“A história da música brasileira e do carnaval carioca não poderá ser feita sem se mencionar, com frequência, o nome de Benedito Lacerda.”
Se alguma leitora ou leitor julgar exagerada a afirmação da Revista do Disco em sua edição de fevereiro de 1958 (quando noticiou a morte do grande músico), que experimente digitar seu nome aqui na Discografia Brasileira. Encontrará Benedito tanto como autor (376 ocorrências), quanto como intérprete (83) e, sobretudo, no campo “acompanhamento” (795). Some-se a isso tudo sua vasta atuação no rádio, a participação na “primeira escola de samba”, os conjuntos que criou e algumas ótimas ideias que pôs em prática ao longo de sua trajetória – a começar pela dupla instrumental formada com Pixinguinha.
Só então será possível ter uma ideia do quanto Benedito Lacerda foi importante e presente na história da música popular brasileira. A mesma que, exceto por algumas postagens em redes sociais ou shows aqui e ali, possivelmente passará em branco pelo próximo 14 de março. É nesse dia que se completam 120 anos de seu nascimento, em Macaé, município do litoral norte fluminense e local de suas primeiras memórias musicais.
“Recordo-me que, certa vez, ficando de castigo, observei uma professora estudando flauta”, contou à Revista do Rádio (edição de junho/julho de 1948) num texto de memórias publicado em primeira pessoa. “Apaixonei-me por aquele instrumento pequenino e de som agradável e quase todos os dias fazia o possível para ficar de castigo, a fim de aprender a manejá-lo. Desse modo, dentro de pouco tempo fui expulso do colégio.”
Já tinha aprendido as primeiras noções musicais na Banda Nova Aurora quando, aos dez anos, veio de Macaé para o Rio de Janeiro. “Deixei a terra natal. Vim espiar o mundo”, disse à revista Carioca (12-11-1938). “Comecei como engraxate. Fiz concorrência a muito italiano. Depois aprendi o ofício de mecânico. Não gostei. Preferi ser jornaleiro. Vendi muito jornal atrasado! Um dia parei com tudo isso. Queria ser gente, troço na vida. Procurei um emprego. Deram-me um lugar na Light.”
Só sossegou do corre-corre entre bicos quando sentou praça na polícia, como esmiuçou no mesmo depoimento à Carioca. “A 18 de outubro de 1922, ingressava no 1º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar do Distrito Federal”, recordou. “Tempos depois, passava para o 4º, como aprendiz de músico. Tocava flauta e flautim. Três anos depois, dava baixa naquela corporação como músico de primeira classe.” Seguiu até 1927 como um dos 120 músicos da banda da Polícia Militar.
Enfim, artista
Por essa época, depois de aprimorar seus conhecimentos musicais com Belarmino Sousa (professor do Instituto Nacional de Música), inicia-se a trajetória artística de Benedito Lacerda, como músico dos conjuntos que acompanhavam filmes do cinema mudo. Com o surgimento dos primeiros filmes falados, neste mesmo ano de 1927, precisou se reinventar (“Muitos dos meus colegas foram ser mata-mosquitos”, escreveu na Revista do Rádio) e empregou-se no teatro, viajando o Brasil com a companhia de Araci Cortes. Pouco depois, seu nome já se fazia ouvir também nas Rádios Sociedade e Guanabara.
Isso porque Benedito já era bastante conhecido e respeitado nas rodas de samba e batucada do bairro onde vivia, o Estácio, onde o samba foi reformatado nos anos 1920, ganhando uma cadência menos parecida com o maxixe (que vigorava até então) e mais apropriada para se dançar na rua. Criação coletiva de sambistas e malandros do bairro, como Ismael Silva, Nilton Bastos, Alcebíades Barcelos (o Bide), Osvaldo Vasques (o Baiaco) e o próprio Benedito, entre outros – todos fundadores, em 1928, do bloco Deixa Falar, depois celebrizado como “a primeira escola de samba”.
Da amizade com a malandragem local vieram práticas menos ortodoxas, como a participação nas “molecagens” mencionadas por Bide em seu depoimento à posteridade gravado no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ). No livro “As escolas de samba do Rio de Janeiro” (Ed. Lumiar, 1996), o jornalista Sérgio Cabral cita o depoimento para contar que o flautista (um dos poucos da turma que sabiam escrever música) colaborava com Baiaco – conhecido malandro do bairro – no costume que este tinha de se apropriar de sambas alheios.
