foi o inventor da orquestração da nossa música, foi um instrumentista genial e um compositor incomparável”, definiu Cabral. “É do mesmo time daqueles brasileiros extraclasse tipo Villa-Lobos, Oscar Niemeyer e Pelé.”
Em outra parte do texto, o jornalista relembra uma viagem a Belo Horizonte com Pixinguinha e o grupo da Velha Guarda. “No restaurante, depois do jantar, os velhinhos começaram a tocar. E tome chorinho, samba, valsa, um show de quase quatro horas para uma meia dúzia de pessoas”, relata Cabral. “Lá pelas tantas, o garçom pediu a Pixinguinha: toca ‘Lábios que beijei’? E Pixinguinha tocou no saxofone. Entre uma frase e outra, tirava o instrumento da boca e comentava: ‘Isso é do meu amigo J. Cascata.’ J. Cascata havia morrido há pouco tempo. Era o mais jovem integrante do conjunto Velha Guarda e um grande compositor das décadas de 30 e 40. De repente, vi Pixinguinha chorando sem parar de tocar. O sopro lhe saía suave, sentido e doce e ele chorava.”
‘Morreu como Cristo’
No mesmo chão da igreja em que caiu, o corpo do músico foi cercado de velas enquanto aguardava a remoção, feita por um Volkswagen da radiopatrulha, como informou o Jornal do Brasil (18-02-1973). “Morreu num dos lugares mais bonitos da face da terra”, afirmou o cabo da Polícia Militar que pilotava o carro entrevistado pelo periódico. “Morreu como Cristo, sabem por quê? Porque quando Cristo fechou os olhos começou a cair a chuva.” O texto informa ainda que era o “terceiro enfarte seguido” do músico – desdobrado em “arteriosclerose, miocardiosclerose e rotura da aorta abdominal” na causa mortis do atestado de óbito.
Para o jornalista Arley Pereira, Pixinguinha “começou a morrer” oito meses antes, quando ficou viúvo de Betty – apelido de Albertina Pereira, sua companheira desde 1926. Num texto no paulistano Diário da Noite (19-02-1973), ele escreveu sobre o período em que marido e mulher foram vizinhos de quarto no mesmo hospital. “Pixinguinha, internado no IASEG com enfarte, todas as tardes botava paletó e gravata e ia visitar sua mulher Albertina, internada antes dele, que não sabia do mal do marido. Para evitar dissabores ao ‘meu caco’, como lhe chamava: meia hora de visita e tornava ao pijama e ao seu próprio quarto de doente.”
Pixinguinha e Betty no Bar da Portuguesa (Coleção Pixinguinha/IMS)
“Aos poucos Pixinguinha fenecia”, prosseguiu Pereira. “E sabia disso, pois no enterro de seu contemporâneo Patrício Teixeira despediu-se dele pedindo ‘um pouco de paciência e já estaremos juntos novamente’.” Tão logo soube da morte de Pixinguinha, o jornalista pegou o primeiro voo da ponte-aérea e veio de São Paulo a Inhaúma, onde só então descobriu que o velório era realizado no Museu da Imagem e do Som, na Praça XV, Centro do Rio. Durante a madrugada, testemunhou as presenças de Elizeth Cardoso, Di Cavalcanti, Radamés Gnattali e muitos músicos, que iam chegando “à medida que saíam do trabalho”.
O relato de Arley Pereira se estende até o dia seguinte: “Quase meio-dia, um último olhar à cara do monarca africano, a boca – que nunca mais vai chamar a gente de ‘meu sobrinho’ – num meio sorriso, a fisionomia serena de quem nada tem a temer e a última despedida.” Às 16h, baixou à sepultura 3868, quadra 60, do Cemitério de Inhaúma, “numa cerimônia simples e rápida, sem discursos e sem encomendação”, como escreveram Marilia Trindade Barboza e Arthur de Oliveira Filho na biografia “Pixinguinha: filho de Ogum bexiguento” (Funarte, 1979).
Mesmo assim, teve presenças ilustres, como Chagas Frreitas, então governador da Guanabara, e muitos amigos, a começar por João de Barro e Almirante, retratados pelo JB (19-02-1973), que listou outros presentes: “Cartola, Luiz Cartola, Claudionor Cruz, Odete Amaral, Blecaute, Elton Medeiros, Luiz Gonzaga, Ari Vasconcelos, Moreira da Silva, Baden Powell e o garçom Rui, do Bar Gouveia, onde Pixinguinha tinha cadeira cativa.”
