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    Telecoteco no arraiá: você já ouviu falar dos sambas juninos?

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Bandeirinhas no alto, fogueira no centro, quentão fumegante na panela e a mesa farta com quitutes à base de milho, aipim, coco, amendoim, batata doce... Em frente à capelinha lá vem a noiva, toda de branco, com seu pai aborrecido, o noivo cabisbaixo e o padre de festa junina. No centro do terreiro, o puxador da quadrilha lidera os pares em ritmo de marchinha, xote, rojão e... samba.

    Samba?! Pois é, o próprio: o gênero musical brasileiro que, de tão amplo e popular, deu galhos pra todos os lados. Até mesmo para as festas juninas, que durante um determinado período do século 20 (especialmente as décadas de 1930 a 50) serviram de chamariz para compositores que, assim como no carnaval, aproveitavam os festejos para tentar emplacar novos sucessos.

    A estes lançamentos (na maioria desconhecidos nos dias atuais) juntam-se sambas sobre aspectos da festa: das comidas à decoração, das danças ao balão, artefato hoje proibido, mas que já serviu de metáfora em tantos versos, como a leitora ou leitor poderá ouvir na playlist ao fim desta postagem.

    Um arraiá sonoro que, aliás, começa com ares de gafieira, no balanço de ótimos sambas calangueados – sambas com ritmo chegado ao calango, dança característica de localidades da zona rural do Sudeste brasileiro entre os fim do século 19 e as primeiras décadas do 20. É o caso de “São João do Rancho Fundo”, um “samba-rumba” (assim identificado no selo) lançado em disco em maio de 1938, na voz de um dos maiores nomes da música caipira, Raul Torres, também autor da faixa, em parceria com João Pacífico, outro craque na matéria.

    Ergui uma bandeira foi pra Santo Antônio
    Fiz uma fogueira foi pra São João
    E pro meu São Pedro o que é que eu vou fazer?
    Comprar papel de seda pra fazer balão

    Já no “Samba de São João” é no ritmo da embolada que Minona Carneiro canta os feitos de Antonio Grosso, Gaspar, Chiquinha e outros tipos do enredo bolado pelo bandolinista Luperce Miranda, autor da música e um dos integrantes do Voz do Sertão – conjunto musical pernambucano que toca nesta gravação de novembro de 1928. Outra boa farra foi a que saiu num disco de Carmen Costa em outubro de 1942: “Festa na roça”, que além do balanço sincopado de Buci Moreira (compositor da música, com Carlos de Sousa e Antônio Moraes) ainda traz citações a sucessos recentes da cantora: “Está chegando a hora”, de 1941, e “Só vendo que beleza”, deste mesmo ano de 1942.

    O baile de roça segue com mais um samba sacudido – este com levada de samba-choro – lá de 1956, quando a cantora Maria Neide lançou “Fogueira de São João” (Maugéri Neto e Maugéri Sobrinho), com metáforas semelhantes às de “Fogueira do meu coração” (Mario Travassos de Araújo e Luiz Antônio Pimentel), que Carmen Miranda pôs em disco em junho de 1935, com seus versos dignos de correio elegante:

    Na festa do meu destino
    Entre fogos, fogueira e balão
    Teu amor é um travesso menino
    Que pula a fogueira do meu coração...

    Outras vozes importantes da era do rádio também tiveram sambas juninos lançados em seus repertórios. Como Aracy de Almeida, que faz a romântica sonhadora na interpretação de “Pedindo a São João” (Herivelto Martins e Darci de Oliveira), em cuja letra tristonha reza por “felicidade e tranquilidade”. Na gravação, de junho de 1935, ela é acompanhada por Pixinguinha e os Diabos do Céu, que são uma atração à parte em “Pra meu São João” (Humberto Pinto e Kid Pepe), mais um samba – este gravado por Mario Reis – a rimar balão e coração com o nome do santo mais requisitado no meio do ano.

    Até porque são a ele destinadas as preces dos/das que querem o altar acima de tudo (ainda que para isso seja preciso pular a fogueira), como em dois sambas desta seleção. Em “São João” (José Burle), samba rural de fevereiro de 1944, é o conjunto vocal As Três Marias que é direto em suas queixas, sem meias palavras: “Me case logo, não me deixe envelhecer.” Já Roberto Paiva deu voz às lamúrias da solteirice em maio de 1952, no melodioso “Vai subir meu balão” (Bororó e Dino Ferreira).

