Bendito seja o maestro Eduardo Souto.
Não só porque compôs em 1919 o famoso choro “O despertar da Montanha” (somente em 78 rpm foram 20 gravações!) e criou em 1923 o bloco carnavalesco Tatu Subiu no Pau, que dá nome a um samba de sua autoria. Ou porque abriu e comandou a Casa Carlos Gomes, famosa loja de música da Rua da Carioca onde Ernesto Nazareth trabalhou como pianista demonstrador.
Pois, além de tantos acertos, o maestro Souto foi padrinho de um dos encontros mais gloriosos da música popular brasileira: a parceria de Noel Rosa com Vadico, pianista paulistano do Brás, nascido Oswaldo Gogliano. Não fosse a mão dele, não haveria “Feitio de oração”, obra-prima da dupla que, se não é a mais produtiva de Noel (com Ismael Silva ele fez 18 sambas, contra 11 com Vadico), certamente é a que rendeu os maiores sucessos ao Poeta da Vila: são deles também “Conversa de botequim”, “Feitiço da Vila”, “Cem mil réis”, “Provei”, “Pra que mentir”, “Tarzan, o filho do alfaiate” e “Mais um samba popular”.
Mas o enlace começa mesmo pela melodia sem título que Vadico, recém chegado de São Paulo, tocava no piano de uma das salas da gravadora Odeon, no Centro do Rio de Janeiro, enquanto aquecia as mãos para uma gravação com Francisco Alves. Era fim de 1932 e Eduardo Souto gostou do que ouviu quando entrou na sala. “Uma composição que desde a primeira frase musical deixa claro que quem a fez não é um melodista de soluções fáceis”, descrevem Carlos Didier e João Máximo em “Noel Rosa: uma biografia” (Ed. UNB, 1990). “A passagem da primeira para a segunda parte confirma essa constatação.”
O maestro pediu um instante, saiu do ambiente e voltou trazendo pelo braço Noel Rosa, que estava na sala ao lado. “Este é o Vadico, Noel. Pianista de São Paulo”, apresentou o maestro, como se lê na biografia de Didier e Máximo. “Acho que vocês dois deveriam pensar em trabalhar juntos. Ouça esta música que ele fez.” O poeta da Vila ouviu uma vez, pegou papel e lápis e pediu que tocasse de novo, começando ali mesmo um monstro que pudesse lhe servir de guia com anotações métricas e as primeiras ideias de versos. “Vou tentar a letra”, arriscou Noel, que dois dias depois voltou à Odeon com o samba pronto.
Quem acha vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que por infelicidade
Meu pobre peito invade
Embora a composição vá entrar para a história como um dos mais cultuados sambas sobre samba, o início romântico evidencia que há uma musa por trás desta letra. Segundo Almirante, no livro de memórias “No tempo de Noel Rosa” (Ed. Livraria Francisco Alves, 1963), a pequena era Júlia Bernardes, a Julinha, dançarina do cabaré Flórida, na Lapa, que teria inspirado também as composições de “Cor de cinza”, “Pra esquecer” e “Meu barracão”. Morava na Penha, “onde Noel pernoitou inúmeras vezes num barracão de uma favela” e que se tornaria o bairro mais recorrente na obra de Noel – é citado em oito sambas, contra quatro que falam de sua Vila Isabel. Como na letra que escreve para a segunda parte da melodia de Vadico, transformada em estribilho:
Por isso agora
Lá na Penha vou mandar
Minha morena pra cantar
Com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba
Em feitio de oração
Já o samba é o tema das outras duas estrofes escritas por Noel sobre a primeira parte da melodia criada pelo parceiro. Da dor-de-cotovelo passa a discorrer sobre a própria natureza do samba, triste como a saudade que sente de Julinha.
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
Na outra estrofe, ele parte do burburinho surgido a partir de 1929/30, com o aparecimento de sambistas da classe média, como os rapazes de Vila Isabel – entre eles o próprio Noel. Seria aquele novo samba tão verdadeiro quanto o que era produzido pelos compositores de Mangueira, Salgueiro, São Carlos e outras favelas?
O samba na realidade
Não vem do morro
Nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração
A gravação original foi feita há 90 anos (7 de julho de 1933) no estúdio da mesma Odeon onde a história começou, sete a oito meses antes. A primeira interpretação em disco coube ao dueto formado por Francisco Alves e Castro Barbosa, acompanhados pela Orquestra Copacabana, dirigida por Simon Bountman. Acabou ficando de fora da cantoria (e para sempre) outra estrofe – a mais triste de todas – escrita por Noel:
Chorando não é que se sente
Pois mesmo até um triste olhar nos mente
E o meu silêncio então suplanta
Um gemido na garganta
Quando contemplo a santa
Na gravação original, “Feitio de oração” tem o telecoteco dos principais sucessos do Estácio – em andamento mais acelerado do que muitas das regravações que sairão no futuro, em geral mais lentas, em ritmo de samba-canção: colados mais à “dor tão cruel de uma saudade” do que ao batuque-privilégio.
Manuscrito de Noel Rosa com a letra original de "Feitio de oração".
Coleção José Ramos Tinhorão / IMS
Regravações que, aliás, não foram poucas, a começar por quatro lançadas em discos 78 rotações – todas da década de 1950, quando o nome de Noel Rosa, esquecido desde sua morte precoce (26 anos), em 1937, voltou a circular a partir da virada entre 1950 e 51. Foi por aí que Aracy de Almeida lançou 12 novas gravações pela Continental com arranjos de Radamés Gnattali – entre elas “Feitio de oração”, lançada em maio de 1951. Já entre abril e setembro de 1951 foi a vez de Almirante revisitar a trajetória do amigo na série biográfica “No tempo de Noel Rosa”, produzida e apresentada por ele na Rádio Tupi.
Também de maio de 1951 é a gravação classuda que fizeram Zaccarias e Sua Orquestra, com o vibrafone de Mesquita, lançada em disco pela RCA Victor. Depois, “Feitio de oração” reapareceu em 1955, com ares românticos em outra gravação instrumental, realizada pelo Trio Surdina (dos craques Fafá Lemos, Garoto e Chiquinho do Acordeon) na Musidisc. E ainda em junho de 1956, quando o pianista Britinho – o gaúcho João Adelino Leal Brito – refez o samba de Noel e Vadico em ritmo dançante na gravadora Sinter.
Já em LP vieram inúmeras regravações de “Feitio de oração”. Como no lirismo do piano de Arthur Moreira Lima em arranjo sinfônico de Radamés Gnattali (1979) e na levada jazzy do Paulo Moura Quarteto (1969), entre tantas outras versões instrumentais. Ou em vozes femininas do primeiro time: da divina Elizeth Cardoso (1956) à madrinha Beth Carvalho (1993), passando por interpretações pungentes, como as das baianas Maria Bethânia (1965) e Gal Costa (1992), e pela versão dançante de Clara Nunes (1971).
Outro que privilegiou o telecoteco ao regravar “Feitio de oração” foi Wilson Simonal (1972), bem diferente da interpretação seresteira de Silvio Caldas (1957). Já Martinho da Vila (1999) optou por contar a música em outra gravação sambada, como fez Ivan Lins (1997) e como não fizeram João Nogueira (1981) e Zé Renato (2000), ambos lançando olhares mais sentidos sobre a obra-prima da parceria de Vadico e Noel Rosa.
Foto: montagem a partir de fotografias da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS