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    Evaldo Rui, 110 anos: memórias de um mestre da dor-de-cotovelo

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Matéria-prima e fonte de inspiração de tantos sucessos do cancioneiro popular (não só o brasileiro), a dor-de-cotovelo é o ingrediente básico de todo e qualquer samba-canção. O amor que foi embora, o que ainda não veio ou o que já vai tarde inspiraram compositores os mais diversos da nossa música, especialmente na primeira metade do século passado. O que espanta, em alguns deles, é a propriedade com que traduziram suas sofrências em versos, apesar da pouca idade que tinham. Como Evaldo Rui, um dos craques nesta matéria, que mal tinha passado dos 30 quando preveniu seus ouvintes, assim:

    Vai nesta canção minha confissão
    Meus desenganos aqui vou contar
    Talvez você nem me queira escutar...

    Com melodia do pianista Fats Elpídio, o fox “Minha confissão” é uma das 66 músicas da Discografia Brasileira que levam a assinatura de Evaldo Rui – uma obra relativamente curta para um compositor tão importante e considerado. A quantidade, infelizmente, tem a ver com a brevidade de sua própria vida, interrompida aos 41 anos por seu próprio ímpeto. Foi na madrugada de 4 de setembro de 1954 que o Brasil, ainda atordoado com o suicídio do presidente Getúlio Vargas (duas semanas antes), soube de seu falecimento pelos veículos impressos – parte deles sem mencionar a causa mortis, como é costume na imprensa.

    Foi o caso da Revista de Música Popular, que, exceto por uma insinuação numa metáfora na coluna do amigo e parceiro Fernando Lobo (“lá se foi Evaldo Rui, com passagem comprada por sua própria conta”), não abordou o suicídio. Duas páginas depois na mesma edição (lançada em novembro de 1954) está também o mais informativo e conciso obituário dedicado a ele.

    “Evaldo Rui Barbosa nasceu no Distrito Federal no dia 9 de abril de 1913, era filho de Albertino Barbosa e D. Maria Isabel Barbosa”, informa a Revista, que o define como “um compositor autenticamente popular e um dos mais notáveis letristas”, antes de localizá-lo em sua cidade de origem, então capital do Brasil: “Passou a infância em Botafogo, Bonsucesso, a adolescência em Vila Isabel.”

    Também deu suas voltas pelo bairro do Estácio, como souberam os leitores da mesma Revista de Música Popular, que em seu número de estreia (publicado justamente em setembro de 1954), puderam ler Evaldo Rui em primeira pessoa, relembrando suas visitas, menino ainda, ao Café do Compadre – bar onde grandes sambistas se encontravam na década de 1920. “Duas portas davam para a velha Rua do Estácio. Do outro lado, da Rua Pereira Franco, ficavam outras três”, detalhou Evaldo Rui. “As mesas eram de mármore, daquelas que hoje já não existem. Ao fundo, sobre um palanque, uma enorme vitrola ‘ortofônica’, e, colocada acima da vitrola, uma imagem de São Jorge.”

    “Eu gostava de me postar diante de suas portas, porque ali se reuniam os meus ídolos”, relembra, registrando em seguida as presenças constantes de Ismael Silva (“no seu irrepreensível terno azul-marinho”) e Nilton Bastos (“chapéu de feltro marrom, combinando com o seu terno também marrom”). Os dois bambas do Estácio costumavam conversar em voz baixa, atiçando a curiosidade do adolescente Evaldo. “Talvez, naquele instante, estivessem dando os últimos retoques no ‘Se você jurar’. Talvez estivessem arranjando uma rima melhor para saudade. Talvez estivessem estudando um plano para atacar de frente o último sucesso de Cartola, que era o ‘rei’ da Mangueira.”

    No arremate das memórias estacianas, Evaldo Rui conta que Ismael e Nilton, juntamente com outros frequentadores do café, “sem querer torceram o meu destino. O destino de um rapaz que fatalmente terminaria chefe de seção da Light e, hoje, não passa de um sambista”, define, melancólico. “Um sambista que nunca conseguiu um lugar nas mesas do Café do Compadre.”

