João é o dono da festa, que já foi, por sua causa, chamada de “joanina”. Antônio é o casamenteiro, super popular. Pedro, dos três o menos celebrado no repertório musical das festas juninas e julinas, está longe de ser o menos importante. Pescador da Galileia, amigo de Tiago e João, porteiro do céu (nas definições de Jorge Ben, que o retratou em “Viva São Pedro”, no LP “A Banda do Zé Pretinho”, de 1978), o “santo do mar”, absorvido pelo folclore do nosso país e transformado até em personagem da literatura de cordel, também se faz presente no sincretismo que une o catolicismo às religiões afro-brasileiras. Vinte e nove de junho é seu dia – então bora celebrar São Pedro!
“Pedro recebeu esse nome diretamente de Cristo. Nascera Simão e era pescador”, conta Luis Paulistano em texto sobre os três santos juninos publicado na revista Manchete de 26/06/1954. O jornalista, com base nos acontecimentos descritos na Bíblia, faz um resumo da vida do discípulo que negou por três vezes o nome do seu mestre: “Para ele e seus companheiros, Cristo fez o milagre da pescaria abundante num mar que se mostrava desanimador para os pescadores. Seguiu o Messias, como apóstolo dos mais queridos. Apesar de suas hesitações, foi a ele confiada a missão de fundar a igreja católica e a cumpriu com a proficiência que os séculos atestam”.
Ao escrever sobre o final da vida de Pedro, Luis Paulistano traz um viés mais religioso à narrativa: “Sob Nero, foi preso, fugiu milagrosamente conduzido por dois anjos, voltou à prisão, recebeu o castigo da cruz, mas pediu para o colocarem de cabeça para baixo, em sinal de humildade desde que o Cristo também fora crucificado. No céu, recebeu a missão de porteiro, cargo modesto mas que acrescentou muito à sua popularidade. Acusam-no de alguma ranzinzice, porém todos compreendem que lhe cumpre, por dever de ofício, manter-se permanentemente desconfiado”.
Considerado o primeiro Papa da igreja católica – cujo pontificado seria até hoje o mais longo da história: 37 anos –, o santo dá nome à praça do Vaticano onde está situada a Basílica (também batizada em sua homenagem) em cujo interior se encontra o seu túmulo. Fontes indicam que ele nasceu em Betsaida, povoação pesqueira a nordeste do Mar da Galileia, no Século I a.C., e morreu em Roma em 67 d.C. Irmão de André, foi casado – Mateus, Marcos e Lucas relatam o episódio em que Jesus cura a febre da sogra de Pedro – e teve ao menos um filho. Diz a tradição que o martírio e a morte de Pedro e de Paulo ocorreram num dia 29 de junho, razão pela qual o dia é consagrado aos dois santos – há quem conteste e afirme que a data real seria 13 de outubro do ano de 64 d.C.
“Há estórias populares que apresentam São Pedro como personagem astuto, finório, assemelhando-se a Pedro Malasartes”, explica Laura Della Mônica em “Os três santos do mês de junho” (1995). Na obra, a autora recorda a fábula que deu origem à expressão “como a mãe de São Pedro”, que significa “ficar entre o céu e a terra”, não se decidir sobre algo. Tomando como base a história publicada no livro “Contos populares brasileiros” de Lindolfo Gomes, conta Della Mônica que certa vez a mãe de Pedro – uma senhora de temperamento nada fácil, que se recusava a ser batizada, mesmo o filho tendo se tornado um apóstolo de Jesus – lavava uns ramos verdes de cebola quando a correnteza carregou um deles. Irada, depois de muito reclamar teria resmungado: “Seja o que Deus quiser”.
Segundo a lenda, quando ela morreu foi direto para o inferno. Seu filho ainda andava pela Terra e não sabia do acontecido. “Quando foi nomeado chaveiro do céu, viu sua mãe no abismo. Prontamente solicitou ao Divino Mestre a salvação dela”, diz Della Mônica. Mas não havia no Livro das Almas nada que justificasse sua ascensão ao céu. Até que Pedro encontrou a frase proferida no episódio do ramo levado pela correnteza. Então o todo-poderoso aceitou seus argumentos e mandou buscar sua mãe. Uma folha de cebola desceu do céu e a anciã prendeu-se a ela, começando a subir. Outras almas, aproveitando a oportunidade, agarraram-se à saia da mãe de Pedro, que sacolejava sua roupa, “não permitindo que as demais se salvassem. Imediatamente partiu-se a folha e a velha avara ficou no espaço. Até agora vive entre o céu e a terra”. Ou seja, nem a mãe do guardião dos portais celestes conseguiu entrar no paraíso...
