É fato que não existe uma fórmula para o sucesso. Mas se estivéssemos em 1933 e juntássemos, num mesmo disco, um compositor de alto nível, um cantor ou uma cantora muito popular – de preferência ambos, dividindo o microfone em dupla – e o melhor arranjador do Brasil, que era também o regente de um dos mais afinados e afiados conjuntos da época, teríamos uma grande chance de o resultado ser, no mínimo, primoroso. Para ser perfeito, bastaria que se acrescentasse à receita uma canção rapidamente assimilada pelo público e muito bem acolhida pela crítica especializada, pronta para se tornar um clássico da nossa música popular.
“Chegou a hora da fogueira” preenche todos esses requisitos. Gravada há 90 anos, no dia 5 de junho de 1933, e lançada pela gravadora Victor no mês seguinte, a marcha de Lamartine Babo transcendeu a barreira do tempo, mantendo-se até hoje como uma das mais populares músicas dos festejos juninos e julinos. O entrosamento e a atuação impecável dos grandes amigos Carmen Miranda e Mário Reis – também intérpretes do bonito samba “Tarde na serra”, de Lamartine, no outro lado do disco – são fatores que certamente colaboraram para a popularização imediata da canção. Além, é claro, da mão fundamental de Pixinguinha na concepção de um arranjo fabuloso e na regência do conjunto Diabos do Céu.
Sobre a origem das músicas voltadas para os folguedos juninos – ou “joaninos”, como se dizia antigamente –, ressalta Ricardo Cravo Albin em seu Dicionário da Música Popular Brasileira: “Das diversas festas populares, foi a primeira a criar um repertório musical próprio”. Salienta que “sua origem remonta às escolas jesuíticas para índios”, tendo os religiosos introduzido estes festejos “no Brasil ainda no Século XVI”. Segundo Cravo Albin, “já em 1603 Frei Vicente de Salvador registrava em sua obra ‘História do Brasil’ que os índios eram ‘muito amigos das novidades, como do dia de São João Batista por causa das fogueiras e capelas’”.
Desde o início do Século XX, composições evocando a festa ou seus santos passaram a aparecer em discos de 78 rotações. Mas foi apenas na década de 1930 que, nas palavras de Cravo Albin, “os primeiros compositores e cantores de música popular vão lançar mão desse filão, através da estilização de um determinado tipo de música, conhecida como música de São João, assim como se dava em época de Carnaval com os sambas e as marchinhas”. O pesquisador aponta que “uma das primeiras dessas composições foi a marchinha ‘Cai, cai, balão’, do compositor Assis Valente, gravada em 1933 por Francisco Alves e Aurora Miranda na Odeon”. Foi este disco que marcou a estreia fonográfica da irmã de Carmen.
Entre as duas não havia rivalidade, como atesta Ruy Castro em “Carmen: uma biografia” (Companhia das Letras, 2005): “Carmen participara das reuniões com Josué de Barros e Assis Valente para o lançamento de Aurora, inclusive na escolha de ‘Cai, cai, balão’ para o disco de estreia. Assis, naquele momento, era o compositor quase exclusivo de Carmen. Mas, se fora para ela que fizera ‘Cai, cai, balão’, Carmen abria mão da marchinha em função de Aurora. E, se não fosse por isso, havia ainda outro motivo para Carmen ser tão magnânima. É que Lamartine Babo acabara de lhe oferecer uma marchinha também junina: ‘Chegou a hora da fogueira’” – que, nas palavras de Ruy Castro, “não se limitaria a ser um dos grandes sucessos do meio do ano de 1933. Era apenas a melhor marchinha junina de todos os tempos”.
Por ironia, era a mesma marcha que não conseguira sequer se classificar no concurso – o primeiro do gênero – promovido em maio de 1933 pelo jornal A Noite e “destinado a premiar as melhores canções de temas juninos”, esclarece Suetônio Soares Valença em “Tra-la-lá: vida e obra de Lamartine Babo” (Funarte, 2014, 3ª edição). As sete primeiras colocadas são hoje completamente desconhecidas. Para divulgá-las, diz Suetônio que “o jornal A Noite programou a realização de um grande recital em que seriam interpretadas não só as canções vencedoras, mas muitas das que concorreram ao certame, sendo que algumas delas já vinham merecendo gravações pelas três principais fábricas de disco do tempo: Victor, Odeon e Columbia”. O resultado do concurso foi divulgado no dia 3 de junho; dois dias depois, a marcha de Lamartine já se eternizava nos estúdios da Victor.
