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    Los Ocho Batutas: há cem anos, uma aventura na Argentina

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Foi corrido o segundo semestre dos Oito Batutas no longínquo 1922.

    Nem bem chegou de Paris – em 14 de agosto, no mesmo navio que trazia Santos Dumont e o fotógrafo Marc Ferrez – e o conjunto de Pixinguinha, Donga e cia. já estava na ativa. No dia 17 animaram uma festa no grã-fino Jockey Club Brasileiro; no dia 24 já estavam no palco do Teatro Lírico (numa das cenas do espetáculo “V’la Paris”, da badalada companhia francesa Ba-Ta-Clan); e em 6 de setembro era a vez de sacudirem outro salão chique, do Fluminense Football Club, então presidido pelo empresário Arnaldo Guinle, admirador do conjunto desde os primeiros shows (em 1919) e patrocinador de ousadias como a temporada francesa dos Batutas: seis meses de sucesso no Dancing Sheherazade.

    Além do baile nas Laranjeiras, o mês de setembro foi dedicado à Exposição Internacional do Centenário da Independência, o grande evento do ano, com direito a edifícios erguidos para serem “pavilhões” de países. No dos Estados Unidos, patrocinado pela General Motors, os Oito Batutas não só estavam contratados como atração fixa (ao lado do trompetista Bonfiglio de Oliveira e da cantora Zaíra de Oliveira), como participaram da primeira transmissão oficial de rádio no Brasil, realizada em 7 de setembro de 1922. “Toquei num estudiozinho que havia lá”, disse Pixinguinha, com o habitual despojamento, num dos depoimentos que gravou no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

    E ainda tinha a viagem a Buenos Aires que o empresário José Segreto – então agente profissional dos Batutas – vinha costurando com o colega argentino Humberto Cairo. Para isso, foi preciso a Pixinguinha e seus companheiros músicos comparecerem – em 27 de novembro – à Terceira Delegacia Auxiliar de Polícia, para obterem um atestado revelador da época: “Atesto que o requerente não é vagabundo nem mendigo, que não sofreu pena de prisão nos últimos cinco anos e que nada consta em desabono a sua conduta”, dizia o documento, segundo o jornalista Sérgio Cabral no livro “Pixinguinha, vida e obra” (Funarte, 1978). Só então puderam solicitar a emissão dos vistos ao consulado argentino.

    A bordo do Duca D’Aosta, navio italiano que fazia a rota Gênova-Buenos Aires (com escalas no Rio de Janeiro, em Santos e Montevidéu), os Batutas levavam novidades instrumentais que haviam assimilado na temporada parisiense: um saxofone tenor, um banjo e uma bateria. Apesar da influência do jazz (para horror de alguns críticos brasileiros, defensores da nossa pureza musical), na bagagem estavam também os figurinos sertanejos com que se apresentariam na Argentina, como informa Lira Neto no livro “Uma história do samba: as origens” (Companhia das Letras, 2017). Ou seja, os mesmos lenços no pescoço e chapéus de palha que usavam nos tempos do Grupo do Caxangá, antecessor dos Oito Batutas.

    O Grupo do Caxangá, com Pixinguinha (em pé, à esquerda), China (com violão, à esquerda), Nelson Alves (ao centro, com cavaquinho), e Donga (o outro violonista). Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    A formação do conjunto na Argentina, aliás, é um capítulo à parte nessa história. Depois de terem se apresentado com sete músicos na França, agora os Batutas voltavam a ser oito: Pixinguinha, seu irmão China, Donga, Josué de Barros, Nelson Alves, J. Thomaz, J. Ribas e Aristides Júlio de Oliveira. Este último não constava da lista informada nas duas principais biografias de Pixinguinha: tanto o livro de Sérgio Cabral quanto “Filho de Ogum Bexiguento” (de Marília T. Barboza e Artur de Oliveira Filho) trazem José Alves (o Zezé) como o oitavo batuta na Argentina. Em ambas as obras é informado que Aristides (grande bandolinista e banjoísta mais conhecido pelo apelido de Moleque Diabo) teria se integrado ao grupo no meio da temporada.

    A informação só foi atualizada em 2011, num artigo sobre a jornada platina dos Batutas publicado na revista ArtCultura, da Universidade Federal de Uberlândia, pelo professor Luís Fernando Hering Coelho. No texto, ele traz o levantamento que fez nos arquivos do Centro de Estudos Migratórios Latino-Americanos (CEMLA), de Buenos Aires, tendo conferido a lista dos brasileiros que desembarcaram no porto da capital argentina em 7 de dezembro de 1922. Além do octeto, constam da relação os dançarinos Sofia e Antônio Gonçalves, que formavam a dupla Les Zuts, atração dos shows portenhos dos Batutas.

