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    Carolina Cardoso de Menezes por Maria Teresa Madeira: lembranças vivas da amiga ‘pianeira’

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    No último dia 27 de maio completaram-se 110 anos do nascimento de uma das maiores expressões do piano popular brasileiro: a carioca Carolina Cardoso de Menezes. Se o leitor ou a leitora não soube de nenhum evento ou nota que lembrasse a efeméride, nós também atestamos este vazio. Um silêncio, aliás, incompatível com o tamanho da personagem que, falecida no fim do ano 2000, foi a última representante do legado dos pianeiros – termo surgido com teor pejorativo (contraponto aos pianistas “de escola”, ou seja, de formação erudita), mas que acabou ganhando outro sentido: graças a eles o piano entrou de vez no choro, no samba, nos salões de dança, na diversão popular.

    Quem avaliza a afirmação é Maria Teresa Madeira, pianista, professora e estudiosa do tema que é mais do que uma cultora do piano de Carolina. Aos 62 anos, ela se orgulha de ter sido amiga da pianeira, com direito a lembranças como uma de outubro de 2000, quando, na chegada aos 40 anos de idade, apresentou-se na Sala Funarte, no Centro do Rio de Janeiro, em duas noites memoráveis. “Na primeira, ela me mandou flores e um cartão”, relembra a seguidora. “Na segunda, compareceu toda arrumadinha, de vestido, scarpin e cabelo feito, trazendo uma partitura de presente para mim. Quando foi para o piano, me instalei na plateia e fiquei lá, só admirando.”

    Maria Teresa sabia que aquela nobre arte (do piano cheio de bossa, suingue e apuro técnico), surgida em algum momento da virada entre os séculos 19 e 20, existia e resistia nas mãos ágeis da veterana Carolina, então com 87 anos. Não por outra razão, já há três anos (desde que se conheceram pessoalmente) aproveitava cada minuto para recolher partituras e fazer anotações – num caderninho espiralado com um desenho dos Simpsons na capa – de tudo que pudesse permanecer como informação histórica.

    Carolina Cardoso de Menezes não só retribuía, como cuidava. “Ela se preocupava comigo, daquele jeito carinhoso dela e volta e meia queria saber: você está sendo bem paga? Está cuidando bem de sua carreira?”, conta, sorridente, a aprendiz. “Era a delicadeza em pessoa.”

    A proximidade com a veterana pianista valeu para Maria Teresa (e agora também para nós) como uma viagem no tempo, precisamente até a década de 1920, quando a adolescente Carolina já dominava seu instrumento. “Ela estudou Teoria e Solfejo no Instituto Nacional de Música, mas não chegou a concluir o curso de piano”, conta Maria Teresa. “Esse foi um aprendizado que ela teve dentro de casa, com a própria família, desde bem menina. E assim, com o tempo, ela foi aprimorando a técnica e o domínio absoluto do teclado.”

    E aqui vale sublinhar que “bem menina” não é força de expressão: ela tinha só dois anos de idade – segundo as principais fontes de referência – quando começou as aulas caseiras, que se seguiram até os 12 anos, quando já tocava piano de ouvido. E se nessas mesmas fontes você topar com a expressão “família musical” para definir os Cardoso de Menezes, saiba que não se trata apenas de gente que apreciava e ouvia muita música.

    Seu pai, Oswaldo Cardoso de Menezes, era pianista profissional, assim como os pais dele, Judith Ribas e Antônio Cardoso de Menezes, que, segundo o site do Instituto Piano Brasileiro, chegaram a se apresentar para o imperador D. Pedro II. Sua mãe, Mercedes Gertrudes (que todos tratavam por D. Sinhá), era pianista nos saraus caseiros e costumava brincar de tocar a quatro mãos com a filha.

