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    Salve o manto azul e branco da Portela: histórias de um centenário através dos discos de 78 rpm

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Tradicionalíssima escola de samba do carnaval carioca, a Portela comemorou, no último dia 11 de abril, seu centenário de fundação com missas, shows e outras solenidades. Na verdade, o que se passou no ano de 1923 não foi propriamente a fundação da escola, mas a estruturação de um dos blocos que deram origem à Portela: o Baianinhas de Oswaldo Cruz, que naquele ano “deixou de ser um bloco de arrelia para ser uma organização séria, com diretoria e estatutos”, como contam Marília Trindade Barboza e Lygia Santos no livro “Paulo da Portela: traço de união entre duas culturas” (Funarte/1980).

    Um segundo bloco ainda seria fundado (o Conjunto Carnavalesco de Oswaldo Cruz, em 11 de abril de 1926) e depois rebatizado duas vezes – primeiro como Quem Nos Faz é o Capricho e, por fim, Vai Como Pode. É com este último nome que a Portela faz suas primeiras apresentações, a começar pelo carnaval de 1932, quando o jornal Mundo Sportivo promove o primeiro desfile competitivo entre escolas de samba – certame vencido pela Estação Primeira de Mangueira. Só após o carnaval de 1935 a Vai Como Pode passa a se chamar Portela.

    Aliás, o leitor ou a leitora que buscar por sambas exaltando a Portela aqui na Discografia Brasileira há de ficar um tanto desapontado: a escola azul e branca de Oswaldo Cruz foi muito mais cantada na era dos LPs do que na dos discos de 78 rotações, haja vista as três ocorrências na busca deste site: tem o seresteiro Gilberto Alves cantando “Salve a Portela” (1945), a “academia do samba” sendo exaltada em “Portela” (1957) e ainda uma ode dançante do paraense Billy Blanco: “Lá vem Portela” (1962).

    Já a história da Portela está muito bem representada na Discografia Brasileira através de sambas que remetem a episódios importantes. Como o primeiro desfile, no carnaval de 1932, quando a escola se apresentou na Praça Onze cantando três sambas, entre eles “Dinheiro não há”, composição de Ernani Alvarenga que extrapola todos os limites possíveis da misoginia.

    Lá vem ela chorando
    O que é que ela quer?
    Pancada não é, já dei
    Mulher da orgia quando começa a chorar
    Quer dinheiro... dinheiro não há!

    Mas o fato é que, na época, este refrão não só estava longe de soar ofensivo como até fez bastante sucesso, a ponto de ser eternizado num disco da Parlophon, com a segunda parte composta por Benedito Lacerda especialmente para a ocasião. Naquele tempo, os sambas com os quais as escolas desfilavam tinham só a primeira parte, que era entoada em coro pelos integrantes – o resto era cantado de improviso pelas vozes mais potentes das escolas (já que não havia amplificação de som).

    Até que em 1935 veio o nome definitivo da Portela, numa história curiosa: o delegado Dulcídio Gonçalves, responsável pela licença de desfiles que era concedida às agremiações, achou inadequado Vai Como Pode. “Por que vocês, localizados na Estrada do Portela, não aproveitam esse nome?”, teria sugerido o delegado, como tantas vezes contou Monarco. Também neste ano a escola levantou o primeiro de seus 22 títulos de campeã – até hoje um recorde absoluto entre as escolas de samba do Rio de Janeiro.

    Um feito que se deve, em grande parte, à liderança de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela (1901-1949). Foi ele, sambista nas horas vagas da rotina como lustrador de móveis, que fundou e organizou a escola, juntamente com Antônio Rufino (1907-1982), primeiro tesoureiro da Portela, e o desenhista Antônio Caetano (1900-1982), criador da bandeira e das primeiras alegorias. Paulo também era compositor de mão cheia, embora a ocorrência mais antiga de seu nome aqui neste site seja como cantor: é em sua voz que se pode ouvir a embolada “Tia Chimba” (Heitor dos Prazeres), lançada pela gravadora Brunswick em 1930.

    À frente da Portela, coube a Paulo definir o caráter da escola, exigindo dos demais componentes um comportamento que dignificasse não só a agremiação como a própria figura do sambista – frequentemente retratado como marginal por quem não era do samba (fosse nos veículos de imprensa, nas delegacias de polícia ou nos escritórios do poder). Paulo exigia que os portelenses se apresentassem “de pés e pescoço ocupados” (ou seja, de sapatos e gravata), sendo tratado na Portela como “o Professor”, como canta Aracy de Almeida no samba “Ninguém ensaiou” (Haroldo Lobo e Benedito Lacerda), de 1944.