‘Definido e definitivo’
“A sua morte, mais ou menos esperada por todos, não afetará a música brasileira, na qual há muito é um legítimo clássico e, por isso, definido e definitivo. Mas rouba a espécie humana de um de seus exemplares mais queridos e mais dignos do amor daqueles que o conheceram”, escreveu Carlos Heitor Cony na revista Manchete (03-03-1973). “Quem não gostava dele só podia ser mau caráter, pois o velho Pixinga realizou, dentro e fora da música, uma das mais doces e gratificantes trajetórias do homem.”
Entre as qualidades do músico estava, segundo o cronista, a maneira autêntica com que encarnava o espírito de sua cidade. “Um carioca genuíno, que não se deixou prostituir nem se avacalhar”, avaliou Cony. “Agarrado aos subúrbios, aos bares que nunca são da moda, a um feitio de vida sem rancor e sem glória, ao pijama caseiro e à tradição das grandes comilanças dominicais, quando o angu ou a feijoada tinham de ser feitos para durar três dias.”
Já o Correio da Manhã relembrou Pixinguinha através de um dos maiores conhecedores de sua trajetória, o crítico e poeta José Lino Grünewald, que só precisou de três colunas – num alto de página da edição de 26-02-1973 – para sintetizar a importância múltipla do personagem: “Pixinguinha era quase tudo. Era o dos sete instrumentos ou, como no futebol, de carregador de piano a tocador de piano. Dentro da nossa música popular, um mundo – compositor, virtuose da flauta e do saxofone, arranjador, regente, organizador de orquestras e conjuntos. Nada seria o mesmo sem ele.”
No mesmo espaço, Grünewald ainda conseguiu perfazer os 60 anos de atividade profissional do mestre, desde composições feitas na década de 1910, como a valsa “Rosa” e o choro “Sofres porque queres”, aos êxitos dos Oito Batutas. “E o mais espetacular disco dos Oito é uma composição de Pixinguinha, ‘Pé de mulata’, com orquestração fabulosa e o canto de Patrício Teixeira.” Também sublinha os arranjos fundamentais que escreveu para os principais cantores da chamada era do rádio – como Moreira da Silva no samba “Implorar” (Kid Pepe e Germano Augusto).
Sem contar a maestria como instrumentista, “no solo de flauta, não apenas acompanhando os cantores, mas atuando sozinho, empolgando. De novo, pode-se invocar o testemunho do disco, ‘Iolanda’”, relembra. “Ou ainda, agora no saxofone, naquela série sensacional de gravações realizadas em dupla com Benedito Lacerda (este, sim, na flauta): ‘André de sapato novo’, ‘Sedutor’, ‘O gato e o canário’.” “Agora a morte”, arremata o crítico. “Mas nunca o fim, porque estamos na era da reprodução. É só calcar um botão, o prato girar e nos devolver a alegria que Pixinguinha para sempre legou. A alegria da beleza.”
Disco ‘novo’
Sabedora disso, a gravadora RCA não perdeu tempo e, já em meados de 1973, chegava às lojas o LP “Pixinguinha – série Música Popular Brasileira: grandes autores”. Se a capa não parecia muito atrativa (um desenho pouco inspirado do homenageado), a contracapa fazia valer a aquisição, inclusive pelo texto entusiasmado com que J. L. Ferrete apresenta o repertório, ressaltando, por exemplo, que a gravação de “Urubu” (com os Oito Batutas) vinha da fase mecânica.
Que no choro “A vida é um buraco” “Pixinguinha faz ver às novas gerações que sua fama de flautista extraordinário, no passado, não era exagerada”. Que na valsa “Página de dor”, cantada por Orlando Silva, “os versos de Cândido das Neves perdem de longe para a lírica construção melódica de Pixinguinha”. E que no famoso “Um a zero”, pode-se ouvir o saxofone tenor do homenageado “contraponteando genialmente a flauta de Benedito Lacerda”.
No LP da RCA estão outros registros do dueto com Benedito (“Ainda me recordo” e “Proezas de Solon”), “Marreco quer água” (com Pixinguinha e orquestra), o ótimo “Samba de fato” (cantado por Patrício Teixeira) e o clássico “Lamento”, apresentado na “assombrosa concepção de Jacob do Bandolim”, que comparece também interpretando “Teu aniversário”. “Posição histórica: um dos ‘dez mais’ da música popular brasileira neste século”, define Ferrete na conclusão de seu texto-tributo a Pixinguinha. “Criador de originalidades ainda não suspeitadas pelos cultores da música brasileira.”
>> Essa e outras histórias sobre Pixinguinha – além de sua obra completa com todas as gravações, fotos raras e outros itens – estão no site oficial do músico: acesse pixinguinha.com.br
Foto: Coleção Pixinguinha / IMS