    Também pianista era o irmão de Sinhá, Alberico de Souza, mais conhecido como Bequinho nos cinemas, teatros e salões de dança onde trabalhava. Também era compositor, assim como o cunhado Oswaldo, este atração constante das casas de chope, onde, segundo o cronista Jota Efegê (O Jornal, 21-05-1967), os boêmios, quando não estavam dançando ao som de seus maxixes e tangos, se hidratavam à base de Fidalgas e Cascatinhas.

    Era também o maior entusiasta da carreira da filha, “o que não era pouca coisa nas primeiras décadas do século 20, quando vida artística não era coisa para mocinhas de boa família”, como observa Maria Teresa Madeira. Era também a principal referência da filha, que com ele (conhecido como “o Chorão da Cidade Nova”) aprendeu as primeiras noções de choro – gênero de composições marcantes da obra dela, como “Expressinho”, “Eu sou do barulho”, “Pombo correio”, “Fla-Flu” e “Derrapando na Gávea”.

    O pai não só incentivava Carolina, como também levou-a aos ambientes de música, com sorriso indisfarçado de orgulho. Numa dessas ela chegou à Parlophon, adolescente ainda, para participar de uma gravação histórica: é dela o piano que se ouve na gravação original do samba “Na Pavuna” (Homero Dornelas e Almirante), feita em 1929 pelo Bando de Tangarás, ou seja: Almirante (solista da faixa), João de Barro, Noel Rosa, Henrique Brito e Alvinho. “É impressionante como, aos 16 anos, Carolina já demonstra toda a personalidade que a acompanhará pela carreira”, sublinha Maria Teresa.

    Seu nome, não-creditado por esta gravação, já havia aparecido num selo de disco em 1928, como parceira do pai na canção “Gauchita Formosa”, lançada por Francisco Alves – mas a própria Carolina trataria de dizer que Oswaldo Cardoso de Menezes era o único autor da música. Já a partir de 1931 suas canções de fato começam a sair – pela mesma Parlophon – em sua própria interpretação: entre elas estão o samba “Eu passo” e o foxtrote “Good bye”.

    Por essa mesma época, seu nome ganha espaço no meio artístico e na preferência de ouvintes – entre eles a entusiasta das artes Gilda de Oliveira Rocha (companheira de Carlos Guinle), que se propõe a financiar os estudos musicais de Carolina em Paris. D. Sinhá, no entanto, preferiu manter por perto a filha (de 18 anos), que seguiu trabalhando no principal meio da época, como pianista da Rádio Sociedade, contratada desde 1930. Transferiu-se em 1935 para a Rádio Tupi, onde permaneceu até 1944, quando a carreira deu vez ao casamento com o engenheiro agrônomo Davino Cavalcanti, com quem se muda para São Paulo.

    No acervo de Maria Teresa Madeira, registros do último encontro com Carolina, em outubro de 2000: uma foto da veterana ao piano (em registro de Carol de Hollanda), uma mensagem de aniversário e a partitura manuscrita que recebeu de presente da pianeira. 

    Só em 1949, já de volta ao Rio de Janeiro, retoma a carreira radiofônica, como contratada da Nacional – onde permanece até se aposentar, em 1968. É no rádio que se populariza de fato, seja gravando como solista, seja acompanhando estrelas de seu tempo, como Carmen Miranda, Aracy de Almeida e Francisco Alves. Este último, aliás, foi responsável por lançar algumas das músicas que compôs, como o foxtrote “Amor, delicioso amor” (dela com Armando Fernandes), lançado num disco de 1932.

    Orlando Silva é outro grande nome do rádio a figurar na discografia de Carolina Cardoso de Menezes, com gravações como a do bolero “Mentiras” (outra dela com Armando Fernandes), de 1958. Do mesmo parceiro é o samba-canção “Escute, amor”, lançado num 78 rotações de Carlos Galhardo em 1953. Completa o time dos “quatro grandes” (como eram chamados os cantores mais populares da era do rádio) o seresteiro Sílvio Caldas, que em 1942 deu voz ao fox “Ausência”, parceria de Carolina com Elza Marzullo.