    Também emplacou sambas de sua autoria em vozes importantes de sua época, como Mário Reis, que em 1931 lançou “Quem espera sempre alcança”. Logo seu reconhecimento veio através dos jornais, que o elegeram “melhor compositor das escolas de samba” (1935), “Cidadão Momo” (1936) e “Cidadão Samba” (1937). Em seu trabalho de mediação entre o samba e demais setores da sociedade, contou com o amigo Heitor dos Prazeres (1898-1966), já então sambista considerado no Estácio, com acesso às gravadoras e ao rádio. A parceria entre eles se estendeu à criação, em sambas como o melodioso “Cantar pra não chorar”, que os ouvintes de discos conheceram na voz de Carlos Galhardo.

    Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela.
    Foto da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    A chegada de Heitor à Portela, no entanto, começou atravessada já no primeiro movimento de levar um samba de Oswaldo Cruz para ser gravado em disco. E foi assim que “Vai mesmo”, composição de Antônio Rufino, foi lançado por Mário Reis em maio de 1929, o que seria um motivo de orgulho para os portelenses se no selo do disco Odeon a música não tivesse sido identificada como sendo de Heitor dos Prazeres. Nem como parceiro de Heitor o nome de Rufino aparecia.

    Os companheiros de Rufino nem quiseram saber que no berço de Heitor, a Cidade Nova, samba era “que nem passarinho: de quem pegar primeiro”, nos dizeres de Sinhô, aliás parceiro de Heitor. Simplesmente não engoliram, ainda que Paulo tenha tentado contemporizar o deslize do amigo. A desavença culminaria, em 1941, num desentendimento durante o carnaval que levaria Paulo a sair da Portela para nunca mais voltar – só em visitas esporádicas, jamais como componente. Seus sentimentos sobre o episódio ficaram registrados em “O meu nome já caiu no esquecimento”, samba de sua autoria que só seria gravado muitos anos depois, em 1989, pela Velha Guarda da Portela.

    Chora, cavaquinho, chora
    Chora, violão também
    O Paulo no esquecimento
    Não interessa a mais ninguém...

    Mesmo após a morte precoce de Paulo (vitimado por um colapso cardíaco aos 47 anos, em janeiro de 1949), a Portela ofereceu sua quadra para o velório, mas a família fez a cerimônia em casa. Passado o cortejo fúnebre até o cemitério do Irajá (seguido por uma multidão calculada em 15 mil pessoas), vieram homenagens musicais de colegas compositores. Como Aníbal Silva e Éden Silva (o Caxiné), que fizeram o samba “Paulo da Portela”, e Haroldo Lobo, que compôs “Chorou Madureira”, samba co-assinado por seu parceiro Milton de Oliveira.

    Outros personagens dos primórdios da Portela tiveram suas composições gravadas em discos de 78 rotações. Caso de Boaventura dos Santos, o Ventura (1908-1974), que trabalhava como carpinteiro, mas se realizava mesmo no samba. Nos primeiros desfiles da escola, era dele uma das vozes que ressoavam pela Praça Onze, improvisando versos das segundas partes. Mas aqui ele comparece mesmo como compositor de “Vejo lágrimas” (co-assinado por Osvaldo Vasques, o Baiaco, malandro do Estácio), sucesso de Moreira da Silva em 1932.

    Quem também emprestava seu “gogó de ouro” aos primeiros desfiles da Portela (ainda nos tempos de Vai Como Pode) era João Rodrigues de Souza, o João da Gente. Sua voz possante – assim como a de Ventura – pode ser ouvida no primeiro LP da Velha Guarda da Portela, “Portela, passado de glória”, lançado em 1970, pela gravadora RGE, com produção de Paulinho da Viola. Nesse repertório, João comparece não só como cantor, mas também como compositor: é dele com Heitor dos Prazeres o samba “A tristeza me persegue”, que na gravação original – por Januário de Oliveira (1930) – ainda se chamava “Tristeza”.

    A tristeza me persegue
    Ora, vejam que martírio o meu
    Muito embora na orgia...
    Eu não tenho alegria, meu Deus!

