Muitas vezes o legado de um grande músico vai além de sua obra de compositor ou intérprete. Há aqueles que, em sua discografia ou apresentações, também jogam luz sobre outro artista cuja obra andava esquecida ou simplesmente não nasceu a tempo de chegar ao grande público.
Arthur Moreira Lima está no primeiro caso: aos 82 anos, é um dos maiores pianistas clássicos do Brasil, aplaudido em salas de concerto do mundo todo por suas interpretações de obras de Chopin, Liszt, Mozart… e Ernesto Nazareth – eis o segundo caso: o pianista e compositor nascido há exatos 160 anos (20 de março de 1863), carioca do Morro do Pinto, na divisa entre a Saúde e o Santo Cristo. Quando faleceu, aos 71 anos incompletos (1 de fevereiro de 1934), já era reconhecido como nome importante dos primórdios do choro e compositor de “Brejeiro”, seu maior sucesso em vida.
Ernesto Nazareth em1932 (circa) / Foto: IMS / Coleção Ernesto Nazareth
No entanto, morreu com a frustração de não ter sido o pianista de concerto que sonhava ser. E sem ver sua obra de compositor – embora editada em partitura a partir de 1878 e gravada em discos desde 1903 – ter a projeção que tomaria nas décadas seguintes. Primeiro através de discos como os do pianista Custódio Mesquita (nos anos 1940) e depois, já na década seguinte, em lançamentos de Jacob do Bandolim e Radamés Gnattali.
Já nos anos 1960 e 70, seu nome e sua obra ressurgiram pelas mãos de Arthur Moreira Lima, que já se firmava como um dos grandes nomes da música de concerto do Brasil e, desde então, fez de Nazareth um dos compositores mais presentes em seu repertório.
Uma relação que o público conheceu em 1966, quando o então jovem pianista, pouco depois de ganhar projeção mundial com o segundo lugar no Concurso Internacional Chopin, em Varsóvia, apresentou-se num recital histórico no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Naquela noite (16-08-1966), o jovem concertista suavizou o programa denso com a inusitada inclusão de duas composições de Nazareth: a valsa “Coração que sente” e o tango “Batuque”.
“Com a mesma independência que moveu Moreira Lima a colocar Nazareth entre Schumann, Prokofieff e Chopin, deve-se assinalar aqui que foram essas breves composições as mais comoventes de toda a noite”, destacou o crítico Eurico Nogueira França, no Correio da Manhã (19-8-1966), depois de classificar com “altamente louvável a acertada independência de julgamento e a ausência de convencionalismo” na escolha do repertório.
“Não tinha nada a ver, do ponto de vista estético, colocar duas pecinhas de Nazareth no meio de um programa pesado como aquele, mas do ponto de vista de importância fazia todo sentido: Nazareth entre os grandes”, relembra Arthur Moreira Lima, em entrevista para este site, por telefone, de Florianópolis, onde vive. “Acabou sendo um refrigério, algo que o público recebeu com emoção. Estávamos há dois anos na ditadura militar – desde 1964 – e a esquerda ficou assanhadíssima com esse gesto, que foi como um preito à nossa cultura. Uma demonstração de que subdesenvolvido também tem alma, sabe?”
A partir daí, as obras de Nazareth seguiram presentes nos recitais do pianista, que além das duas peças apresentadas em 1966, passou a interpretar também “Odeon”, o famoso tango brasileiro de 1909 dedicado ao antigo cinema carioca. “Me orgulho de ter podido contribuir para esse revival de Nazareth numa época em que ele andava meio esquecido, meio fora de moda. Mas como eu ia esquecer, se cresci ouvindo minha avó tocar aqueles tangos todos? É uma imagem que guardo viva comigo: eu pequeno, na casa da Rua Dois de Dezembro, no Catete, ouvindo minha avó tocar o piano de armário dela: ‘Famoso’, ‘Escorregando’, ‘Odeon’, ‘Brejeiro’ e o próprio ‘Coração que sente’.”
