Às vésperas de completar 80 anos, em 26 de agosto de 2023, Dori Caymmi anda mergulhado em seus quase 60 anos como compositor: escolhendo músicas, rabiscando partituras e repassando letras, melodias e harmonias, ele se prepara para os dois shows de comemoração da data redonda, a serem realizados no palco do Soberano Itaipava, casa de espetáculos na região serrana do Rio.
Foi nesse contexto que nosso telefonema irrompeu no Rocio, em Petrópolis, onde Dori mora desde 2017 com sua companheira, Helena, que nos atendeu prontamente no telefone celular – aparelho do qual o marido quer distância. Mesmo assim, foi o próprio que retornou logo depois, para uma prosa breve e mais uma tarefa: fazer uma seleção musical afetiva em discos de 78 rotações. “Está bem, vamos lá!”
A memória logo rebobinou até a década de 1940, época dos sucessos iniciais de seu pai artista, o grande Dorival Caymmi. Da educação severa e afetiva que recebia da mãe, Adelaide Tostes, recém saída da carreira de cantora da Rádio Nacional – com o nome artístico de Stella Maris – para vigiar, além do próprio Dorival, seus três filhos: a primogênita Nana, de 1941, Dori, de 1943, e o caçula Danilo, de 1948.
“Na minha casa tinha música o tempo todo”, conta. “Era informação musical de todos os lados: tinha Ravel, ópera, fado, jazz, Frank Sinatra cantando ‘You go to my head’... Mas o cantor preferido de papai era Nat King Cole. Ele e a Nellie Lutcher.” Na residência dos Caymmi, no Leblon, também ouviam Debussy – fosse na vitrola de casa, fosse pelas paredes e janelas: “Um dia, um vizinho colocou ‘Clair de lune’ e fiquei maluco quando ouvi aquilo.”
Mas o som definitivo pro menino não vinha da vitrola: era o pai cantando “aquelas coisas do mar”, acompanhando-se com “aquele violão misterioso”. Dava para ouvir pessoalmente ou pelo rádio: “Eu só dormia depois que acabava o programa dele. Lembro bem: ‘lã Sams apresenta... Dorival Caymmi’.” A combinação da voz com o violão do pai segue até hoje como principal referência de Dori: “Não gosto daquelas gravações de músicas dele com orquestra”, dispara. “Nem mesmo de ‘Marina’, que ele dizia que fez pra mim.”
Deste som essencial de Caymmi, eternizado no dez polegadas “Canções praieiras”, de 1952 (“Pra mim o melhor disco de todos os tempos”), Dori gosta mais de “A lenda do Abaeté”, também lançada em duas gravações de Dorival em 78 rotações. Na de 1956, o acompanhamento é do jeito que o filho gosta: “seu violão”, como creditado no selo do disco.
Nas horas caseiras, também faziam parte da paisagem sonora do menino sucessos alheios, como dois de Dick Farney: “Perdido de amor” (Luiz Bonfá) e “Alguém como tu” (Jair Amorim e José Maria de Abreu). “Ele gostava de cantar essas coisas e eu aprendi: passei a cantar também, com ele me acompanhando.”
Mas a primeira manifestação musical de Dori, segundo sua sobrinha Stella Caymmi (na biografia “Dorival Caymmi: o mar e o tempo”), teria se dado bem antes: o menino tinha quatro anos quando, ouvindo a mãe cantarolar “Casinha pequenina” na cozinha, criou espontaneamente um contraponto perfeito para a canção. “Dorival e Stella se entreolharam imediatamente reconhecendo o talento musical nascente do filho.”
Já entre as recordações guardadas por Dori estão músicas de amigos do pai. De Sílvio Caldas, a seresta obrigatória “Chão de estrelas” (com letra de Orestes Barbosa). De Jacob do Bandolim, o choro instrumental “Migalhas de amor”, “que mexeu comigo desde a primeira vez que ouvi”. Dori o regravaria em 2001 no CD “Influências”.
“Lá em casa cantava-se também muito Noel Rosa”, recorda o compositor, que pesca na memória sambas recorrentes no ambiente caseiro da infância, como “Feitiço da Vila” e “Conversa de botequim”, ambas do Poeta da Vila com Vadico. Sem contar outro da parceria que está na raiz da família de Dori: Stella Maris cantava “Último desejo” no auditório da Rádio Nacional numa tarde de 1939 quando Dorival, em visita à emissora, sentiu o tempo parar. “Morri de emoção”, diria o velho, já então artista profissional.