    Pois a estreia foi no próprio dia 7 de dezembro, abrindo uma temporada de dez dias no Empire Theater, à qual se seguiu outra mini temporada (19 a 26 de dezembro) no Teatro Maipo, o mesmo da estreia oficial de Carlos Gardel – em 16-09-1916, quando o local ainda se chamava Esmeralda, como informa Luís Fernando Hering Coelho, na reconstrução que fez do itinerário do conjunto carioca. Já em 28 de dezembro, o público portenho ainda pôde ver “los Ocho Batutas” em ação no imenso Teatro Coliseo (2.550 lugares), dividindo um baile com uma atração local: a orquestra típica do bandoneonista Augusto Pedro Berto.

    Após a virada de ano, os Batutas partiram para o interior da Argentina: apresentaram-se primeiro em Rosário, no Eden Park (4 a 11 de janeiro) e no Cine San Martín (12 a 14 de janeiro), seguindo depois para Córdoba, onde ficaram em cartaz no Cine El Plata, de 19 a 23 de janeiro. O giro dos Batutas então chegou à pequena Río Cuarto, onde se apresentaram no Teatro Cine El Plata (1 de fevereiro) e no Teatro Municipal (10 a 14 de fevereiro), antes de seguirem de volta à capital do país (para shows no Teatro Buenos Aires, em 17 e 18 de fevereiro) e depois para La Plata, onde estiveram no teatros Ideal e Avenida Hall, entre 21 e 25 de fevereiro.

    Um desfalque, no entanto, se fez sentir no meio do trajeto. O violonista Josué de Barros permaneceu em Río Cuarto, por um motivo inusitado – passou a ser anunciado na imprensa local como protagonista de um autêntico “freak show”: seria enterrado vivo numa esquina da cidadezinha, permanecendo debaixo da terra por quinze dias, como anunciou o jornal El Pueblo (15-02-1923), conforme destacado por Luís Fernando Hering Coelho, na tarefa de reconstituir o itinerário dos Batutas pelos impressos da época. Ao aspecto insólito da suposta façanha soma-se uma aura científica, com Josué sendo apresentado – no mesmo periódico – como “profesor de ciencias y autosugestión hipnóticas”.

    Assim, enquanto os Batutas estreavam em La Plata (21-02), Josué desfilava por Río Cuarto dentro de um caixão, abrindo o evento bizarro que, no fim das contas, duraria só até o dia 24, dado o fracasso retumbante na vendagem de ingressos para o feito. “Fazia um calor fortíssimo na cidade e à tardezinha uma onda de gafanhotos invadia o lugar, obrigando os moradores a ficar em casa”, acrescenta o fascículo da série “História da Música Popular Brasileira” dedicado a Pixinguinha (Abril Cultural, 1970). “Pouca gente se ocupou do enterrado vivo.”

    O próprio Josué relembrou o episódio a Queiroz Júnior, que reproduziu o relato no livro “Carmen Miranda: vida, glória, amor e morte” (Cia. Brasileira de Artes Gráficas, 1956): “Só não atingi o prazo marcado porque a própria esposa do chefe de polícia, penalizada, pediu que eu desistisse.” O artista, que ficaria conhecido como o descobridor da Pequena Notável (no fim dos anos 1920), tomara a atitude drástica “numa tentativa desesperada de reverter e compensar o que teria sido o desastre financeiro da temporada dos músicos na cidade”, como descreve o professor Luís Fernando em seu artigo.

    As dificuldades financeiras, na verdade, vinham desde antes da chegada a Río Cuarto. Ainda em Buenos Aires, o empresário Humberto Cairo havia alterado o contrato com os Batutas (que previa mais onze apresentações na capital), impondo a viagem pelas cidades do interior. No livro “Uma história do samba: as origens”, Lira Neto informa que os músicos não teriam aceito a imposição e, como resposta, foram dispensados pelo empresário argentino, que lhes pagou um terço do valor que devia – embora já tivessem cumprido dois terços do contrato. O cônsul brasileiro, Alcino Santos Silva, tentou intervir pelos compatriotas, mas não foi recebido por Humberto Cairo.

    O rótulo do disco de "Três estrelinhas" (Anacleto de Medeiros) gravado pelos Oito Batutas.
    Reprodução do site Discogs (www.discogs.com).

    Menos mal que março começou trazendo um novo trabalho para os Oito Batutas: os estúdios argentinos da Victor abriram suas portas – entre os dias 2 e 8 de março de 1923 – para o conjunto gravar músicas de seu repertório. É provável que a intermediação entre músicos e gravadora tenha sido feita por Augusto Pedro Berto, que conhecia o grupo desde o fim de dezembro (quando sua orquestra e os Batutas dividiram o palco do Teatro Coliseo) e figurou como “publisher” nas fichas das gravações, como informa Luís Fernando Hering Coelho.