Um repertório que, segundo o concertista, era familiar à avó, Luísa Cora Mendes de Moraes, que chegou a ouvir o grande músico na sala de casa. “O pai dela, meu bisavô Miguel Salazar, costumava promover eventos musicais onde eles moravam, em Niterói. E Nazareth era um dos músicos que ele contratava para os saraus nos domingos”, conta. “O marido dela, meu avô Feliciano, que fez história como marechal, nas horas vagas era flautista. Gostava de música e de jogar bilhar.”
E assim a obra de Ernesto Nazareth sempre esteve por perto de Arthur Moreira Lima. Mesmo que desde menino, na década de 1940 (ele é carioca do dia 16 de julho de 1940), sua formação tenha se dado no âmbito da música de concerto, fosse nos primeiros ensinamentos recebidos em casa, fosse nas aulas que teve com D. Lúcia Branco, também professora de Nelson Freire, Jacques Klein, Luiz Eça e Tom Jobim, entre outros nomes importantes do piano. Como prodígio do instrumento, passou a disputar concursos nacionais de jovens solistas como os da Orquestra Sinfônica Brasileira – venceu os de 1949 e 1952.
Por essa época, a obra de Nazareth já circulava em discos como os cinco de 78 rotações que Custódio Mesquita lançou pela Victor em 1943, com registros importantes como os do tango brasileiro “Bambino” e da valsa “Eponina”. Em todas as gravações, o piano de Mesquita tem acompanhamento de orquestra, assim como Radamés Gnattali faria em 1953, nos quatro discos que lançou pela Continental, com interpretações marcantes como as da valsa “Expansiva”, da polca “Ameno Resedá” e do tango brasileiro “Fon-Fon”.
Entre estas duas levas está a de outro grande cultor da obra de Nazareth, Jacob do Bandolim, que revisitou a obra de seu ídolo acompanhado de conjunto regional nos quatro discos que fez pela RCA Victor, em 1952, trazendo à tona músicas até hoje presentes nas rodas de choro, como “Tenebroso”, “Nenê” e “Saudade”.
“Jacob do Bandolim era um gênio, um dos maiores intérpretes que ouvi em toda a minha vida. O que ele fez com a obra de Nazareth foi uma coisa fundamental”, afirma Moreira Lima. “O choro é, de certa forma, a alma da música brasileira. E esse envolvimento com a obra de Nazareth me introduziu nesse mundo mágico: um mundo imperceptível para quem está imerso na música clássica. Mas ele existe, é muito rico e me ajudou, inclusive, na minha interpretação de música clássica.”
Até que, em meados dos anos 1970, veio um convite que sacramentou de vez sua relação com a música de Nazareth: gravar um LP todo com composições do autor de ‘Odeon’. Ideia que partiu do jornalista e escritor Sérgio Cabral e foi imediatamente acolhida pelo publicitário Marcus Pereira, com seu recém criado selo de discos. “Respondi logo que só se fosse um disco duplo, pois é uma obra grande e, sobretudo, com uma qualidade muito alta”, relembra o pianista, que saiu de Viena, onde morava, para gravar no estúdio Sutton Sound, em Londres. “Acredito que a qualidade da gravação acabou sendo decisiva pro sucesso que o disco fez.”
De fato, “Arthur Moreira Lima interpreta Ernesto Nazareth” (Marcus Pereira Discos) foi um dos acontecimentos da música brasileira em 1975. O compositor Ronaldo Miranda, na Coluna Discos Clássicos, do Jornal do Brasil (18-09-1975), classificou o LP como “uma incisiva contribuição para a solidificação da nossa cultura musical”, com destaque para a “exata compreensão” do “estilo nazarethiano” pelo pianista: “Os andamentos dados aos chamados tangos brasileiros, do tranquilo ‘Floraux’, ao super-rápido ‘Vem cá, branquinha’, estão ideais.”