    É noite de São João
    Vai subir o meu balão
    Meu pedido irá levar
    São João faça o favor
    Me arranje um grande amor
    Eu preciso me casar...

    O artefato de papel fino que sobe aos céus também simboliza a esperança de uma pequena desiludida em “Olha lá um balão”, samba tristonho de Murilo Caldas lançado em julho de 1939, nos vibratos compungidos de Lolita França, aqui numa de suas primeiras gravações: “Este foi o balão que eu soltei / Ele traz um recado do céu / Eu não sei pra quem é / Pra quem é eu não sei...”

    Já Santo Antônio, se por um lado é poupado de sua fama de casamenteiro, por outro é chamado a ajudar em problemas conjugais, em dois sambas homônimos. Primeiro em julho de 1941, quando João Petra de Barros pede ao “Santo Antônio amigo” (Zé da Zilda, Marino Pinto e J. Cascata) que lhe poupe de uma traição. Depois em julho de 1946, quando Ciro Monteiro reza ao “Santo Antônio amigo” (Pereira Matos, Neneco e A. Gomes) pedindo que ajude nas pazes com a amada.

    E tem ainda o chaveiro do céu, lembrado pela dupla Klécius Caldas e Armando Cavalcanti em “Abre a porta, São Pedro”, samba de outubro de 1952 num ritmo tão quente quanto a interpretação de Linda Batista, animadíssima na chegada ao céu: “Abre a porta que eu vim, com o meu tamborim”. Menos exultante é “Balão apagado”, samba póstumo de Noel Rosa que a amiga Marília Batista (sua parceira na composição) resgatou e entregou a Elizeth Cardoso, sobre o balão enviado a Santo Antônio que foi parar no inferno.

    Satanás respondeu meu recado
    Balão apagado não entra no céu
    No inferno serás respeitado
    Tu tens tanto pecado, que eu tiro o chapéu

    O arremate mórbido (à Nelson Cavaquinho) pode parecer alienígena no universo dos sambas juninos, mas está em perfeita consonância, por exemplo, com o desfecho de um famoso exemplar do gênero: “Mané Fogueteiro”, o lindo e breve conto de amor composto por João de Barro e lançado em outubro de 1934, por Augusto Calheiros com a Orquestra Copacabana.

    Autor da famosa marchinha “Noites de junho” (com Alberto Ribeiro), João de Barro já era chegado aos temas juninos pelo menos desde os tempos do Bando de Tangarás, o lendário conjunto que formou no fim da década de 1920 com outros jovens aspirantes a sambistas, como seu cunhado Almirante e o parceiro Noel Rosa.

    A inspiração sertaneja que caracterizava o conjunto levou os rapazes de Vila Isabel a terem entre seus primeiros discos “Festa de São João”, uma cena cômica criada por João de Barro em duas partes (divididas entre os lados A e B), intercalando diálogos bem-humorados e músicas – inclusive sambas. Não à toa, também são ambientadas no universo rural lançamentos iniciais de Noel Rosa, como a embolada “Minha viola”.

    Muitos outros compositores urbanos também se aventuraram por ambientarem suas composições no universo rural, não necessariamente com caráter junino. Destes, destacamos dois sucessos com que encerramos a seleção musical deste post: os sambas “No Rancho Fundo” (Ary Barroso e Lamartine Babo), gravado em 1931 por Elisa Coelho, e “Um caboclo abandonado” (Herivelto Martins e Benedito Lacerda), que Silvio Caldas gravou em 1936.

    Com o tempo, os compositores da chamada era do rádio deixaram de compor sambas voltados para as festas de junho e o samba seguiu seu caminho por outros terreiros, salões, palcos e avenidas. Ficam as lembranças em 78 rotações deste breve capítulo da história do samba – não confundir com o samba junino da Bahia, gênero musical que deriva do samba de caboclo dos terreiros de candomblé e, surgido nos anos 1970/80, foi declarado em 2018 patrimônio cultural de Salvador.

    Foto: Reprodução de vídeo com o Bando de Tangarás, com Almirante (de pé), Noel Rosa (com violão e chapéu) e João de Barro (sentado no chão, de lenço no pescoço). 

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