"Chegou a hora da fogueira" no livro de registros da gravadora Victor – Arquivo Nirez
O recital a que se refere Suetônio, em benefício da Casa do Garoto, estava marcado para o dia 15 daquele mês no Teatro Recreio. Seria a estreia de Aurora Miranda, cantando “Cai, cai, balão” ao lado de Chico Alves, e da obra-prima de Lamartine – ainda desconhecida do público, pois, embora já gravada, só iria ser lançada em disco no mês seguinte. Durante dias, o jornal A Noite publicou matérias anunciando o evento. A edição de 08/06/1933 informava: “Outra novidade da parte Victor é ainda a apresentação em primeira audição de outras duas novidades de São João cantadas por Carmen Miranda e Mário Reis, ‘Chegou a hora da fogueira’ e ‘Tarde na serra’” – esta segunda, no entanto, nada junina. Em 12/06/1933, o periódico indicava, como acompanhante de Carmen e Mário nos dois números, a Orquestra Victor.
Mas, no dia do evento (15/06/1933), o jornal informou que Carmen e Mário estariam acompanhados pela orquestra Diabos do Céu, “que pela primeira vez se apresentará em público”. Segundo Suetônio, “como os músicos de Pixinguinha haviam acompanhado os intérpretes na gravação das canções a serem apresentadas e também pelo fato de eles dedicarem-se mais aos ritmos brasileiros, a Victor procedeu à substituição (...)”. Não foi a única mudança no programa, como explica Suetônio: “(...) o nome de Mário Reis (...) não figurou mais no noticiário nem na descrição da noite, feita no dia seguinte (...) tudo indicando que ele, por alguma razão, não participou da festividade e, portanto, do lançamento para o público das composições de Lamartine Babo (...)”. De fato, o texto publicado em A Noite do dia 16 informava: “Carmen Miranda encerrou o programa da festa com chave de ouro, cantando com grande sucesso ‘Chegou a hora da fogueira’, ‘Tarde na serra’ e ‘Eu queria ser ioiô’, todas de autoria de Lamartine Babo”, sendo obrigada a “bisar o seus números”.
A gravação, feita no dia 5 de junho, começa com uma vigorosa introdução orquestral criada por Pixinguinha e executada pelos Diabos do Céu – segundo o livro de registros da Victor, o conjunto era formado por piano, banjo, 2 saxofones, 2 pistões, trombone, contrabaixo e 5 baterias, além de um coro com 3 vozes masculinas. Já o fascículo sobre Lamartine Babo da coleção “História da Música Popular Brasileira” (Abril Cultural, 1970) traz uma informação ligeiramente diferente, indicando uma tuba em vez do contrabaixo.
“Chegou a hora da fogueira / É noite de São João / O céu fica todo iluminado / Fica o céu todo estrelado / Pintadinho de balão / Pensando no caboclo a noite inteira / Também fica uma fogueira dentro do meu coração”, canta Carmen no disco, com sua voz inconfundível e expressiva. O elegante Mário emenda a primeira segunda parte – a mais lembrada das duas: “Quando eu era pequenino, de pé no chão / Eu cortava papel fino pra fazer balão / E o balão ia subindo para o azul da imensidão”. Após a repetição da introdução orquestral, os papeis se invertem: Mário fica com o início – trocando “pensando no caboclo” por “pensando na cabocla” – e Carmen canta a triste estrofe final: “Hoje em dia o meu destino não vive em paz / O balão de papel fino já não sobe mais / O balão da ilusão levou pedra e foi ao chão”. Muitas vezes, como nessa marcha, Lamartine deixava transparecer seu lado chapliniano.
