Lá se vão 70 anos desde que a boemia ganhou um de seus hinos mais conhecidos, cultuados e até hoje cantados – os boêmios em coro, de olhos fechados e braços pro alto, como num ritual de exorcismo da própria dor-de-cotovelo. Um samba-canção que, como num curta-metragem noir, é também um retrato da noite paulistana, embora seu compositor, o então estreante Paulo Vanzolini, não visse assim. Mas pouco importava: no fim das contas, foi a própria aceitação popular que fez de “Ronda” um dos grandes sucessos da música brasileira.
O curioso é que, naquele 3 de agosto de 1953, gravar o samba-canção não estava nos planos de nenhum dos presentes no estúdio da RCA Victor, no Centro do Rio de Janeiro. Afinal, era dia de Inezita Barroso gravar a “Marvada pinga”, a moda de viola de Ochelsis Laureano (depois assinada também por Raul Torres) que ela vinha cantando com sucesso no rádio e nas apresentações que fazia. Mas e no lado B do disco, vai que música...?
Paulo Vanzolini relembrou a história em 2003, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura: “Ninguém tinha pensado em lado B. Inezita respondeu: eu sei muita música, posso gravar o que vocês quiserem. E eles: mas o autor tem que dar autorização. Pois o único autor que estava presente era eu.” Ele e a esposa, Ilse, acompanhavam a amiga na viagem ao Rio de Janeiro e foram com ela à RCA Victor.
“Nós éramos muito amigos, né?”, conta a cantora no documentário “Inezita”, de Hélio Goldsztejn (2019). “E ele foi pro estúdio comigo. Aí ele olhou assim, meio pedindo. Falei: ‘Tá bom, então do outro lado vai Ronda.’” Acompanhando Inezita estavam Abel Ferreira, Bola Sete, Garoto e Zé Menezes. “Inezita começou a cantar e os músicos a tocarem, todos num só microfone”, relembrou Vanzolini ao pesquisador Assis Ângelo (O Pasquim, 29-11-1990). “Achei que não ia dar certo. Deu, ficou bom. Você vê, tudo de improviso e sem repetição.”
Inezita Barroso em foto de Fredi (1955) / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS
Inezita gostou tanto do resultado que passou a vida dizendo que aquele disco tinha sido seu primeiro. Como se já não tivesse feito sua estreia fonográfica em outubro de 1951, com disco da Sinter em que cantava “Funeral de um rei nagô” (Hekel Tavares e Murilo Araújo) e “Curupira” (arranjo de Valdemar Henrique sobre tema popular). No mesmo 1951 ela havia estreado também no cinema, no elenco de “Angela”, filme da Vera Cruz dirigido por Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida.
O disco e o filme eram uma novidade e tanto para Inezita, que pouco antes não podia nem pensar em ser artista. Paulistana da Barra Funda, nascida numa família tradicional, cresceu ouvindo os pais dizerem que tocar violão e viola – sua paixão desde menina – “só na igreja ou nas festas de amigas”, como contou em entrevista ao Roda Viva (2010). Só desguiou depois de 1947, quando já estava formada (na primeira turma de Biblioteconomia da USP) e casada com o advogado cearense Adolfo Cabral Barroso. Vem dele o sobrenome artístico com que se lançou, engavetando o registro civil: Ignez Madalena Aranha de Lima.
A estreia artística foi no Recife, para onde Inezita se mudou recém-casada e, a convite do compositor Capiba, passou a cantar na Rádio Jornal do Commercio. Em 1950, já estava no elenco da Rádio Bandeirantes, de São Paulo, levando a seus conterrâneos a voz que já era bem conhecida nas rodas boêmias paulistanas. Um que adorava ouvi-la era justamente o amigo Vanzolini, que dedicava ao samba as horas vagas de sua rotina de zoólogo – fosse no Museu de Zoologia da USP (onde ingressou em 1946), fosse nos meses em que se embrenhava na Amazônia, no Cerrado ou na Caatinga de olho nos répteis.