    Além do emprego na Light, o pouco que se sabe (afinal, seu nome simplesmente inexiste em algumas publicações de referência sobre música brasileira) é que conseguiu se virar entre outros trabalhos diversos e bicos – entre eles o de vigia de necrotério. Seu rumo ficou mais definido quando chegou ao rádio, contratado pela Philips, inicialmente como contrarregra nos programas “Horas de Outro Mundo” e o popularíssimo “Casé”, onde também trabalhou seu irmão dois anos mais novo, Haroldo Barbosa, redator e compositor como Evaldo.

    Até que, depois de passagens por outras emissoras (Nacional, Tupi, Guanabara e Cajuti), sossegou na Rádio Mauá, onde trabalhou por mais tempo e chegou a diretor artístico. Lá, criou programas de sucesso – como “Álbum de Melodias” e “O Rio de Janeiro que não vi” e lançou talentos como Roberto Silva, o Príncipe do Samba, em 1944.

    Por essa época, seu nome já era conhecido também pelos sambas que vinha fazendo naqueles anos 1940 – embora suas primeiras composições gravadas datem de 1934. Foi nesse ano que seu samba “Ninho deserto” foi lançado num dueto de Carmen Miranda com Francisco Alves – o “Rei da Voz” também gravaria, em 1942, o samba “Eu quero uma mulher”, suprassumo do machismo composto por Evaldo em parceria com Rubens Soares.

    Mas só a partir de 1943, quando passou a compor com o já renomado pianista Custódio Mesquita, suas obras começaram a ser lançadas em disco de maneira mais contínua e consistente. É justamente desta primeira fornada um dos clássicos de seu repertório: “Promessa”, samba à moda de Ary Barroso que o público conheceu em outubro de 1943 na voz de Sílvio Caldas com acompanhamento grandioso da orquestra de Custódio Mesquita – parceiro de Evaldo na composição.

    Sílvio Caldas não perdeu tempo e lançou, já em 1944, outros petardos da dupla. Em abril saiu o disco de “Como os rios que correm pro mar”, trazendo do lado B a singela “Valsa do meu subúrbio”. Já em agosto foi a vez da gravação original de “Noturno em tempo de samba” – exaltado por Fernando Lobo no Diário da Noite (24-06-1948): “O maravilhoso sentido poético de seus versos e a encantadora melodia têm em Silvio Caldas um intérprete bastante sincero e expressivo.”

    Em todas as três destaca-se, ainda, o acompanhamento elegante da orquestra de Custódio, presente em outro lançamento da dupla com Evaldo Rui nesse mesmo ano: o fox “Rosa de maio”, que fica ainda mais compungido no vozeirão de Carlos Galhardo – intercalado com breves intervenções de coro feminino. Mais alegre é a “Valsinha do turi-turé”, que chegou às lojas em outubro de 1944 num disco de Linda Batista com o conjunto Diabos do Céu, de Pixinguinha.

    Já no início de 1945, foi a vez da orquestra do maestro Guerra-Peixe acompanhar mais dois lançamentos da parceria num mesmo disco de Sílvio Caldas: o samba “Feitiçaria” e o fox “Sim ou não”. Entre a gravação das músicas (em 8 de fevereiro de 1945) e o lançamento do disco (no mês de abril), uma fatalidade tomou os jornais e revistas de todo o país: a notícia do falecimento precoce de Custódio Mesquita, de insuficiência hepática, no dia 13 de março de 1945.

    Tinha só 35 anos e não chegou a ver o lançamento fonográfico da obra-prima de sua parceria com Evaldo Rui: o samba-canção “Saia do caminho”, que o público conheceu somente em março de 1946, quando saiu o disco com a gravação magistral de Aracy de Almeida, acompanhada por Lauro Araújo e Seu Ritmo. Para Evaldo, a morte do parceiro representou não somente um grande abalo do ponto de vista pessoal, como também profissional.