Aí a melodia instrumental, executada pelos Diabos do Céu, começa a subir, e sobe, sobe, sobe, sobe, sobe... Pixinguinha conseguiu a proeza de simular um balão se elevando ao céu! Orestes Barbosa, extasiado, escreveu um comentário para o jornal A Hora de 10/08/1933, transcrito no livro “Pixinguinha: filho de Ogum bexiguento” (Gryphus, 1998), de Marilia Trindade Barboza e Arthur de Oliveira Filho: “Pixinguinha! É hoje o orquestrador mais perfeito dos discos da cidade. O ‘Chegou a hora da fogueira’ tem um pedaço em que a música sobe e o povo sente mesmo o balão subindo, na sua vertigem pomposa. O balão e os foguetes. É intuitivo. Não precisa libreto para explicar”. Orestes ainda fazia uma blague com o nosso maior músico: “Coitadinho do Villa-Lobos!”.
Em depoimento para o programa “Pixinguinha junino”, da Rádio Batuta, Bia Paes Leme, coordenadora do setor de Música do Instituto Moreira Salles, fala com igual empolgação sobre o arranjo: “Um achado essa introdução em modo menor, e depois entra na música sem avisar ninguém que a música está em maior. É uma surpresa. Ele mostra a liberdade do Pixinguinha com esse repertório. As ideias vinham e ele simplesmente realizava. E aí chega aquele momento mágico da modulação para um intermezzo instrumental, em que ele tá no tom de Dó maior (...) e ele vai para Mi bemol. Só que ele faz uma ascensão em dez passos cromáticos (...) e você sente o balão subindo, e aí vem aquela explosão, aquela delícia de intermezzo (...)”. Bia lembra que o “balão” ainda “sobe” mais uma vez: “E na hora de voltar (...) consegue fazer uma ascensão novamente para chegar no Dó maior. Quer dizer, subiu na entrada do intermezzo e subiu outra vez na saída do intermezzo (...). Aquela subidinha final do balão. Uma delícia, uma festa, e mostra toda a capacidade do Pixinguinha de expressar, quase como se ele quisesse que a gente enxergasse as coisas através dos arranjos dele”.
Virgínia de Almeida Bessa, na dissertação “‘Um bocadinho de cada coisa: trajetória e obra de Pixinguinha” (São Paulo, 2005), após fazer uma análise técnica da orquestração de “Chegou a hora da fogueira”, arrisca: “Talvez não fosse intenção de Pixinguinha associar tal passagem cromática da música – aliás, presente nas modulações de vários outros arranjos – à ascensão do balão. O interessante, contudo, é notar a associação feita pelo crítico [Orestes Barbosa] entre um elemento da letra da música a um ‘desenho’ feito pelas alturas das notas – e veja que a subida no pentagrama [pauta musical], como a do balão, é gradual e cromática, e não ininterrupta e diatônica, como nas escalas. Não precisa, pois, de ‘libreto’ para o ouvinte entender: a música é auto-explicativa”.
Manuscritos de Pixinguinha (março de 1958) para piston, bombardino e tuba; arranjo utilizado no LP "Pixinguinha e sua banda" (maio de 1958) – Acervo Pixinguinha / IMS
No long-playing de 10 polegadas “Pixinguinha e sua banda”, lançado em maio de 1958, voltado para o repertório junino, “Chegou a hora da fogueira” ganharia um novo arranjo de Pixinguinha, escrito em março daquele ano – as partituras manuscritas originais encontram-se hoje em seu acervo no Instituto Moreira Salles. Com algumas dezenas de registros em LPs – de 10 e 12 polegadas – e mais recentemente em CDs, o clássico de Lamartine praticamente não foi gravado na época dos 78 rotações. Além do disco com o fonograma original, encontramos mais dois em que a marcha se faz presente. Um é a bolachinha “Cantigas de São João”, de 1951, onde o Trio Melodia (Albertinho Fortuna, Nuno Roland e Paulo Tapajós) e o Trio Madrigal (Eda Niemar, Magda Marialba e Lolita Freire) apresentam um pot-pourri de autores diversos, com arranjos de Radamés Gnattali. O outro, de 1962, intitula-se “Pot-pourri de músicas juninas”, nas vozes do grupo Os Uirapurus.
