Ele dá nome a escolas, bibliotecas, auditórios e teatros pelo Brasil todo. Virou busto, estátua, enredo de escola de samba, estampa de selo e efígie de uma cédula do antigo cruzeiro (a de dez mil). Aeroporto com vista (e que vista!) na beira da Baía de Guanabara. Rua, avenida, praça, parque, rodovia e uma cidade em Minas Gerais: a sua, que se chamava Palmyra quando nasceu, há 150 anos (20-07-1873), e após sua morte (23-07-1932, no Guarujá, litoral paulista) ganhou seu nome: Santos Dumont.
Há quem ache pouco para o “Pai da Aviação”, como ficou conhecido o brasileiro miúdo (1,55m) que passou a vida adulta se dedicando a materializar seus sonhos (imensos) em transformações que seriam decisivas para a humanidade. Além do célebre feito do dia 23-10-1906, quando pilotou seu 14 Bis pelo céu de Paris, no primeiro voo certificado por um órgão internacional (a Federação Aeronáutica Internacional), há outros ineditismos em sua conta: são atribuídos a ele a criação da navegação aérea, o primeiro voo realizado com motor movido a explosão, a invenção do motor de cilindros opostos, a primeira fabricação de um avião em série e também a criação do relógio de pulso.
Isso em plena efervescência cultural e artística da belle époque, na França, onde o moço de bigodinho e chapéu de aba grande viveu a última década do século 19 e a primeira do 20. Por aqui, no Brasil recém republicano, era através dos jornais que se sabia dos feitos do rapaz, herói instantâneo transformado em assunto nas conversas de rua, no teatro de revista, nas charges e, claro, na música popular. Logo, os discos (outra novidade desta virada de século) estariam rodopiando com homenagens musicais ao filho da pátria.
Como num dobrado tocado pela Banda Carioca intitulado “Santos Dumont”, música sem autor creditado lançada em disco no ano de 1910. Mas sucesso mesmo foi o que fez a marcha “A conquista do ar”, composição de Eduardo das Neves que saiu em disco antes mesmo do famoso voo do 14 Bis (1906), quando Santos Dumont aprimorava seus protótipos em Paris, de dirigível em dirigível. A música retrata a sensação geral do povo brasileiro – estamos no mapa! – quando o filho ilustre veio visitar o país naquele 1903, como se ouviu na voz do cantor Bahiano:
Por isso, o Brasil, tão majestoso
Do século, tem a glória principal
Gerou no seu seio o grande herói
Que hoje tem um renome universal
A Banda da Casa Edison (1904) e os cantores João Gomes e Cadete (ambos em 1907) também gravaram a ode de Eduardo das Neves, organizador de um sarau em homenagem ao inventor do avião nesta vinda ao Brasil, quando foi recebido no Rio de Janeiro pelo presidente da República Rodrigues Alves e, em seguida, foi festejado ainda em São Paulo, BH, Salvador e Recife. Em 1914, já não voava mais (por orientações médicas, após uma queda com o ultraleve Demoiselle) quando de novo visitou o Brasil, servindo mais uma vez de mote a Das Neves, que gravou – na voz e no violão – a cançoneta “Regresso de Santos Dumont”, grandiosa como sua admiração.
Em 1956, quando se completaram 50 anos do feito, foram muitas as homenagens ao Pai da Aviação. Na música, destacam-se cantos exultantes como o do Orfeão do Instituto de Educação Caetano de Campos, que lotou o Teatro Municipal de São Paulo para apresentar em primeira mão o “Hino a Santos Dumont” (Ruy Botti Cartolano e Raul Schwinden), exortando a “mocidade do Brasil” a cantar – de mão no peito – os triunfos do “criador das estradas do ar”, com o mesmo clima heroico do “Hino dos aviadores” (João Nascimento), que a Banda Sinfônica da Escola de Aeronáutica gravou na versão instrumental.
