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    João Valentão setentão: o pescador que Caymmi levou nove anos para transformar em música

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Dorival Caymmi foi um mestre não só na arte de compor, mas também na de criar personagens emblemáticos que estrelaram sua obra – em ritmo de samba, samba-canção ou canção praieira (três principais vertentes da música do compositor baiano). Como Dora, a rainha do frevo e do maracatu. Marina, a morena Marina, que já é bonita com o que Deus lhe deu. Ou Adalgisa, que avisa que a Bahia viva ainda lá... Tem o Pedro, que vivia da pesca e saía às seis horas, antes do sol raiar. E ainda outro pescador, brigão e sonhador, que tomou forma em “João Valentão”, sucesso gravado pela primeira vez há exatos 70 anos (28-05-1953), na voz do próprio Caymmi, com acompanhamento de orquestra. Mas que nasceu bem antes, como tinha de ser, numa beira de praia.

    Isso no areal de Itapuã, na Bahia, onde Dorival passava temporadas com seus amigos desde a adolescência, no começo da década de 1930. Distante do centro de Salvador, a praia, onde hoje há a Praça Caymmi (inaugurada em 1953), é um local absolutamente fundamental na trajetória do compositor baiano: foi lá que se deu seu encantamento pelo mar, pelos pescadores e pelas histórias que transformaria em música na porção mais expressiva de sua obra: as “canções praieiras”.

    Até que, no verão de 1936, um desses tipos chamou sua atenção: “Uma pessoa querida, um pescador – eu nunca soube o nome dele – com apelido de Carapeba, nome de peixe”, como Dorival relembrou à sua neta, Stella Caymmi, na biografia “Dorival Caymmi: o mar e o tempo” (Editora 34, 2001). “Ele era musculoso, não era um galã, era pai do Aurelino, que era pescador, com quem eu me dava por causa da idade. Carapeba era um ídolo pra mim.”

    Certo dia, Carapeba convidou-o para acompanhá-lo numa pescaria, saindo de barco às cinco da manhã, mas Dorival, não querendo perder o dia de praia com os amigos, não apareceu. No fim do dia, sua ausência foi cobrada pelo pescador na frente de todos: “Você disse que ia!” A reação mexeu com o rapaz, já então pensando em dedicar-lhe uma música. “Aí fiz o tipo que estava dentro de mim, passei pra ele um pouco de mim, botei aquela figura”, contou à neta Stella. Um início criado de supetão, “fazendo versos espontaneamente”.

    João Valentão é brigão
    Pra dar bofetão
    Não presta atenção
    E nem pensa na vida
    A todos João intimida
    Faz coisas que até Deus duvida
    Mas tem seu momento na vida

    Já na segunda parte, mais contemplativa, descreve o ambiente de Itapuã que o inspirou a compor a música. “Mas isso estou debaixo de muita estrela, aquele areal todo, aquela fresca da noite, aquelas meninas, aquela coisa toda, aquele cheiro”, relata Dorival em sua biografia, contextualizando as imagens que se seguem na canção: o sol que se põe “lá pro fim do mundo”, a noite que chega e o ronco das ondas na beira do mar. Só aí volta a falar no personagem.

    É quando o cansaço da lida da vida obriga João se sentar
    É quando a morena se encolhe, se chega pro lado querendo agradar
    Se a noite é de lua a vontade é contar mentiras, é se espreguiçar
    Deitar na areia da praia que acaba onde a vista não pode alcançar...

    “Quando eu fiz ‘deitar na areia da praia’... Deitar na areia da praia é muito gostoso, não é? Aí parei”, contou Dorival a Stella Caymmi. “Eu pensava: ‘O que pode acontecer a ele? O que é que pode ser?’ Via uma coisa e não dava. Eu dizia: ‘Esquece.’ Aí, um ano, um ano e meio...”, prossegue o compositor, com a falta de pressa que lhe é peculiar. “Tempo é um negócio assim de alto mistério, tempo pra mim é... O tempo não precisa de relógio, não precisa de medida nem nada. Se você pudesse acompanhar o sol, teria um elemento constante: o tempo. Então, tem um orixá no candomblé chamado Tempo, porque ele rege exatamente esse tempo que significa tudo de que a gente depende.”