Outro que tentou e foi posto para correr chamava-se Virgulino, um dos maiores facínoras que o Nordeste viu nascer, cujo apelido ficou tristemente eternizado em nossa história. José Pacheco imaginou uma saga post mortem para o bandoleiro e a contou em dois cordeis, “A chegada de Lampião no inferno” e “Um grande debate que teve Lampião com São Pedro”, relançado com o título pelo qual ficou mais conhecido: “Grande debate de Lampião com São Pedro”. Alguns dos versos deste folheto de Pacheco foram cantados por Manuel José no LP “Nordeste: cordel, repente, canção” (1975).
Pacheco mostra São Pedro como um cabra brigador, que encarou sem medo o bandido:
Abriu na frente o portão
Ficou na trave escorado
Branco da cor dum finado
Quando avistou Lampião
Mas com a trave na mão
Não temeu de lhe falar
E disse: aqui não se dar [sic]
Aposento a gente mau
Se não quer entrar no pau
Acho bom se retirar
Após uma peleja que envolveu tudo o que é santo – Bernardo, Ricardo, Francisco da Penha, Tomé, Juvenal, Moisés, Paulo, Jacinta e Agostinho –, Virgulino foi varrido do céu por um pé de vento surgido depois de um relâmpago jogado por São Francisco. Os cordeis de José Pacheco inspiraram o enredo “O aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarida”, da Imperatriz Leopoldinense, que se sagrou a grande campeã do último Carnaval.
Não foi só José Pacheco: outros cordelistas versaram sobre este tema, como Guaipuan Vieira e Rodolfo Coelho Cavalcante, cujos livretos possuem título igual: “A chegada de Lampião no céu”. Já Joel Rufino dos Santos narrou “O grande pecado de Lampião e sua terrível peleja para entrar no céu”. São Pedro, contudo, não vive só de brigar com Virgulino nos folhetos: ele é destaque, por exemplo, na obra de Manoel d’Almeida Filho, que o usou como personagem de diversos causos: “Briga de São Pedro com Jesus por causa do inverno”, “Jesus Cristo e São Pedro na casa dos pobres”, “Jesus Cristo, São Pedro e o ladrão”. Já “A história de Jesus e São Pedro” foi contada por José Costa Leite, mesmo autor de “Satanás trabalhando no roçado de São Pedro”, enquanto José Edimar se concentrou na vida de “Pedro Apóstolo – Príncipe dos apóstolos”.
“Para alguns, entre os três santos é o de menor repercussão”, reconhece Laura Della Mônica. É assim no que diz respeito à nossa música popular. Na página do Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB), cuja base de dados abrange gravações feitas em 78 rotações, em long-playings e em CDs, há apenas 25 músicas onde o nome de São Pedro aparece no título, em contraste com pouco mais de 100 composições batizadas com o de Santo Antônio e das várias centenas com o do campeoníssimo São João. Na página Discografia Brasileira, encontramos em 1903 o registro mais antigo de um disco trazendo o nome do santo em seu rótulo, bem no início da indústria fonográfica no Brasil: “São Pedro”, primeira das muitas marchas que o reverenciariam.
Rótulo da primeira homenagem fonográfica a São Pedro, em 1903
Imagem: Coleção Leon Barg / IMS
Noel Rosa se lembrou dele ao compor a toada “Festa no céu”, lançada em 1930. Mas o santo brilharia principalmente nas marchas juninas que, a partir daquela década, passariam a tomar conta do repertório popular.
São João não me atendendo
A São Pedro fui correndo
Nos portões do paraíso
Disse o velho, num sorriso:
‘Minha gente, eu sou chaveiro
Nunca fui casamenteiro...’
Assim escreveu Lamartine Babo na bem-humorada “Isto é lá com Santo Antônio”, de 1934. Lalá, craque na produção para o Carnaval, também o era no repertório junino. Outras duas músicas de sua autoria fazem referência ao santo pescador: a marcha “Pistolões”, de 1935, e a “Valsa do calendário”, parceria com Roberto Martins, gravada em 1953. “Santo Antônio, São Pedro, São João” foram cantados em 1935 por Aracy de Almeida. Já Dalva de Oliveira e Herivelto Martins levaram ao disco os não tão santos “Pedro, Antônio e João”: o malandro Pedro foge com a filha de João, deixando desconsolado o noivo dela, Antônio. A marcha, de 1939, seria relançada em 1943.
De 1935 é a valsa-canção “Céu moreno”, sucesso na voz de Orlando Silva (“Se São Pedro se enganasse / E um dia eu lá entrasse / Sem mesmo Deus saber...”). Em 1937, “O balão subiu” na toada sertaneja cantada por Nhá Zefa (Maria Di Léo): “Dia de São João meu balão subiu / Dia de São Pedro foi que ele caiu”. Raul Torres e João Pacífico, ícones da música caipira, fizeram uma citação ao santo no samba-rumba “São João do Rancho Fundo”, de 1938. Como se vê, na época dos 78 rotações São Pedro não dava as caras apenas nas músicas juninas; vide os sambas “Como é que ficou o céu?”, que Gilberto Alves registrou em disco em 1945, e “Abre a porta, São Pedro”, de 1952, por Linda Batista.
O baião, ritmo nordestino comumente associado aos festejos de junho e julho, abriu suas portas para São Pedro entrar. Haroldo Lobo e Milton de Oliveira fizeram dois, “Pula fogueira” (1952) e “A dança da fogueira” (1953). O de Irani de Oliveira, “Noites de junho”, ganhou a voz de veludo de Carlos Galhardo em 1952, mesmo ano da “Festa junina” promovida por Isaura Garcia. Em 1954, Dircinha Batista chamou pelo santo “Ao clarão da fogueira”. No ano anterior, a seca terrível que assolou o Nordeste e levou fome a boa parte da população foi lembrada em muitas gravações; uma delas foi “Baião de São Pedro”, por Emilinha Borba e Jorge Goulart. O rei do gênero, Luiz Gonzaga, também mencionou o santo marítimo no “Baião do pescador”, parceria com Hervê Cordovil. Lançada em 1953 por José Tobias (“Uma arrancada a mais, a rede sobe mais / São Pedro trouxe a cheia lá do mar”), a composição foi regravada em 1954 pelo próprio Gonzaga com novo título, “Velho pescador”.
Foi ainda num baião que Magalhães e Sussu – o babá okê Urussu Silva do Amaral – mostraram a correlação entre o “Velho São Pedro” e Xangô Agojô, deus do trovão e pescador de almas (não confundir com Xangô Agodô, cantado por Baden Powell e Vinicius de Moraes no “Canto de Xangô” do LP “Os afro-sambas” e sincretizado com São Jerônimo). Do outro lado do disco, o mesmo Sussu – em parceria com Sebastião Nunes – menciona novamente o porteiro do céu em “Meu Santo Antônio”. Em 1959, Emilinha Borba gravaria uma marcha-rancho homônima, em cujos versos pedia uma graça ao casamenteiro:
Se o senhor me atender, no sonhado matrimônio
O primeiro garotinho será Antônio
O segundo e o terceiro têm que ser Pedro e João
E, se for uma menina, Antônia Joana Pedrina Sant’Ana
Entrar no céu parecia ser uma questão para os compositores e cantores da época, boa parte deles chegada a uma vida boêmia e cheia de “pecados”. Em 1944, na marcha "No céu é assim", Nelson Gonçalves tramava:
Eu já sei que não sou santo
Mas vou pra fila esperar o meu lugar
Levo uma carta de apresentação
Senão São Pedro é capaz de me barrar
Jorge Veiga, em 1953, imaginou-se um “Sambista no céu”, com direito a uma turnê interplanetária:
A São Pedro pedi permissão
E nos planetas fiz uma excursão
Cantei, toquei meu violão
Fui aplaudido pela multidão
E Cyro Monteiro, ritmista cheio de bossa, avisou em 1947, no samba “Meu pandeiro”, o que aconteceria quando chegasse do outro lado:
Falarei com São Pedro
Que é meu santo de fé
Vou fazer serenata com o velho Noel e o Nazareth
Já em 1953 foi a vez de Paquito e Romeu Gentil reclamarem, na marcha “Promessa a São João”, da proibição imposta dois anos antes.