Menos mal que, em outro disco daquele ano, vinha o sossegado Ataulfo Alves cantando “Santos Dumont”, marcha-exaltação que fizera com Aldo Cabral biografando o muso como num samba-enredo:
Fez o balão dirigível
E o mais pesado que o ar
E em desafios ao impossível
Foi o primeiro a voar
Ainda mais leve é o “Santos Dumont” de Mário Zan, o sanfoneiro que também criou um dobrado em homenagem a ele, mas com um jeito de bandinha de coreto que ameniza a solenidade. Ou a dupla Nhá Zefa e Nhô Pai, que nos contam (ela na primeira voz, ele na segunda) que nosso herói fez também o povo do campo se orgulhar do Brasil – “um colosso”, como na letra de “O pai da aviação”, moda de viola de Lindolfo Celso Martins, o Tangará. E teve a sátira política da marchinha “Bicho carpinteiro” (Klecius Caldas, Armando Cavalcanti e J. Audi), que explicava por que o irrequieto Juscelino Kubitschek não sossegou até inventar uma nova capital pro país, como cantou João Dias em 1958:
O pai da aviação era mineiro
Nasceu com a mania de voar
Por isso é que o bicho carpinteiro
Não deixa esse menino sossegar
Santos Dumont também foi lembrado nos lançamentos musicais de 1926/27, quando no Brasil só se falava no Jaú – o hidroavião comandado por João Ribeiro de Barros que cruzaria o Atlântico em abril de 1927, voando de Gênova, na Itália, a Santo Amaro, no Recôncavo Baiano. O feito inspirou choros instrumentais – como o sacudido “Jaú” (do mestre de banda Antônio Rodrigues de Jesus) e números cantados, entre eles quatro (!!!) lançados por Francisco Alves. Da marcha empolada “Asas do Jaú” (Marcelo Tupynambá e Otacílio Gomes) às populares “Salve Jaú” (Salvador Correa) e “Nosso Jaú” (Freire Júnior), ambas orgulhosas da brava tripulação e, mais ainda, da pátria amada – salve, salve!
Ainda bem que, volta e meia, a irreverência dá o ar da graça: como na danadinha “Vem cá, Jaú” (Miguel Lopes Guimarães Júnior), que voa alto nas analogias.
Quando elas são bem sapecas
Já ninguém pode aguentar
E ficam qual pererecas
Porque o Jaú não quis voar
Outra novidade aérea que virou tema nos discos brasileiros foi o balão dirigível alemão Graf Zeppelin, que apareceu pela primeira vez no céu do Brasil em maio de 1930. Como sempre, primeiro vieram marchas pungentes como “Conde Zeppelin”, composição do pianista Mark Hermanns que a Orquestra Pan Americana lançou num 78 rpm de junho de 1930. Mas o povo espirituoso, esse que não perde tempo, já no mês seguinte fazia troça dos charutos prateados que, entre as nuvens, flutuantes, impressionavam qualquer cidade que se visse sombreada por sua imensa estrutura.
Como a dupla Sílvio Trinca e João Petrillo, que, na “Mancada do Zé Pelin”, não deu muito crédito aos dirigíveis que, a partir de 1933, virariam objetos da propaganda nazista. Nesta marcha, que saiu em 1931, o Trio Trinca já sabia que aquele zé não passava de “um balão”, desses de papel de seda “da festa de São João”. Um ano antes, Cornélio Pires tinha até feito planos, como cantou – com João Negrão – na moda “O Zepilin”:
Vô comprá um aeroplano
Vô comprá um Zepilin
Vô dá passeio por Paris
Dá a vorta por Berlim...
Outra aquisição portentosa no repertório aeroviário é o avião azul que o marido promete a Etelvina em “Acertei no milhar”, o samba de breque de Wilson Batista (co-assinado por Geraldo Pereira) brilhantemente gravado por Moreira da Silva (1940) e, depois, Jorge Veiga (1959). Este último, aliás, ganhou o apelido de “Aviador Honorário” depois de tantas vezes iniciar suas apresentações radiofônicas pedindo às emissoras do interior que dessem seu prefixo, para facilitar a localização de quem estivesse pilotando uma aeronave nas proximidades. Na “Canção dos aviadores”, o artista não só reproduz o que dizia como agradece em forma de samba, nesta gravação de 1953.
Aviadores do Brasil, a vocês eu agradeço
De todo o coração o diploma que me deram
Olhando pra ele eu vejo
Os bravos da minha nação
Nossa seleção musical se completa com uma visão pela janelinha do avião, pouco antes da chegada ao aeroporto – o Santos Dumont, claro. É o Rio de Janeiro visto por Antônio Carlos Jobim nesta composição de sua autoria que se tornou um dos maiores sucessos de seu repertorio, o “Samba do avião”, aqui cantado por Elza Laranjeira, com jeito de samba-exaltação. Bela homenagem à cidade que tomamos a liberdade de estender ao responsável pelo invento que é parte deste samba. Viva Alberto Santos Dumont.
Foto: Alberto Santos Dumont em 1930 (circa). Coleção Sebastião Lacerda / IMS