    No livro “A noite do meu bem” (Companhia das Letras, 2015), Ruy Castro informa que, nos anos seguintes a 1945, a produção caiu significativamente. “Sua inspiração parecia ter secado”, afirma o escritor e jornalista. “Não compunha com ninguém, não se sentia disponível – a única exceção fora ‘Nega maluca’, a batucada que seu amigo Fernando Lobo lhe dera para letrar e que acabou sendo o maior sucesso do carnaval de 1950”.

    Além da famosa batucada (retrato de uma época em que racismo não era um tema levado em conta no Brasil), a verdade é que Evaldo tentou retomar o fio da inspiração. Com o próprio Fernando Lobo, emplacou uma mazurca na voz de Luiz Gonzaga (“Chofer de praça”, em 1950) e um samba cantado por Jorge Veiga (“Podem falar”, em 1953). Já com Lupicínio Rodrigues fez “Eu não sou louco”, samba que, gravado por Isaurinha Garcia, teve boa repercussão no carnaval de 1950.

    Também viu serem lançadas parcerias com o potiguar Hianto de Almeida, como os sambas “Memórias”, que Lúcio Alves gravou em 1953, e “Vento vadio”, lançado por Isaura Garcia em 1954.

    Mas sucesso mesmo ele fez só mais uma vez – embora pouca gente saiba que são dele os versos em português para a cantiga natalina “Jingle bells” (composta no século 19 pelo estadunidense James Pierpont), que por aqui virou “Sinos de Belém” e foi lançada num 78 rotações de dezembro de 1951, cantada por João Dias: “Bate o sino pequenino, sino de Belém / Já nasceu Deus menino para o nosso bem...”

    Mesmo assim, o período posterior à morte do maior parceiro se caracterizou por outras frentes abertas por Evaldo Rui. “Desde que a inspiração o abandonara e as contas não paravam de chegar, descobrira que trabalhar para políticos, escrevendo discursos, slogans e promessas de campanha, rendia-lhe mais dinheiro que pôr as dores do amor em versos”, relata Ruy Castro em “A noite do meu bem”. “O primeiro a contratá-lo foi o paulista Adhemar de Barros, já de olho nas futuras eleições para o governo de seu estado, em 1954.”

    Governador de São Paulo por três mandatos (o primeiro como interventor, nomeado por Getúlio Vargas) e prefeito da capital do estado em mais outro, Adhemar de Barros foi um dos principais personagens da política brasileira em sua época. Para enfrentar os adversários (bem-sucedidos em colar-lhe o slogan/pecha de “rouba, mas faz”), também emplacou seus próprios emblemas, como “São Paulo não pode parar” e “Fé em Deus e pé na tábua”, entre outras criações de Evaldo Rui e cia.

    Na fase paulista, contribuiu mais uma vez com a música brasileira ao dar a primeira oportunidade profissional, em 1950, à jovem Ignez Magdalena Aranha de Lima, que logo o Brasil todo conheceria por Inezita Barroso, cantora e pesquisadora referencial da música caipira. Foi a convite de Evaldo que ela estreou na PRA-9, Rádio Bandeirantes (de propriedade de Adhemar), onde ele trabalhava na época.

    Por essa época, passou a atuar também como “uma espécie de diretor artístico de Elizeth Cardoso”, como conta o jornalista e escritor Sérgio Cabral na biografia que escreveu sobre a cantora, publicada pela Editora Lumiar em 1994. “Sua primeira orientação foi no sentido de que ela parasse de mexer tanto as mãos enquanto cantava. ‘Você não é Carmen Miranda’, dizia ele, acrescentando que, se não soubesse onde colocar os braços, que os colocasse para trás, ‘como as cantoras francesas’.”

    Segundo Cabral (ainda no livro “Elizeth Cardoso, uma vida”), a cantora e Evaldo Rui eram namorados desde 1948, quando se conheceram, no tempo em que ele era diretor artístico da Rádio Mauá e ela, ainda iniciante, entrou para o cast da emissora. “Evaldo era casado e tinha um filho, mas o seu caso de amor com Elizeth não tinha nada de clandestino”, relata o biógrafo da artista. “Frequentava a casa dela e os dois nunca deixaram de aparecer em lugares públicos.”