A paixão pelos bichos vinha da infância, quando, num passeio de bicicleta pelas redondezas de sua casa, chegou ao Instituto Butantan, onde se encantou com as serpentes: a cada segunda, quarta e sexta-feira, lá estava o menino para ver as caixas que chegavam de trem com cobras do Brasil todo. Nunca mais se afastou da zoologia: fez-se doutor pela Universidade de Harvard (EUA), virou referência internacional em herpetologia (estudo de anfíbios e répteis) e deu contribuições significativas para a ciência como sua “Teoria dos Refúgios”.
Já a veia de compositor tem a ver com os anos de serviço militar, quando se alistou na cavalaria do Exército Brasileiro, onde entrou como soldado raso e se tornou o “Cabo 30”. Era 1945 quando, aos 21 anos, Vanzolini começava – sem perceber – a recolher elementos para sua primeira composição. “A gente patrulhava a pé o baixo meretrício, o Bom Retiro, o centro, a região da São João", contou ao repórter Ivan Finotti, na Folha de S. Paulo (22-4-2009). "Cansei de ver mulher chegar na frente do bar, olhar para dentro como se procurasse alguém e ir embora. Não foi uma só que vi. Escrevi sobre isso.”
Paulo Vanzolini / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS
E assim “Ronda” passou a circular nas rodas da noite paulistana, como as do Clube dos Artistas e Amigos da Arte, o “Clubinho”, que deu vazão à efervescência musical e de outras linguagens artísticas entre as décadas de 1940 e 60. Foi esta turma, que inicialmente se reunia na Galeria Itapetininga (na Avenida São João) e, depois, passou a se encontrar no Instituto dos Arquitetos do Brasil (na Vila Buarque), que ouviu pela primeira vez o samba-canção de Vanzolini interpretado por Inezita, que além de “sócia” do clube era a voz mais constante dos encontros.
Nada mais natural que fosse na voz dela a primeira gravação que chegou ao público, no lado B do disco de 78 rotações de número 80-1217 da RCA Victor, lançado em novembro de 1953. Uma curiosidade: nesta gravação original, a letra era diferente da que se tornou conhecida e é cantada até hoje.
De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar
No meio de olhares espio
Nas mesas dos bares você não está
Volto pra casa abatida
Desenganada da vida
No sonho eu vou descansar
Nele você está
Mas, verdade seja dita, sucesso mesmo foi o que fez a música que vinha no lado A do disco, a “Marvada pinga”, divertida moda de viola que Inezita cantaria pela vida inteira. Já o samba-canção de Vanzolini passou em branco em termos de repercussão neste disco de Inezita, assim como nas primeiras regravações que teve. Uma na voz grave de Cláudia Moreno (no LP “Onze sambas e uma capoeira”, de 1967), outra com Carmen Costa (no álbum “A música de Paulo Vanzolini”, de 1974) e ainda uma por Marlene (no disco ao vivo “Te pego pela palavra”, também de 74).
Em todas estas regravações, a letra de “Ronda” já aparece devidamente modificada: as três intérpretes cantam “Desencantada da vida” (não mais “desenganada”) e, no lugar de “No sonho eu vou descansar”, entoam que “O sonho alegria me dá”. Pois foi também com a nova letra que o samba-canção ganhou sua gravação definitiva, com a cantora Márcia. Isso em 1977, quando o violonista e compositor Eduardo Gudin sugeriu que incluísse a composição de Vanzolini no LP que ela preparava – com produção dele – para sair naquele ano, pela Odeon.
Só então, 24 anos depois do registro original de Inezita Barroso, “Ronda” virou o clássico da música popular brasileira que continua sendo até hoje, depois de regravações marcantes, como as de Maria Bethânia, em 1978, Cauby Peixoto, em 1980, e Emílio Santiago, em 1988, entre muitas outras.