Meu Santo Antônio, meu São Pedro e São João
É muito grande a nossa aflição
Já não se pode mais soltar foguete
Fazer fogueira nem soltar balão
O Correio da Manhã de 11/05/1951 transcrevia o parágrafo único do artigo 28 da Lei das Contravenções Penais: “Incorre na pena de prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa de Cr$ 200 a Cr$ 2.000, quem, em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, sem licença da autoridade policial, causar deflagração perigosa, queimar fogo de artifício ou soltar balão aceso”.
Surgiram na época diversas músicas apoiando a causa, com justa razão. Não custa lembrar que, de acordo com o artigo 42 da Lei de Crimes Ambientais nº 9.605, de 12/02/1998, hoje em dia a prática de soltar balões continua proibida – recentemente, em maio último, vários destes artefatos caíram próximos a aeroportos. Na pista do Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e na de Viracopos, em Campinas, eles chegaram a pegar fogo, colocando em risco a vida de passageiros e funcionários.
Nascido no dia de São Pedro, 29 de junho (de 1906), Pedro Raimundo resolveu salvar os três santos juninos em 1952 “Pulando a fogueira” – curiosidade: a de Pedro tem a base triangular, diferente das fogueiras de Antônio (base redonda) e de João (base quadrada). O sanfoneiro catarinense também cita o xará sagrado na valsinha “Oração de junho”, de 1954. O santo porteiro, destinado a barrar quem tente invadir os portais do céu sem permissão, muitas vezes agiu ele mesmo de penetra nas canções destinadas aos seus confrades juninos: além das já citadas anteriormente, seu nome aparece ainda na letra das marchas “Santo Antônio casamenteiro”, “Ai meu São João”, “Bilhete a São João” e “Santo Antônio é que é o santo”. A marcha – junina ou não – parece ser o gênero preferido do velho Simão, haja vista a quantidade de músicas deste tipo que o mencionam: “Festeiro do arraiá”, “Balão cruz de malta”, “Eleição no céu”, “São João X São Pedro”, “Balão do amor”, “Pisei na fogueira”.
Mas, como já percebido, desde há muito tempo São Pedro ultrapassou a fronteira das marchas e das músicas voltadas para as festas juninas, fazendo-se presente nos mais variados gêneros. Só na época dos discos de 78 rotações há exemplos bem diversos, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960, como a rancheira “Charanga do céu”, de 1952, cuja letra mostra os santos como integrantes de uma bandinha:
No trombone o Antônio
Manoel no pistão
O baile na roça não tem confusão
João no cavaco faz a marcação
Pedro na sanfona vai à introdução
Temos ainda um mambo (“A moringa”, 1950), uma valsa (“Festa junina”, 1953), um xote (“Soltando balão”, 1953), um arrasta-pé (“Solta o balão”, 1956), um rasqueado (“Santos do céu”, 1959, que recorda que “Primeiro Papa agora é São Pedro / Hoje no céu ele é o porteiro”), um cateretê (“Me leva pro céu”, 1961) e uma marcha-frevo (“São João no Pará”, 1964).
Aqueles/aquelas que acreditam nos portais da vida eterna esperam que o velho zelador possa liberar-lhes o acesso ao tão sonhado paraíso. Pedem essa graça ao santo através de rezas e orações; outros, mais diretos, preferem se expressar sem rodeios, como fez o palhaço Carequinha em 1963, na marcha “Os três guardas do céu”:
A Santo Antônio, peço sorte nos amores
A São João eu envio os meus louvores
E a São Pedro, que é porteiro lá do céu
Não barre a minha entrada quando eu for pro beleléu
Já Fernando Pessoa, em seu poema “S. Pedro”, escrito em junho de 1935, sugeriu uma inversão/subversão do trajeto, fazendo um pedido no mínimo inusitado ao “carcereiro do céu”, como ele o chamou:
Se tens poder milagroso,
Se essas chaves abrem tudo,
Deixa esse céu lastimoso.
Deixa de vez esse céu,
Desce até a humanidade
E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
As portas do Inferno, e da Verdade
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Na imagem prinicipal: cordéis da coleção José Ramos Tinhorão - seleção e foto de Fernando Krieger