“Noel, papai e Ary Barroso: três grandes brasileiros que são também meus compositores preferidos da nossa música”, define Dori, que completa o trio em sua seleção musical com mais um sucesso de Silvio Caldas, o samba-canção “Por causa desta cabocla” (de Ary com Luís Peixoto), regravado por seu pai no LP “Ary Caymmi – Dorival Barroso” (Odeon, 1958).
Dori já estava na adolescência quando se aproximou do violão, numa temporada no sítio da família em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. “Eu tinha 15 anos e comecei a me entender com o instrumento por conta própria”, diz o músico, que Caetano Veloso definiria, no livro “Verdade tropical” (Companhia das Letras, 1997), como “o melhor violão de bossa nova na linha de João Gilberto, fora o próprio João Gilberto”.
A propósito de João, vamos então de “Chega de saudade”, Dori? “Não. Prefiro um daqueles sambas antigos que ele regravou, de uma maneira tão mais simples e bonita do que a gravação original”, define, levando-nos a mais um Ary: ‘Morena boca de ouro'. Já da pré-bossa vêm outras referências importantes para Dori – como o “Rapaz de bem”, do pianista e cantor Johnny Alf, e “Duas contas”, composição do multi-instrumentista Garoto, que se tornou obrigatória para os jovens violonistas do Rio de Janeiro dos anos 1950.
Quando João inaugurou a bossa nova (1958), Dori estudava num internato em Cataguases (MG), para onde a mãe o havia mandado depois de tantas gazetas e notas vermelhas no Colégio Mello e Souza, em Copacabana, que frequentou até 1956. “Sempre fui aluno rebelde”, reconhece.
Na música também: esteve matriculado no Conservatório Lorenzo Fernandez, mas não se enquadrou no modelo rígido e tradicional de educação musical. “Além de não estudar, eu tinha horror àqueles bustos de Beethoven... Tinha um cheiro de mofo naquele ensino”, disse Dori ao músico Flávio Mendes, na série de entrevistas “O arranjo”, disponível no YouTube. Depois, teve aulas de harmonia com Paulo Silva, que encaminhou o aluno rebelde a seu assistente, Moacir Santos, seu último professor regular. “O que aprendi do Moacir foi ouvir o trabalho do Moacir, muito, e trocar umas ideias, conversar, essas coisas”, contou em entrevista a Júlio Cesar Caliman Smarçaro, autor do texto “O cantador: a música e o violão de Dori Caymmi”, sua dissertação de mestrado na Unicamp (2006).
O exercício da audição foi muito além das músicas do maestro autor de “Anfíbio”. “Também aprendi muito ouvindo concertos”, contou a Flávio Mendes. “Ouvindo Radamés, que aliás sempre dizia pra mim: ‘Harmonia, harmonia. Tem que estudar harmonia’.” Já no fim dos anos 1970, o maestro Radamés Gnattali ficaria emocionado com uma gravação de Nana Caymmi – em grande arranjo do irmão – para sua canção mais conhecida, “Amargura”. “Que coisa mais linda vocês me fizeram! Minha música não é tão boa assim, não”, disse o maestro, como Dori contou no episódio 1 da série “Radamés Gnattali: operário e artesão da música”, da Rádio Batuta.
Outro mestre em seu caminho foi o pianista e compositor Luiz Eça (“Meu guru!”), primeiro a gravar suas composições (“Velho pescador” e “Amando”), no LP “Luiz Eça e cordas” (Philips, 1965). Dori trabalhou como copista de Eça, ampliando na prática seu conhecimento de instrumentação e orquestração. Entre os arranjos do mestre que guarda como referência está o do “Barquinho” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli), na gravação de 1960 por Maysa.
Mas sua cantora preferida desta época era outra: “A querida Silvinha Telles, que cantava lindamente.” Na voz dela Dori escolheu o samba-canção “Por causa de você”, com versos de Dolores Duran sobre a melodia de outro mestre e amigo fundamental em sua trajetória: Tom Jobim, em cujas trilhas trabalhou como violonista, descolando-se parcialmente do fato (e da pressão inevitável) de ser filho de Dorival Caymmi. “Tom me botou debaixo da asa dele por muito tempo, para me proteger dessa comparação”, contou a Pedro Bial no programa Conversa com Bial, da TV Globo (27-05-2022).