    Completa o trio de “tenores” portelenses Alcides Dias Lopes (1909-1987), outro que com sua voz – neste caso, aguda – puxava os desfiles da escola. Autor do samba “Vivo isolado no mundo”, grande sucesso de Candeia (1978) e Zeca Pagodinho (1996), recebeu o apelido de “Malandro Histórico”, apreciador que era dos bons causos e da malandragem, embora seus verbetes informem que era funcionário da Central do Brasil, onde trabalhava como manobrista. Seu único samba gravado em 78 rotações é o ótimo “Eu chorei”, lançamento de 1940 no dueto dos irmãos Paulo e Haroldo Tapajós.

    Seu parceiro nesta composição é outro grande personagem da Portela: Oswaldo dos Santos, o Alvaiade (1913-1981), que na vida civil se dividia entre a profissão de tipógrafo e a atividade paralela de jogador de futebol – chegou a ser goal keeper da Associação Atlética Portuguesa, da Ilha do Governador. Já no samba, teve como padrinho ninguém menos do que Paulo da Portela, que o trouxe para sua escola, onde atuou como porta-voz, diretor de harmonia e presidente da ala de compositores. Foi também, entre os sambistas de Oswaldo Cruz, um dos mais gravados na era dos discos de 78 rotações.

    Entre os cantores que deram voz a seus sambas estão Cyro Monteiro, que em 1947 lançou “Meu trabalho” (dele com Alberto Maia), e Ataulfo Alves, que deu vozes – ele com seu coro de pastoras – a “Banco de réu” (com Djalma Mafra), sucesso de 1949. E foi como parceiro de Alvaiade que o jovem Monarco (1933-2021) teve sua primeira composição gravada, quando, na vida corrida entre empregos diversos (foi contínuo da Associação Brasileira de Imprensa, vendedor de palha de aço, peixeiro...), ainda nem sonhava virar artista, ainda mais líder da Velha Guarda da Portela. Isso em 1956, quando Risadinha lançou “Vida de rainha”, marcando o início de sua trajetória fonográfica.

    José Ramos Tinhorão e integrantes da Velha Guarda da Portela no estúdio da TVE:
    Manacéa, Alberto Lonato e Monarco. Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    Quem também fez história na Portela, mas só teve uma composição gravada em 78 rpm foi Aniceto José de Andrade (1912-1982), o Aniceto da Portela – fundidor de profissão, grande melodista e irmão mais velho dos também compositores Manacea (1921-1995) e Mijinha (1918-1980). Antes de ter sucessos gravados por Clara Nunes (“Quem me ouvir cantar”) e Beth Carvalho (“Desengano”) nos anos 1970, sua estreia foi em 1963, quando seu samba “Sofrer por errar” saiu em disco na voz de Zezinho.

    Outro baluarte portelense com boa entrada nas gravadoras era Ernani Alvarenga (1914-1979), o já citado autor de “Dinheiro não há”, samba do desfile inaugural da escola, em 1932. Paulistano da Barra Funda, chegou a Oswaldo Cruz ainda na década de 1920, quando criou o “bloco da Rua B”, dissolvido pouco antes de ser convidado por Paulo da Portela a mudar de agremiação. Entre os sambas de sua autoria gravados em 78 rpm estão “Fica de lá”, sucesso de Francisco Alves em 1939, e “Quatro mil e quinhentos cruzeiros”, que teve menos repercussão na gravação original (por Jairo Aguiar, em 1957) do que quando foi regravado por Beth Carvalho, em 1976, com o nome de “Salário mínimo”.

    Também de Alvarenga é “Sabiá cantador”, samba que Leonel Faria lançou em 1934 e foi regravado com sucesso no ano 2000 pela Velha Guarda da Portela, tendo como solista Jair do Cavaquinho (1920-2006). Este, que fora do samba atendia por Jair Costa e dava expediente na Secretaria Municipal de Obras, teve apenas uma composição lançada em 78 rpm: “Meu barracão de zinco”, sucesso de 1961 na voz de Jamelão, que divide com ele a autoria do samba, muito cantado nos ensaios da Portela.