    Mas sucesso mesmo entre suas canções foi o que fez “Tudo cabe num beijo”, fox-canção em parceria com Oswaldo Santiago lançada em disco em 1938, por Manoel Reis. Para a revista O Malho (14-07-1938), por exemplo, foi aqui que Carolina, já então festejada como “uma pianista movimentada e acrobática”, “à maneira dos swing-stars”, “afirmou-se uma compositora de alta linhagem”. Já de seu repertório instrumental sucesso foi o que ela fez com “Preludiando”, composição de sua autoria que ela escolheu como prefixo de seu programa de rádio e gravou cinco vezes – duas em 78 rpm: a primeira em 1934 (identificada como fox blue) e a segunda em 1954, em andamento mais lento (fox slow).

    “Carolina Cardoso de Menezes tem apresentado, ultimamente, ótimos foxes”, leu-se na revista Fon-Fon (28-11-1936). “As suas interpretações lembram Fats Waller, o grande pianista americano que conhecemos de discos e filmes.” A revista acertou na mosca: Waller era um dos pianistas favoritos da artista, como se pode perceber, por exemplo, “nas décimas que ela usa no ‘Preludiando’”, como ressalta Maria Teresa Madeira. O outro pianista exemplar de Carolina era Radamés Gnattali, com quem trabalhou na Rádio Nacional. “Radamés dizia que ela era a rainha do fox.”

    Também em ritmo de fox destacam-se outras gravações da pianista em 78 rotações, como “I have money” (de sua própria autoria) e “Jalousie”, composição do violinista dinamarquês Jacob Gade que ela gravou entre os duetos que fez com o multi-instrumentista Garoto na primeira metade dos anos 1940. Ainda no âmbito da música dos Estados Unidos, também é de Carolina “Brasil rock”, um dos primeiros rocks nacionais, lançado em disco em maio de 1957, mesmo mês do 78 rpm de Cauby Peixoto que lançou “Rock n’ roll em Copacabana” (Miguel Gustavo).

    É provável que o ufanista Ary Barroso não tenha sabido da ousadia da pianeira – ou não a teria classificado como “o Nonô feminino”, pela habilidade e pelo suingue com que tocava samba no piano, à moda de Romualdo Peixoto, o Nonô, personagem do obituário escrito por Ary na Revista de Música Popular (dezembro de 1954).

    Entre os sambas da discografia de Carolina estão exemplares do gênero interpretados por ela, como “Caboclinha” (Oswaldo Cardoso de Menezes) e “Camisa listada” (Assis Valente). E também composições suas em parceria com Armando Fernandes, como “Palavra de honra” (gravada por Linda Batista), “Esquina da vida” (por Angela Maria) e “Tu, só tu” (por Cauby Peixoto).

    Outro fã ilustre da arte de Carolina Cardoso de Menezes foi o pesquisador, escritor e musicólogo Mário de Andrade, que arregalou os ouvidos para sua participação no Festival Nazareth, em dezembro de 1939. “Foi ela a grande nota pianística do festival”, anotou Mário, como se lê em “Música, doce música”, coletânea de textos de sua autoria editada em 1963, antes de enfileirar substantivos dedicados à instrumentista: “uma graça, uma naturalidade, uma untuosidade sonora e uma riqueza de acentos de deliciosíssimo caráter. Ela era a verdadeira tradição.”

    Foi dela, aliás, o primeiro LP todo dedicado à obra do principal cultor dos tangos brasileiros, o dez polegadas “Carolina Cardoso de Menezes interpreta Ernesto Nazareth”, lançado pela Sinter em 1953. Das oito faixas do disco, quatro saíram também em 78 rotações, entre elas o clássico “Brejeiro”. “Quando ouvi Carolina tocando Nazareth, senti pena ao passar pelas gravações com orquestra”, confidencia Maria Teresa Madeira. “Logo de cara percebi que eu gostava mais de ouvir Carolina tocando sozinha, que é como a gente percebe melhor as nuances de sua interpretação.”