Mas o marco inicial da carreira profissional foi antes disso, em 1960, quando tocou seu violão e cantou – com a irmã, Nana – em “Terras do sem fim”, peça do tio Jorge Amado exibida no Grande Teatro Tupi, faixa de destaque na programação da pioneira TV Tupi, com elenco estrelado: Mário Lago, Sérgio Brito, Fernanda Montenegro e Fernando Torres, entre outros. Seguiu com sua música nas artes cênicas, fazendo a direção musical de outros espetáculos importantes da década como “Opinião”, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (“Um dos meus heróis.”), em 1964.
Logo depois, atravessou com sucesso os ruidosos festivais da canção, com destaque para duas parcerias com Nelson Motta: em 1966, “Saveiros” venceu o I Festival Internacional da Canção (FIC) na voz de Nana Caymmi, sob vaias estrepitosas do Maracanãzinho. Já no ano seguinte, foi a vez de Elis Regina levar “O cantador” até a final do Festival da TV Record, em São Paulo.
Já tinha os primeiros arranjos gravados, em discos dos amigos Edu Lobo (no LP “Edu”, de 1967), Gilberto Gil (no disco “Louvação”, do mesmo ano), Caetano Veloso e Gal Costa (no LP “Domingo”, também de 1967), quando lançou seu primeiro disco solo, “Dory Caymmi” (Odeon, 1972). Entre as nove músicas do repertório estão seis parcerias com Nelson Motta (entre elas “O cantador”) e uma com Paulo Cesar Pinheiro: “Evangelho”.
Este último se tornará o letrista mais constante em sua obra de compositor: são deles sucessos como “Desenredo” e “Pedrinho” – este feito para a série de TV “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, veiculada pela Globo com direção musical de Dori. E mais uma verdadeira obra, capaz de preencher repertórios de discos inteiros de Dori, como “Poesia musicada” (2011), “Voz de mágoa (Música do Brasil)” (2014), “Canto sedutor” (com a cantora Mônica Salmaso, em 2022) e o recém lançado "Sonetos sentimentais para violão e orquestra".
Na mesma década de 1970, contratado pela TV Globo, escreveu arranjos e fez a direção musical de programas da emissora, entre eles novelas como “Gabriela”, em 1975, e “O casarão”, em 1976. Para a primeira fez outras composições de destaque em seu repertório, como “Porto” (gravada pelo MPB-4) e “Alegre menina” – poema de Jorge Amado que Dori musicou e teve sua primeira gravação na voz do iniciante Djavan.
E teve ainda a temporada de quase três décadas vividas na Califórnia (EUA), entre 1989 e 2017, quando lançou outros discos de carreira e trabalhou com alguns grandes nomes da música estadunidense, como Sarah Vaughan, Carmen McRae, Johnny Mathis, Henry Mancini e Quincy Jones, com vindas esporádicas ao Brasil.
Numa delas, em agosto de 2008, despediu-se em sequência do pai e da mãe, falecidos com uma diferença de onze dias – ele em 16 de agosto, ela no dia 27. Passados os velórios consecutivos (o de Dorival encerrado com Dori dizendo os versos finais de “João Valentão”), afastou-se da composição. “A morte dos velhos me afetou muito lá dentro e passei por uma fase de desinspiração”, contou ao jornal O Estado de S. Paulo (14-04-2014). O silêncio durou alguns anos, até encontrar em seus guardados um poema de Paulo Cesar Pinheiro, “Rede”. Com a melodia pronta, estava de volta à música, trabalhando sobre novos poemas do parceiro-compadre.
"Sempre fui meio Brasil, meio Ravel, meio Debussy. E aí eu vou tocando violão quando me dá vontade. Graças a não sei quê, dali sai sempre uma coisa que eu gosto”, contou Dori ao programa Passagem de Som, do Sesc SP (14-04-2014). A atividade segue a pleno vapor, seja musicando novos versos de Paulo Cesar Pinheiro, fazendo música para ser letrada pelo parceiro ou explorando seu baú de memórias, com “todas essas coisas da infância. O mar está sempre comigo.”
O mar e, claro, Dorival Caymmi – que canta no encerramento desta seleção musical dedicada aos 80 anos de Dori, como fazia no encerramento da programação da TV Tupi, nas noites dos anos 1960, entoando “Acalanto” em dueto com a então estreante Nana Caymmi.
Foto: Pedro Paulo Malta