    Assim, o arremate da história veio nove anos depois, em 1945: Dorival Caymmi já no Rio de Janeiro (onde morava desde 1938) e artista de sucesso. Vinha no bonde do Grajaú, acompanhado do ator e radialista Paulo Gracindo e da cantora Aracy de Almeida, que reclamou: “Eu estou falando com você um negócio e você não está ouvindo.” É que ali, num banco no fundo do bonde, a história de “João Valentão” completou-se de estalo. “Eu tinha achado: e assim adormece esse homem, que nunca precisa dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra, não há.” Cantou a música para amigos e um lhe sugeriu de trocar “sua terra” por “sua vida”, numa escolha que lhe tomou mais algum tempo. “Aí achei que terra abrangia melhor, encorpava melhor, adocicava melhor a coisa, o pé na terra.”

    Entre os atrativos da composição de Caymmi estava sua estrutura: na abertura, um “frenético ritmo de samba-batucada”, como define Zuza Homem de Mello no livro “Copacabana” (Editora 34, 2017), intenso como as façanhas do Valentão – estas ressaltadas pela sequência de palavras no aumentativo. Até que, subitamente, quando se chega ao ponto em que o personagem tem “seu momento na vida”, o ritmo subitamente se altera: é num andamento mais lento, de samba-canção, que ficamos sabendo da faceta terna do pescador.

    Uma estrutura que, segundo o músico e linguista Luiz Tatit, representa uma das “facetas mais esquisitas” que Caymmi apresenta em sua obra: “João Valentão” não é só samba; nem só samba-canção; nem só canção praieira – é tudo isso, com “uma primeira parte que nada tem a ver com a segunda”, como ele definiu ao jornal O Estado de S. Paulo (30-04-2004). “Na primeira, ele faz uma espécie de apresentação do que vai acontecer”, como experimentou também em “Canoeiro” e “Rainha do mar”.

    Um dos primeiros a conhecer “João Valentão” em sua forma definitiva foi o escritor Jorge Amado, amigo-irmão de Caymmi, que, recordando a audição à Manchete (26-10-1963), definiu a canção como “um retrato do negro baiano – e retrato de corpo inteiro. Enquanto Caymmi cantava eu via não o negro João Valentão, mas muitos outros negros baianos que conheci na beira do cais, na feira de Água dos Meninos, no Largo das Sete Portas, no Mercado do Ouro. Recordei-me – perdoai-me a vaidade! – do negro Antônio Balduíno, que criei nas páginas do ‘Jubiabá’”.

    Caymmi passou, então, a apresentar sua nova criação em shows na noite carioca e turnês pelo Brasil. Logo começaram a pipocar notinhas sobre quem iria lançar a música em disco: um postulante era Dick Farney, o outro seu rival Lucio Alves... Até que o suplemento cultural A Noite Ilustrada (25-03-1947) informou que “João Valentão” seria gravado mesmo por seu próprio criador, recém chegado “de uma excursão pelo Norte”. Mas pra que pressa...?

    Só em 28 de maio de 1953 deu-se a gravação original, feita pelo próprio Dorival, com acompanhamento de Osvaldo Borba e sua Orquestra, no estúdio da Odeon, localizado no Edifício São Borja (Avenida Rio Branco, Centro do Rio). Já o disco – o 78 rotações de nº 13478 – saiu apenas em agosto daquele ano, com “João Valentão” no lado B – no A estava a primeira gravação de outro samba-canção de Caymmi, “Tão só” (em parceria com Carlos Guinle), gravado por ele na mesma sessão de 28-05-1953. Mas foi mesmo a história do pescador de Itapuã que largou na frente na preferência das emissoras de rádio.