“Tenho muita dívida com a cidade de São Paulo. É um absurdo como gostam de ‘Ronda’, mas gostam”, dizia Vanzolini, segundo a revista Veja (29-04-2013). O compositor, de fato, não gostava de sua primeira criação, como volta e meia dizia à imprensa. “Acho piegas”, disparou na entrevista a Assis Ângelo (O Pasquim, 29-11-1990), atribuindo o deslize à imaturidade de seus 21 anos: “Foi coisa de estudante, de romantismo-estudantismo”.
Já aos que exaltavam “Ronda” como hino informal de São Paulo, Vanzolini respondia de bate-pronto: “Que belo hino! É a história de uma prostituta que vai matar o amante!”, como transcreveu o herpetólogo Ulisses Caramaschi no obituário publicado na revista “Herpetologia Brasileira” (edição de novembro de 2013). Em seu jeito mordaz, era ainda mais impiedoso quando perguntavam se o samba-canção havia lhe dado algum retorno financeiro. “Dá dinheiro em karaokê”, ralhou na entrevista ao Roda Viva (2003). “Japonês fica com dor-de-corno, vai no karaokê e canta ‘Ronda’. O que é que eu vou fazer?”
E teve “Sampa”, o samba de Caetano Veloso que saiu em 1978 cheio de referências à cidade homenageada, entre elas “Ronda”, cuja melodia é citada na composição do baiano. “É puro marketing!”, espetava Vanzolini, que chegou a reclamar de ter sido plagiado por Caetano, que encerra sua composição – “E novos baianos te podem curtir numa boa” – com uma frase melódica idêntica à do arremate de “Ronda”: “Cena de sangue num bar da Avenida São João” (também lembrada em “Sampa”, na famosa esquina com a Rua Ipiranga).
Curiosamente, o próprio samba-canção de Vanzolini também tem suas semelhanças melódicas com um samba anterior, “Juramento falso” (J. Cascata e Leonel Azevedo), que fez sucesso em1937 na voz de Orlando Silva. “É duro, é triste, é cruel a dor de uma saudade / Quando se teve nas mãos a felicidade”, entoava o Cantor das Multidões na segunda parte do samba, bem parecida com a segunda parte de “Ronda”: “Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse / Esse alguém me diria / Desiste, esta luta é inútil / Eu não desistia.”
Quando “Ronda” caiu na boca do povo, Vanzolini já tinha outra composição sua fazendo sucesso: o samba “Volta por cima”, que o cantor Noite Ilustrada lançou em 1962, após Inezita Barroso abrir mão de fazer a primeira gravação – Vanzolini ofereceu a primazia à amiga, mas ela dispensou, por achar a música “pouco comercial”. A essa altura, ela já era já estava menos para o repertório urbano do que para as modas, toadas, cururus e catiras que vinha recolhendo em expedições pelo Brasil profundo e gravando em seus discos. Com o tempo ficaria conhecida como uma das principais vozes da música caipira, que ela tanto divulgou em programas de TV como o “Viola, minha viola”, que apresentou de 1980 a 2014.
Já Paulo Vanzolini seguiu em sua caminhada dupla entre répteis e sambas. Além dos dias vividos no Museu de Zoologia – onde deu expediente até os 80 anos (2004) – e das expedições Brasil adentro (chegou a ter um barco na Amazônia), participou ativamente da criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (a Fapesp). Entre uma coisa e outra, ainda teve a boemia e, com ela, as cerca de 60 músicas que compôs, mesmo que não soubesse “tocar instrumento nenhum – nem tamborim”, como costumava dizer. Obra enxuta, feita nas brechas da rotina, como disse na entrevista a Assis Ângelo (O Pasquim, 29-11-1990): “Somos uma pessoa. Cientista de dia, de noite compositor, poeta, boêmio.”
Foto: selo do disco RCA Victor 80-1217. Acervo Nirez / IMS