“Baiaco atraía o verdadeiro autor para um bar, pedia que ele cantasse, enquanto Benedito Lacerda, escondido atrás de um biombo, copiava a melodia”, relata Cabral. “De repente, o músico surgia, ouvia um trecho do samba e manifestava-se com falsa indignação: ‘Este samba não é teu, é do Fulano!’ E cantava para provar que se tratava de uma música que já conhecia. Baiaco e quem estivesse ao lado dele ameaçavam, em seguida, o coitado do compositor.”
Já na Deixa Falar cabia a Benedito uma das tarefas mais nobres nos desfiles: marcar o ritmo do samba no surdo, instrumento que estava entre as novidades inventadas pela turma do Estácio, inicialmente feito com um pedaço de couro esticado sobre um latão de manteiga.
Gente do Morro
Não espanta que uma das primeiras contribuições de Benedito à música brasileira, nesta virada entre as décadas de 1920 e 30, tenha justamente sido como sambista. Foi o que souberam os leitores d’O Jornal (20-02-1958): “Naquela época, quando ainda poucas e ruins eram as orquestras brasileiras, todas influenciadas pelo jazz, Benedito Lacerda sentiu que era preciso dar personalidade ao samba, tocá-lo dentro de um estilo brasileiro. Criou então o famoso conjunto Gente do Morro.”
Pois é com este grupo – por cuja formação passaram grandes músicos, como os violonistas Carlos Lentini e Henrique Brito, o cavaquinista Canhoto e os percussionistas Bide e Russo do Pandeiro, entre outros – que Benedito faz sua estreia fonográfica, em 1930, na gravadora Brunswick. Nos primeiros discos, acompanham o cantor Ildefonso Norat – “o Caruso do Estácio” – em sambas como “Dá nele”, de Sinhô, que deu nome ao Gente do Morro. Depois, Benedito começa a lançar suas próprias composições, como “Disca minha nega”, na qual atua não só como flautista, mas também... cantor.
“Uma das coisas mais notáveis em sua interpretação é a intimidade com o sotaque africano”, salienta Bia Paes Leme, coordenadora de música do Instituto Moreira Salles, que dedicou dois programas na Rádio Batuta – em novembro e dezembro de 2013 – aos discos iniciais do conjunto Gente do Morro, feitos na gravadora Brunswick. “Na verdade, se não conhecêssemos tantas imagens de Benedito Lacerda branco e de cabelos lisos, o som de sua voz nos faria enxergar alguém bem diferente.”
Através do Gente do Morro, a candência estaciana ficou impressa também em choros. Tanto os do próprio Benedito Lacerda, como “Gorgulho” (apelido de Jacy Pereira, violonista do conjunto), de 1932. quanto clássicos de outros compositores, como “Minha flauta de prata” (composição de Jaime Florence, o Meira, dedicada ao solista), de 1933, e “Mistura e manda” (Nelson Alves), lançado em 1934.
Já de 1935 – ano em que o Gente do Morro lança o choro “Dinorá” (parceria de Benedito com José Ferreira Ramos) – são as primeiras gravações de outro conjunto fundamental liderado por ele: Benedito Lacerda e Seu Regional (ou Regional de Benedito Lacerda), criado para acompanhá-lo na Rádio Tupi, que o contrata neste ano. Atuante até 1955 (quando, sob nova direção, será rebatizado como Regional do Canhoto), trata-se do mais importante e produtivo conjunto de acompanhamento de música popular brasileira nesta época.
Entre as 219 ocorrências no site podem ser ouvidos, por exemplo, acompanhando Dorival Caymmi na primeira gravação de “A vizinha do lado” (Caymmi), o duo Noel Rosa e Marília Batista em “Provei” (de Noel com Vadico) e Cyro Monteiro em “Falsa baiana” (Geraldo Pereira). Além, claro, de sambas do próprio Benedito, como “Professora” (com Jorge Faraj), lançado por Sílvio Caldas, e “Pombo correio” (com Darci de Oliveira), na voz de Gilberto Alves.
Evoé!
Outro marco importante para Benedito Lacerda em 1935 é o primeiro sucesso carnavalesco de sua autoria: a marchinha “Eva querida” (com Luís Vassalo), lançada por Mário Reis. Tamanha foi a repercussão da música que, na folia de 1936, o flautista veio com uma resposta, a marchinha “Querido Adão” (Osvaldo Santiago), lançada com os gracejos de Carmen Miranda.
Mas só dali a alguns anos – no carnaval de 1939 – emplacaria seu maior sucesso de compositor: a marchinha “A jardineira”, feita a partir de um refrão popular recolhido na Bahia por seu parceiro, o soteropolitano Humberto Porto. A primeira gravação foi feita por Orlando Silva, cantor de outras 25 composições de Benedito lançadas em 78 rotações. Entre elas estão a valsa romântica “Número um” (com Mário Lago), deste mesmo ano de 1939, e uma marchinha de 1941, “Lero lero”, da parceria com Eratóstenes Frazão.