“Hora da fogueira” era uma metáfora usada no sentido de “hora do vamos ver”, “hora da verdade”. Bezerra de Freitas, no texto “A fogueira infernal” (Paratodos, 24/03/1928), fez uso dela: “Chegou a hora da fogueira infernal”. Lamartine, curiosamente, não lançou mão da figura de linguagem em sua marcha: ali, fogueira quer dizer fogueira mesmo. O sucesso da música reverberou por diversas vezes nos jornais daquela e de outras épocas: o Diário de Notícias de 27/08/1933, anunciando uma luta de boxe entre Primo Carnera e Jack Sharkey, avisou: “Chegou, afinal, ‘a hora da fogueira’...” – novamente em seu sentido metafórico.
Nos dois meses seguintes, diversos jornais – Diário Carioca, A Batalha, Correio da Manhã – que noticiavam o novo filme da sensação mexicana Lupe Vélez, “A verdade seminua”, não hesitaram em fazer a mesma chamada nas suas matérias: “Está chegando a hora da fogueira...” (aqui a expressão ganhou um sentido mais caliente). Também em setembro e outubro de 1933, pegando carona no êxito da marchinha, o Quarteto Vocal Buenos Aires, apresentando-se no Teatro Cassino, no Rio de Janeiro, mostrou uma adaptação da música, “cantado [sic] admiravelmente, em homenagem ao público carioca” (Jornal do Brasil, 07/10/1933).
O Correio do Paraná de 01/07/1934 publicou uma propaganda de liquidação da Casa Combate sob o título – em letras garrafais – “Chegou a hora da fogueira!”. O clássico de Lamartine também batizou um programa da Rádio Clube de Santos (Gazeta Popular, 15/06/1937), uma reportagem feita para a revista O Cruzeiro (27/06/1953) e uma crônica esportiva escrita por João Saldanha (Ultima Hora, 02/07/1963).
Em 1956, a marcha abriu o LP de 10 polegadas “Noites de junho com Lamartine Babo”, onde o próprio compositor cantava suas criações juninas (além de uma ou outra que fogem desse tema) orquestradas por Lyrio Panicalli. O disco foi muito bem recebido pela crítica: M. S., na coluna “Ouvindo long-playing” da Revista do Disco (agosto de 1956), deu cotação “muito bom” ao “microssulco da Sinter”, onde “o nosso Lalá aparece com grande classe”. “Um ótimo Long”, escreveu o crítico do Suplemento Feminino de O Jornal (12/08/1956). Em outro texto de O Jornal (30/09/1956), o autor – também não identificado – mordeu e assoprou: “A voz antiga de Lamartine era desigual – hoje continua ruim, mas ruim por igual, ruim em tons mais agudos. E ruim em um bom sentido, se é que nos entendem. Gostosamente ruim”. No fim, dá o veredito: “um LP para ouvir o ano inteiro e não apenas nas noites de junho”.
Lamartine, que muitas vezes atacou de cantor nos 78 rpm, não raro participava das gravações de suas músicas feitas por Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Orlando Silva, Almirante e outros, algumas vezes sendo creditado nos rótulos, outras não. Gostava também de fazer aparições meio hitchcockianas, através de intervenções sonoras nas gravações dos colegas, como em “A melhor das três” (Francisco Alves), “A. B. surdo” (Olga Jacobino) e “Good bye” (Carmen Miranda). É curioso que ele não tenha se animado a participar da sessão onde Carmen e Mário imortalizaram “Chegou a hora da fogueira”...
Será que não participou mesmo? Bem no final da faixa, logo após a última nota, ouve-se o sussurro de uma voz que parece imitar o som de um rojão sendo lançado – “shhhhhh, tá pá” – e, em seguida, murmura algo ininteligível, num jeito de falar tipicamente... lamartinesco. Pode não ser o próprio, mas é uma brincadeira bem ao seu estilo...
Na foto principal, rótulo da gravação original de "Chegou a hora da fogueira", disco Victor 33671 – Arquivo Nirez