Já o crítico José Ramos Tinhorão, no mesmo JB (09-09-1975), classificou o LP duplo como uma “uma obra obrigatória” que talvez tivesse a aprovação do próprio compositor das 25 faixas. “Nas magníficas interpretações de Arthur Moreira Lima, os tangos e polcas, mas principalmente as valsas de Nazareth – como a requintadíssima ‘Confidências’ – ganham uma solenidade que agradaria ao próprio autor, ele mesmo, aliás, um pianeiro popular muito preocupado em parecer um pianista de salão.”
Sobre este Nazareth pianeiro (como eram chamados os pianistas de bossa, diferentemente dos eruditos), Moreira Lima pensa diferente. “O Nazareth era muito bom pianista: ou não tocaria a ‘Polonaise heroica’, de Chopin. Assim garantem os que o ouviram tocar, como Villa-Lobos e outros de confiança”, argumenta o concertista. “E é também o que se pode perceber ouvindo as gravações que ele deixou, como o ‘Escovado’ e o ‘Apanhei-te cavaquinho’. Registros sem os recursos tecnológicos de depois, mas que mostram sua qualidade como pianista.”
Arthur Moreira Lima, seu piano e suas homenagens fonográficas a Ernesto Nazareth.
Depois do sucesso de crítica e vendagem (segundo o JB de 11-07-1976, foram 17.500 cópias vendidas nos primeiros dez meses, o que seria um “recorde de vendas no setor erudito”), a Marcus Pereira lançou em 1977 “Arthur Moreira Lima interpreta Ernesto Nazareth – Nº 2”, com mais 24 peças do velho mestre interpretadas por seu discípulo-cultor. “Caprichei ainda mais nesse segundo disco, para não ter que passar o resto da vida ouvindo que as pessoas tinham gostado mais do primeiro”, diverte-se. “E também porque neste eu estava com mais molejo, a malandragem que aprendi na convivência com Dino Sete Cordas, Jorginho do Pandeiro, Joel Nascimento e outros craques do choro.”
Desta vez, José Ramos Tinhorão não só aprovou o LP duplo (com destaque para a interpretação de ‘Ouro sobre azul’), como também o incluiu entre os melhores lançamentos daquele ano. Foi o que se leu no JB de 28-12-1977, no qual o crítico ressalta que o disco cumpre o papel de “exorcizar, definitivamente, o preconceito de dependência cultural europeia da elite brasileira, segundo a qual somente autores consagrados merecem interpretação recitalista”.
Curioso como em plena década de 1970 – e quiçá ainda hoje! – o encantamento de grande parte dos brasileiros pela cultura estrangeira (em detrimento da nossa) ainda ecoa os tempos do pianista nascido há 160 anos, como reflete Arthur Moreira Lima. “Nazareth queria ser concertista, era a aspiração dele: queria ter recebido a mesma bolsa que outros músicos brasileiros – como Carlos Gomes – receberam para estudar na Europa”, assinala. “Mas foi ótimo ele não ter recebido, sabe? Talvez se tornasse um excelente intérprete, mas repare como a permanência dele por aqui foi importante para nós, brasileiros, que hoje temos esta obra tão rica, tão expressiva do que é o nosso país.”
Para saber mais:
>> A relação de Arthur Moreira Lima com a obra de Ernesto Nazareth é um dos temas de sua participação na série Conversa de Pianista, do Instituto Piano Brasileiro, em entrevista a Alexandre Dias: clique aqui para ouvir a parte 1 e aqui para ouvir a parte 2.
>> Já a trajetória de Nazareth – com direito a linha do tempo, hemeroteca digital, fotos raras e obra completa verbetada – você pode acessar no site “Ernesto Nazareth 150 anos”, produzido há uma década pelo Instituto Moreira Salles em homenagem ao grande compositor.
>> Outra cultora importante da obra de Ernesto Nazareth é a pianista Maria Teresa Madeira, que em 2016 gravou a obra completa do compositor numa caixa com 12 CDs: as gravações podem ser ouvidas no perfil da pianista no YouTube.
Fotos de Arthur Moreira Lima: Grasiela Garrett da Silva