    Sempre vistosos (ambos muito bem vestidos, ele com seu 1,90m de altura que lhe valia o apelido de “Espanador da Lua”), Elizeth e Evaldo eram figurinhas fáceis na vida social carioca e, volta e meia, também nas colunas de fofocas das revistas, sempre que havia alguma rusga ou desenlace. “A vida dos dois não era inteiramente um mar de rosas”, escreve Sérgio Cabral na biografia da cantora. “Houve rompimentos que os levaram até a namorar outras pessoas.”

    O romance dos dois virou assunto especialmente depois que Evaldo Rui pôs fim a sua própria vida (04-09-1954), depois de muitas doses de bebida alcoólica ingeridas num bar em Copacabana e outras tantas em seu apartamento em Botafogo, onde também liquidou uma caixa de soníferos, escreveu bilhetes de despedidas e deu telefonemas. Já estava em coma quando recebeu os primeiros socorros, vindo a falecer quando deu entrada no Hospital Miguel Couto, no Leblon.

    Além da relação com Elizeth, fartamente mencionada nos veículos mais sensacionalistas, outro problema que atormentava Evaldo Rui seria a falta de dinheiro, como relatou Sérgio Cabral na biografia da cantora: “Haroldo Barbosa, numa conversa informal sobre o irmão, disse-me que a sua vida financeira era ‘um verdadeiro caos’.”

    “Uma terceira versão, bem plausível, mas pouco citada pelo desconhecimento que se tinha então sobre o assunto, era a possibilidade de um surto de depressão alcoólica”, aponta Ruy Castro em “A noite do meu bem”, no qual informa que Evaldo “era alcoólatra, e o alcoolismo está sujeito a provocar esse tipo de rompante durante uma crise. A soma de todos os problemas – dinheiro, o casamento, o caso com Elizeth – pode ter sido potencializada pelo álcool e levado Rui a uma depressão aguda para a qual a única saída era a morte”.

    Seguiram-se ao falecimento – e ao sepultamento, no cemitério São João Batista, em Botafogo – algumas belas homenagens de seus amigos, entre os quais estavam alguns dos melhores cronistas da imprensa carioca. Como Fernando Lobo, no já citado texto publicado na Revista de Música Brasileira: “Quando cheguei, meu amigo estava morto. Olhei suas mãos, seus olhos e aquele sorriso que trazia na boca sem vida parecia querer fazer de mim o mesmo boêmio de suas andanças, traído pelas coisas fingidas.”

    Já Rubem Braga relatou uma conversa imaginada com o amigo em sua coluna no Correio da Manhã (05-09-1954): “Sonhei que, no fundo da madrugada, tinha me encontrado com o Evaldo Rui ressurgindo de sua morte, sempre bem vestido, o colarinho um pouco apertado e que, sem estranhar muito (eu devia estar bêbado), lhe tinha dado uma pancada nas costas com ar de censura: ‘Mas, sim senhor, hem, seu Rui! Que papelão!’ E ele tinha rido muito seu riso rouco, meio encabulado.”

    E Antônio Maria, no Diário Carioca (07-09-1954), citou um dos sucessos de Evaldo com Custódio Mesquita: “Nunca pensei que você saísse do meu caminho, juntando tudo que era seu, seu amor, sua bondade, sua poesia, seu jeito irmão de ser amigo dos seus amigos. Em vez disso, você podia ter-me telefonado. Eu lhe diria umas coisas sem importância, mas tão amigas que, se você estivesse só, sentir-se-ia rodeado; se estivesse triste, acharia graça de mim; se estivesse doente, viria saúde outra vez para o seu coração.”

    Já entre as homenagens musicais vieram lançamentos póstumos de composições de sua autoria, como “Trinta e um de dezembro” (mais uma parceria com Fernando Lobo), com seus versos sofridos – especialmente para Elizeth Cardoso, que gravou a valsinha em fins de 1957:

    Hoje eu vesti
    O vestido mais lindo que eu tinha
    E fui esperar o meu bem
    No meu canto sozinha
    As horas passando de pressa
    E ele não vem...

    Foto: Evaldo Rui na revista A Cigarra (Ano XXXV - Nº 10), outubro de 1954 / Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

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