    Para o professor, a intervenção de Berto foi providencial para os interesses de todas as três partes envolvidas: “o seu próprio, com os rendimentos garantidos pela atuação como ‘publisher’, o da companhia Victor, com a possibilidade de contar com um repertório novo e interessante em seu catálogo no contexto de um mercado fonográfico dinâmico e ávido por novidades, e o dos Oito Batutas, que certamente também receberam seu quinhão.” Além, claro, do interesse dos ouvintes: os da época e os da posteridade, pois se hoje (um século depois!) podemos ouvir os Batutas é graças a estes dez discos de 78 rpm – ou 20 gravações feitas em Buenos Aires: as únicas existentes do conjunto de Pixinguinha, Donga e cia.

    No repertório estão homenagens a patronos do choro como Anacleto de Medeiros (“Três estrelinhas”) e retratos de momento, como “Ba-ta-clan”, composição de A. Treisleberk dedicada à companhia francesa que era a sensação dos teatros cariocas no começo dos anos 1920. E também criações de batutas como Nelson Alves (“Mi dêxa serpentina”), Moleque Diabo (“Nair”), J. Thomaz (“Faladô” e “Caruru”, com Donga) e do cantor do grupo, China (“Meu passarinho” e “Já te digo”, com o irmão Pixinguinha, também autor de “Lá Ré”).

    Outra assinada por Pixinguinha é “Urubu”, o velho “Urubu malandro”, “número de maior êxito nas apresentações de Pixinguinha e, sem dúvida, um dos melhores momentos de qualquer improvisador da música popular brasileira”, como define Sérgio Cabral no livro “Pixinguinha, vida e obra”. Segundo Cabral, a música seria um tema popular recolhido pelo clarinetista Lourival dos Santos, o Louro, que fez sua primeira gravação (1914) e eventualmente é creditado como seu autor.

    No mesmo livro ficamos sabendo da repercussão dos improvisos do músico genial na imprensa argentina, com direito a um poema de Musmée publicado no jornal La Razón (01-04-1923), do qual destacamos a última estrofe:

    Voa, condor tropical
    Ao teu bosque, a tuas montanhas
    E devora estas entranhas
    Com tua flauta colossal

    Outro que recorreu à analogia com aves foi El Día (22-02-1923), que definiu o som de Pixinguinha como “uma imitação dos trinos de pássaros característicos do Brasil”. Já o periódico El Argentino (25-02-1923) se referiu ao grande músico como “uma verdadeira maravilha, pela clareza e a quantidade de variações que executa com o dificílimo instrumento.”

    Só às vezes Pixinguinha tem o nome citado, e assim mesmo pelo civil – “Alfredo Viana” ou “El señor Viana” – na imprensa argentina, na qual predomina o olhar fascinado pelo aspecto exótico dos artistas das “selvas tropicais”, com suas “roupas típicas da gente humilde brasileira” e uma “sensualidade quase selvagem”.

    Há também racismo desavergonhado, como num texto do portenho Última Hora (08-12-1922) que define o espetáculo dos Batutas como “um número de luto”, afinal “seus componentes são negros” ou “morenos carregados” que além do mais tocam instrumentos da moda das jazz bands (“Só faltam a buzina de automóvel e o ralador de queijo”). “Francamente, teríamos preferido (que a apresentação tivesse) menos negros, menos barulho, mais danças e mais saias”, escancara o artigo, reproduzido em outro texto de Luís Fernando Hering Coelho: sua dissertação de doutorado, também sobre os Batutas, apresentada na Universidade Federal de Santa Catarina, em 2009.

    Mesmo assim, o conjunto foi até o fim da temporada, com uma semana no Teatro Español, na cidade de Chivilcoy, onde se registram suas últimas oito apresentações em solo argentino, entre 27 de março e 3 de abril de 1923. Se bem que, nesta reta final, a imprensa local já os anunciava como um quinteto, embora Sérgio Cabral informe em seu livro que, após desentendimentos entre os componentes, metade deles voltou antes para o Brasil: Donga, Nelson Alves, J. Thomaz e Moleque Diabo. Os três primeiros criaram, já em abril, o dissidente Oito Cotubas, enquanto os Batutas – trazidos de volta pela embaixada brasileira em Buenos Aires – se rearrumaram em octeto.

    Mas o racha não foi além do dia 24 de agosto de 1923, quando termina nossa história – e com final feliz. É que nesta data estreava no Teatro Lírico a nova banda formada pelos componentes dos dois conjuntos: a Bi-Orquestra (assim chamada pois era versátil tanto nos sambas e choros quanto nos ritmos estrangeiros de salão) Os Batutas.

    Ficaram, além de boas histórias, as 20 gravações que a leitora ou o leitor pode ouvir na playlist associada a este texto.

    Foto principal: Os Oito Batutas com o empresário José Segreto (à direita, de branco), em 1920 / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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