    Outro grande samba lançado em disco por Jamelão é “Leviana”, muito cantado nos ensaios da Portela ao longo de 1954, ano de sua gravação. Foi o primeiro sucesso do portelense Zé Kéti (1921-1999), que já tinha emplacado um sucesso carnavalesco (“Amor passageiro”, na folia de 1952), mas agora chegava a outro patamar. Só que correu na Portela um boato de que Zé não seria o verdadeiro autor do samba e ele, magoado, se afastou da escola. Por ironia, estava filiado a outra agremiação, na pequena União de Vaz Lobo, quando fez o maior sucesso de sua obra, “A voz do morro”, de 1955 (que foi tema de um post em 2021). Mas não se demorou longe de casa: já estava de volta à Portela quando o cantor Jorge Goulart gravou “O samba não morreu” (de Zé com Urgel de Castro), em agosto de 1956, com versos dirigidos ao próprio samba:

    Tens na Mangueira e na Portela
    No Salgueiro e na Favela
    Sua representação
    Enquanto houver no terreiro
    Uma nova geração
    Tu sairás em cada voz
    Do coração

    Pois vieram justamente desta nova geração homenagens marcantes à Portela gravadas em LP. Como o samba em que Paulinho da Viola, recém-chegado à escola, traduziu seu encantamento em “Foi um rio que passou em minha vida”, que ele próprio lançou em 1970 e até hoje é um de seus maiores sucessos (senão o maior deles). Seguiram-se a este samba outras homenagens musicais muito queridas pelos portelenses: como “Sonho de bamba”, sucesso de João Nogueira (como autor e cantor) em 1972, e “Porta aberta”, que Luiz Ayrão compôs e gravou em 1973.

    Outra homenagem famosa à escola de Oswaldo Cruz foi feita a partir de um desejo da cantora Clara Nunes, grande portelense, que pediu um samba dedicado à Portela a seu companheiro, o compositor Paulo César Pinheiro. A resposta veio com “Portela na avenida”, feito em parceria com Mauro Duarte e gravado por Clara em 1981, com enorme sucesso. Virou logo o “samba de esquenta” da escola antes de iniciar seus desfiles no carnaval – às vezes cantado na sequência do “Hino portelense”, o samba de Chico Santana (lustrador de móveis, 1911-1988) que costuma ser cantado também na abertura dos ensaios e festas na quadra da escola.

    A escola de Paulo, Rufino e Caetano também mereceu homenagens por seu “samba natural de Oswaldo Cruz”, como Zé Kéti cantou em “Portela feliz”, e por sua garra (“a luta é seu ideal”), como no samba “O ideal é competir”, nascido da parceria entre dois grandes portelenses: Otto Henrique Trepte, o Casquinha (bancário, 1922-2018), e Antônio Candeia Filho, o Candeia (policial, 1935-1978), que chegou a presidir a ala de compositores da escola.

    Há ainda os convites em forma de samba, como “Se tu fores na Portela”, de Ventura, que a Velha Guarda da escola gravou em seu primeiro LP (1970), e os sambas históricos – especialidade do também já citado Monarco, este o recordista em homenagens musicais à Portela. Entre elas está “Homenagem à Velha Guarda da Portela”, feita em resposta a “Homenagem ao malandro”, o samba em que Chico Buarque se queixa de ter ido à Lapa e perdido a viagem, pois “a tal malandragem não existe mais”.

    E por aqui encerramos nossa prosa, na certeza de que ainda faltaram nesta nossa compilação tantas outras homenagens musicais à Portela, pois não há tempo nem espaço que chegue. Afinal, como diz a letra de “Passado de glória”, obra-prima de Monarco...

    Juro que nem posso me lembrar
    Se for falar da Portela
    Hoje não vou terminar

    Para saber mais:

    >> Documentário "O mistério do samba" (Lula Buarque de Holanda e Carolina Jabor, 2008)

    >> Documentário "O teu nome não caiu no esquecimento" (Demerval Neto, 2001)

    >> Filme "Natal da Portela" (Paulo César Saraceni, 1988)

    >> A Velha Guarda da Portela no programa MPB Especial, TV Cultura (Fernando Faro, 1975)

    >> A Velha Guarda da Portela no programa Ensaio, TV Cultura (Fernando Faro, 1991)

    Na foto principal: Paulinho da Viola e a Velha Guarda da Portela em sua primeira formação (1970): de pé, Aniceto (com o cavaquinho), Alberto Lonato, Chico Santana (de braços cruzados), Antônio Caetano (encoberto, atrás de Chico), Armando Santos, Vicentina e Manacéa (com o violão). Na linha da frente, Casquinha, Iara, Monarco (com cavaquinho), Alcides Dias Lopes, Cláudio Bernardo e Mijinha (com o pandeiro).  Foto da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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