Também com Frazão fez sambas muito cantados no carnaval, como “Fica doido varrido”, que Sílvio Caldas lançou em 1945, e “Sabiá de Mangueira”, sucesso de 1944 com Nelson Gonçalves, relembrando outra homenagem ao mesmo morro que ele já havia feito em 1940: “Despedida de Mangueira” (com Aldo Cabral). Neste, o vozeirão que se ouve é o de Francisco Alves, que na folia seguinte emplacaria “Adeus mocidade”, dele com Roberto Martins.
Sua antologia de sucessos carnavalescos em ritmo de samba tem outras parcerias com compositores do primeiro time: como Haroldo Lobo, com quem assina “Coitado do Edgar” (lançado por Linda Batista em 1945); Ary Barroso, co-autor de “Falta um zero no meu ordenado” (lançada em 1948, por Francisco Alves); e Herivelto Martins, com quem compôs “A Lapa”, que o público conheceu em 1950, também interpretada pelo Rei da Voz.
Entrosamento
Por essa mesma época, a flauta de Benedito Lacerda podia ser ouvida também no dueto que formou com o saxofone de Pixinguinha – fosse no programa O Pessoal da Velha Guarda (veiculado pela Rádio Tupi entre 1947 e 52), fosse em um dos discos que lançaram pela Victor, de 1946 a 51. Entre estas gravações – 34 no total – estão as primeiras de grandes choros como “Um a zero” e “Vou vivendo”, ambos exemplares do entrosamento perfeito entre os dois instrumentistas: Pixinguinha, que já não atuava havia algum tempo como flautista, ressurge fazendo contrapontos ou dividindo solos com Benedito.
“Certo dia, numa de minhas audições, tive o primeiro contato com ele. Como era seu apreciador de longa data, fui me aproximando e passamos a ser amigos”, contou Benedito, relembrando a formação da dupla no texto que publicou na Revista do Rádio. “Nesse ínterim, apareceu um amigo de nós dois que teve a ideia de reunir-nos em uma dupla. Veio a mim e disse que Pixinguinha perguntara se eu aceitava a formação do duo. Afirmei que sim e, mais tarde, soube que ele fizera a mesma pergunta ao Pixinguinha.”
Nesta leva de choros gravados pelo duo, o nome de Benedito Lacerda passa a figurar ao lado de Pixinguinha como parceiro em suas composições – mesmo as que já haviam sido gravadas ou editadas anteriormente. Um arranjo comercial que, conforme salientado no site oficial de Pixinguinha, foi plenamente endossado por este, “já que em diversos manuscritos presentes em seu acervo é possível encontrar partituras com a indicação ‘Música de Pixinguinha e Benedito Lacerda’, escrita com sua própria caligrafia”.
No fim das contas, a dobradinha com o amigo possibilitou a Pixinguinha saldar dívidas financeiras importantes (estava prestes a perder sua casa, segundo seu biógrafo, o jornalista Sérgio Cabral) e também viver uma nova etapa em sua trajetória artística, como saxofonista, conforme detalhado no programa Pixinguinha na Pauta, da Rádio Batuta, que dedicou um de seus episódios ao famoso dueto.
Flauta de lado
Já Benedito Lacerda, por outro lado, na década de 1950 foi aos poucos trocando o dia-a-dia de músico pelas atividades ligadas aos direitos autorais, como dirigente ativo da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (a Sbacem), entidade que presidiu entre 1948 e 1957. Sua saúde, cada vez mais frágil, era outro motivo pelo qual vinha gradativamente afastando-se dos estúdios e palcos.
Até que, em janeiro de 1958, dificuldades respiratórias o levaram a se internar na Casa de Saúde São João de Deus, no bairro carioca de Santa Teresa. Diagnosticado com câncer no pulmão, chegou a ser operado três vezes, vindo a falecer na mesa de cirurgia, aos 55 anos, em 16 de fevereiro de 1958. Era domingo de carnaval e, segundo a imprensa, cerca de 200 pessoas acompanharam o sepultamento do corpo, no dia seguinte, no Cemitério São João Batista, em Botafogo.
Entre elas estava Orlando Silva, que homenageou o amigo à beira do túmulo cantando “A jardineira”, sendo acompanhado em coro por Pixinguinha, João da Baiana, Canhoto e outras personalidades e fãs presentes nas despedidas ao grande instrumentista, compositor e líder de conjuntos fundamentais na história da música popular brasileira.
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS