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    A sanfona brasileira em 78 rpm: uma playlist e boas histórias por quem entende do assunto

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Sem ela não tem forró. Nada de arrasta-pé, baile de roça ou fandango. Quadrilha, então, nem pensar. É ela – sua excelência, a sanfona – a estrela musical das festas populares brasileiras, com suas denominações e modalidades diversas por todo o país: pé-de-bode, butuada, testa de ferro, caixotinho, piano de pobre, cabeça de égua... Seja qual for o apelido ou a região do país, só dá ela – ainda mais em junho.

    Não por outra razão, é ela o tema da playlist que trazemos ao fim desta postagem: uma seleção colaborativa feita por quatro craques no fole que, entre ensaios, viagens e shows juninos, separaram um tempo para conversar conosco sobre sua paixão em comum e indicarem suas gravações preferidas – devidamente justificadas – no repertório da Discografia Brasileira.

    Formando nossa bancada estão especialistas de diferentes gerações, do veterano Mestre Gennaro, alagoano de 67 anos que foi solista do famoso Trio Nordestino e tocou com Luiz Gonzaga e Chiquinho do Acordeom (entre outros craques), à jovem Karol Maciel, uma pernambucana de 22 anos que desde a adolescência é um dos maiores talentos de sua geração.

    Completam o quarteto dois cariocas que são estudiosos da história do instrumento. Um deles é Kiko Horta, que há 27 anos (de seus 46 de vida) dirige o Cordão do Boitatá, tradicional bloco de rua carioca que ajudou a fundar, em 1996. O outro é Marcelo Caldi, 42 anos, que além de uma vasta discografia dedicada ao fole (como solista ou com o grupo LiberTango) é autor do livro “Luiz Gonzaga: tem sanfona no choro” (IMS/2013), dedicado ao maior nome do instrumento no Brasil.

    Não à toa Gonzagão é o nome mais recorrente nas seleções de nossos convidados, com pelo menos duas indicações de cada um. Mestre Gennaro abriu sua lista com “Pé de serra”, que “dá origem a um termo até hoje corrente no Brasil todo, o forró pé-de-serra, que todo mundo entende como forró autêntico”. “Para todos nós, Luiz Gonzaga é o começo de tudo”, define. “Ele que começou a tocar dentro de casa, tendo o próprio pai como primeiro professor, mas logo foi além”, conta, como que referindo-se a “Respeita Januário”.

    Mestre Gennaro. Foto: Divulgação

    Já Kiko Horta lembrou Gonzagão através de “13 de dezembro” (“choro com uma inventividade harmônica incrível”), “Juazeiro” (“com aquela poesia de temática nordestina que inundou o Brasil durante a febre do baião”) e “Vira e mexe”, o chamego que lhe valeu a nota máxima no célebre programa de calouros de Ary Barroso. “Nesta gravação, anterior ao sucesso do baião, ele apresenta uma das marcas de sua sonoridade, que é o resfolego da sanfona, presente na estrutura desta música.”

    No caso de Karol Maciel, as linhas melódicas foram determinantes para a escolha de seus gonzagas em nossa playlist: a instrumental “O chamego da Guiomar” (“um ótimo choro na sanfona”) e o baião “Algodão” (parceria com Zé Dantas), com “aquela melodia muito simples e ao mesmo tempo cheia de variações: vai de um canto pra outro, de repente é outra coisa e aí muda de novo”, como define a jovem forrozeira.

    As seleções de Luiz Gonzaga se completam com duas escolhidas por Marcelo Caldi: justamente duas que ele escolheu para regravar no CD que acompanha seu livro dedicado ao mestre: “Araponga” (“choro virtuoso” no qual chama atenção para “uma brincadeira interessante entre as mãos direita e esquerda”) e a mazurca “Véspera de São João”, primeira música autoral gravada por Luiz Gonzaga. “Tenho um carinho enorme por essa música”, revela o estudioso do Rei do Baião, definido por ele como “uma árvore frondosa de todas as sementes que vieram depois na música nordestina.” A mais célebre dessas sementes, o imenso Dominguinhos, infelizmente não chegou a gravar como solista em discos de 78 rotações e, assim, infelizmente não entrou nesta playlist.

    Marcelo Caldi. Foto: Leo Aversa

    Marcelo Caldi alarga as fronteiras da nossa seleção para o Sudeste ao relembrar Rielinho, com sua “Sanfona de oito baixos”. Contemporâneo de Luiz Gonzaga, o paulistano Oswaldo Rielli foi um dos que se destacaram como solistas no rádio durante a década de 1940, logo após as primeiras gravações de sanfona, feitas nas décadas de 1920 e 30, por pioneiros como o mineiro Antenógenes Silva, do maxixe “Saudade de Uberaba”.

    Já a primeira referência aos sanfoneiros do Sul do país vem com Mestre Gennaro e sua lembrança de Pedro Raimundo, autor de “Escadaria”, “um choro que todo mundo conhece”. Outro sucesso dele era a vestimenta de gaúcho com que se apresentava (embora fosse catarinense): “Foi daí que Gonzaga teve a ideia de se vestir de cangaceiro: ‘Se Pedro Raimundo está representando a região dele, também vou representar a minha’”, frisa Gennaro.

    Também do Sul do Brasil vem a lembrança viva do gaúcho Romeu Seibel, o Chiquinho do Acordeom, com quem Mestre Gennaro gravou muito durante as décadas de 1970 e 80. “Além de grande músico, foi uma pessoa incrível com quem tive a oportunidade de conviver”, relembra Gennaro. “Aquelas gravações que ele fez com Radamés Gnattali são simplesmente a nata da música brasileira”, sublinha o sanfoneiro, em referência aos conjuntos dirigidos pelo maestro gaúcho, como o Quinteto Continental, no qual se faz presente a sanfona de Chiquinho, como na gravação do baião “Cafundó”, de Luiz Bandeira.

    Kiko Horta. Foto: Celso Filho

    Já na seleção de Kiko Horta, Chiquinho do Acordeom é representado pela gravação de “Meu sonho é você”, samba instrumental no qual é acompanhado por Garoto (na guitarra), Vidal (contrabaixo) e Trinca (bateria). “Aqui já temos a sanfona situada no Rio de Janeiro, na Rádio Nacional e nas boates de Copacabana, com harmonias já diferentes e essa sonoridade do Chiquinho, com características como o uso de acordes em bloco, que ele fazia muito”, destaca. “É um retrato musical, rítmico e harmônico do Rio de Janeiro no começo dos anos 1950.”

    Outra memória evocada por Kiko é a do paraibano Severino Dias de Oliveira, o Sivuca, lembrado aqui pelo choro “Homenagem à velha guarda” (de sua própria autoria), que Kiko define como “um tema maravilhoso” que “traz muito do lirismo da sanfona dele”. A gravação foi escolhida também por Marcelo Caldi, para quem “Sivuca é o gentleman dos sanfoneiros”. “Sou muito grato aos mestres que tive e ele, que se tornou um mestre, pôde demonstrar esta gratidão na juventude, através deste choro, que me parece ter uma citação ao ‘Carinhoso’, na cadência harmônica que ele usa”, ressalta Caldi. “Graças a Sivuca me tornei sanfoneiro: depois de um show dele que vi na Sala Funarte decidi que era aquilo que eu queria fazer na minha vida.”

    Já a lembrança do paulista Orlando Silveira é trazida por Mestre Gennaro, que o define como um “sanfoneiro genial que tocava como falava: baixinho, elegante”. O músico alagoano destaca a atuação de Orlando como arranjador – atividade que passou a exercer após dedicar-se aos estudos quando já atuava no Rio de Janeiro, como solista do Regional do Canhoto, gravando músicas como o baião “Boi de touca”, parceria sua com Jaime Florence, o Meira.

    “Era um sanfoneiro espetacular”, exclama Marcelo Caldi, antes de relembrar que Orlando Silveira “foi trazido para o Rio por Luiz Gonzaga, quando este percebeu que não poderia continuar no rádio, pelo sucesso que vinha fazendo, e precisou de um substituto. Acho que ele ainda não foi reconhecido à altura da importância que teve”, afirma Caldi, que de Orlando indicou o choro “Perigoso” (parceria com Esmeraldino Sales). “Me lembro de como demorei para conseguir tocar essa música, com esse dedilhado que exige muito do intérprete.”

    Karol Maciel. Foto: Desna

    A composição mais conhecida de Orlando Silveira também entrou na lista de Karol Maciel, outra que não se esquece de quando conseguiu gabaritar o tal dedilhado. “Foi uma das primeiras músicas de choro que aprendi, quando ainda estudava no Conservatório Pernambucano de Música. Passei a tocar essa música nas rodas de choro e o pessoal curtia”, relembra a jovem sanfoneira, que traz para nossa lista outras referências importantes para sua formação, dos repertórios de Jackson do Pandeiro (“Ogum de malê”) e Marinês (“Peba na pimenta”).

    Ainda mais referencial para Karol é o sanfoneiro pernambucano Camarão (Reginaldo Alves Ferreira), com quem ela aprendeu os primeiros segredos do fole, ainda na adolescência, e que é aqui representado com “Cabra da peste”, forró de sua própria autoria. Pois é com ele que encerramos esta playlist dedicada à sanfona e a todas e todos que seguem fazendo dela um símbolo da música brasileira e suas festas populares de Norte a Sul, de Leste a Oeste.

    Foto principal: K-e-k-u-l-é / Pixabay.com

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