    Uma popularidade que se consolidou com o tempo, como se pode ver, por exemplo, nas sucessivas menções que a música recebeu nas enquetes promovidas pelas revistas da época. Como Manchete (03-10-53), que perguntou a personalidades da música quais “os 10 melhores sambas”: a composição de Caymmi foi escolhida por Radamés Gnattali (que escolheu também “Dora”) e Sílvio Caldas (que selecionou “Dora” e “Marina”). O samba-canção foi lembrado também em enquetes na Revista do Rádio – por Carlos Galindo (02-04-55) e Ismael Neto (28-05-55) – e na Revista do Disco – por Marlene (novembro/1954) e Gilberto Milfont (maio/1957). Já n’O Cruzeiro (03-09-55), o cartunista Péricles elegeu não só “João Valentão” (melhor samba), como Dorival Caymmi (melhor compositor).

    Logo “João Valentão” ganhou novas interpretações, a começar pelo piano do concertista cearense Jacques Klein, que incluiu a música no LP de dez polegadas dedicado a Caymmi que fez em 1953 pela Sinter. Outras gravações saíram na sequência, como duas em setembro, por intérpretes paulistas: uma do cantor-locutor Osni Silva e outra de Juanita Cavalcanti – esta alterando a melodia original. Em novembro, foi a vez de a história ser recontada nas vozes terçadas das irmãs mineiras Neide e Nanci.

    Já em 1955 a ode ao pescador Carapeba ganhou mais uma versão instrumental, com o Trio Surdina, e no ano seguinte veio a interpretação delicada da cantora e estrela de cinema Vanja Orico. Já em 1958 “João Valentão” foi relida ao piano por Ary Barroso e ganhou uma interpretação exuberante com Angela Maria – antecipando outra gravação marcante da música, lançada em 1965 por sua seguidora mais famosa, Elis Regina. Já Chico Buarque não gravou o “João”, mas o incluiu entre as três músicas que levaria para uma ilha deserta, como contou à revista O Cruzeiro, na edição de 18-03-1967 (as outras duas: “Amélia” e “Quando o samba acabou”).

    Outras vozes femininas recontaram a história de João, como as paulistas Inezita Barroso (1979) e Ná Ozzetti (2001) e as cariocas Áurea Martins (2004) e Beth Carvalho (2007). Também do Rio são os conjuntos Sururu na Roda e Casuarina, que gravaram a música em 2004 e 2014, respectivamente.

    Já entre os conterrâneos de Caymmi, destacam-se interpretações como as de Simone (1973), Caetano Veloso (1994), sua irmã Maria Bethânia (2004) e Gal Costa, que incluiu a canção em dois especiais de TV que gravou: na Globo (1981) e na Cultura (1994). Com “uma extraordinária melodia e uma letra comovente”, “João Valentão” está entre as preferidas de Gal, como disse a cantora ao Estado de S. Paulo (30-04-2004): “Talvez seja a canção mais bonita dele.”

    Dorival Caymmi também regravou sua composição (1985), assim como seus dois filhos mais velhos. Da primogênita Nana Caymmi foram quatro registros, sendo dois de estúdio – com Gilson Peranzzetta (1986) e com Wagner Tiso (1994) – e dois ao vivo: num show da família Caymmi (1987) e na participação especial que fez no CD/DVD “Brasileirinho ao vivo”, de Maria Bethânia (2004). Dez anos depois, foi a vez de Dori Caymmi cantá-la, em belo arranjo de Mário Adnet, no CD “Caymmi centenário”.

    “Herdei do papai o amor pelo Brasil”, disse Dori à já citada matéria do jornal O Estado de S. Paulo, destacando os quatro últimos versos de “João Valentão” como os que mais o comovem. “Sempre choro quando canto isso.”

    E assim adormece esse homem
    Que nunca precisa dormir pra sonhar
    Porque não há sonho mais lindo
    Do que sua terra, não há

    Pois foi justamente com estes versos, declamados por Dori, que Dorival Caymmi foi sepultado no Cemitério São João Baptista, no bairro carioca de Botafogo, em 17 de agosto de 2008 – dia seguinte a seu falecimento, aos 94 anos, em seu apartamento em Copacabana.

    Foto: Reprodução da etiqueta do disco Odeon 13478 / Coleção Nirez / IMS 

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