    Pois foi justamente em torno de um piano de Nazareth que Maria Teresa e Carolina se conheceram: o instrumento, que havia pertencido ao músico, havia sido doado ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, que convidou as duas – mais a pianista Maria Alice Saraiva – para um recital que marcasse aquele 20 de março de 1997. “Assim que me levantei do piano, Carolina veio até mim e beijou minhas mãos. Ficamos amigas e assim fomos até o fim.”

    Nessa época, ela vivia no Cachambi, bairro das cercanias do Méier (zona norte do Rio de Janeiro), para onde se mudou em 1990, depois de sair de seu apartamento em Copacabana – a venda do imóvel foi a saída encontrada para a situação financeira em que ficou depois que o “Plano Collor” lhe deixou impossibilitada de acessar as economias de toda a carreira. Maria Teresa conta que, mesmo assim, a amiga nunca transpareceu qualquer amargura ou ressentimento quando falava do episódio. “Ela tinha o espírito jovem, com seus 85 anos, e não era de guardar mágoas”, recorda. “Não à toa, é um nome fundamental para mim não só artisticamente, mas também um pilar para quem sou. Devo muito a Carolina, que tive a sorte de conhecer, e também a Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth.”

    Carolina faleceu cerca de dois meses após o último encontro com a discípula, na Sala Funarte, onde se apresentou em público pela última vez. Tinha 87 anos e não conseguiu superar os problemas de saúde decorrentes de um câncer no colo do útero. Faleceu no último dia (31 de dezembro de 2000) do século 20 – o século em que personificou a memória do piano popular brasileiro: legado que herdou de antecessores (entre eles o pai, Chiquinha e Nazareth), transmitiu aos ouvintes durante a era do rádio e deixou para sucessores como Maria Teresa Madeira.

    “Ela falava do passado com muita naturalidade, sem se gabar do sucesso, que afinal era decorrente de seu trabalho. Mas não foi pouco o sucesso que ela fez, incomum naquela época para uma mulher que não fosse cantora”, frisa Maria Teresa, que a partir de 2001, quando recebeu uma bolsa da RioArte (entidade ligada à Prefeitura do Rio), pôde se aprofundar nos estudos sobre a obra da amiga-mestra. “Impressionante como daquelas mãozinhas pequenas – do tamanho das minhas! – saiu tanta coisa bonita: acordes grandes, oitavas incríveis, um som absolutamente limpo e um pianismo incrível. Além, claro, de muito suingue, afinal, era filha de Oswaldo e sobrinha de Bequinho.”

    Maria Teresa Madeira ainda não gravou um disco dedicado a Carolina (como fez com Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth), mas fez dela o tema de sua tese de Doutorado em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UniRio (clique aqui para acessar) e um minidocumentário produzido durante a pandemia de Covid 19 e disponibilizado em seu canal no YouTube.

    Aqui na Discografia Brasileira, o nome de Carolina está presente em gravações da década de 1920 à de 60, com ocorrências em todos os campos possíveis da busca. Como intérprete (78 vezes), autora (63) e acompanhadora, em 20 ocorrências, tanto no solo quanto como participante de conjuntos, como se pode perceber na playlist Acompanha... Carolina Cardoso de Menezes, criada pela coordenadora de música do IMS, Bia Paes Leme.  

    Curiosamente, a pianeira aparece como nome de música, “O piano maluco de Carolina”, sequência de foxtrotes ligeiros (claro!) cuja audição recomendamos, como uma demonstração não só de como é bom – mas também divertido – ouvi-la.

    Na foto principal, o registro do primeiro encontro de Carolina Cardoso de Menezes com Maria Teresa Madeira / Arquivo pessoal de Maria Teresa Madeira 

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