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    Terra seca: há 80 anos, o contraponto de Ary Barroso ao ‘Brasil lindo e trigueiro’

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Fontes murmurantes, luzes merencórias, verdes pinheirais e bamboleios fazendo gingarem as mais ardentes canções. No começo da década de 1940, era o que se cantava no Brasil do Estado Novo – o regime em voga no país, sob o comando autoritário do presidente Getúlio Vargas. Pois coube justamente ao compositor-símbolo desta época, o grande Ary Barroso, fazer um contraponto às belezas e glórias nacionais que eram exaltadas samba após samba desde o lançamento de sua “Aquarela do Brasil”, em 1939. Um contraponto dissonante e nada festivo ao qual Ary deu o nome de “Terra seca”: samba lançado em disco há exatos 80 anos.

    O nego tá moiado de suó...
    – Trabalha, trabalha, nego!
    – Trabalha, trabalha, nego!
    As mãos do nego que é calo só...
    – Trabalha, trabalha, nego!
    – Trabalha, trabalha, nego!

    Pois Ary gostava tanto deste samba que passou a vida dizendo que de suas 480 composições (número contabilizado pelo pesquisador Omar Jubran) era a sua preferida. Foi o que afirmou ao escritor Paulo Mendes Campos, na Revista de Música Popular (edição nº 1, de setembro de 1954). Depois, na Manchete (04-11-1961), completou seu pódio afetivo (“Camisa amarela” e “No tabuleiro da baiana”) e relativizou sua obra-prima: “‘Aquarela do Brasil’ é uma espécie de fábrica de dinheiro, mas não me desperta a ternura daquelas.” Já ao jornalista Mário de Moraes, na revista O Cruzeiro (03-08-1963), justificou sua predileção por “Terra seca”: “Ela apresenta a pobreza do interior brasileiro através de um episódio da escravatura.”

    Já num manuscrito de Ary encontrado após sua morte (09-02-1964), ele afirma que este samba é nada mais do que a descrição da “tragédia do negro em luta contra as asperezas da terra: drama atual, intenso, visível a olho nu”. Os escritos estão reproduzidos na biografia “Ary Barroso: um turbilhão!” (Livraria Freitas Bastos, 1970), de Dalila Luciana, segundo a qual Ary teria se inspirado a compor “Terra seca” na volta de uma excursão pelo interior do país, enquanto “da janela do trem ia avistando negros suados, na labuta da roça”. Uma viagem que teria ocorrido, segundo o livro, em janeiro de 1944, mas que já sabemos ter sido pelo menos três anos antes.

    Isso porque a primeira menção ao samba que encontramos nos jornais da época é de 22 de maio de 1941. Nessa data, o Diário da Noite anunciava para o dia 31 daquele mês uma festa em homenagem à aviação brasileira a ser realizada no Pão de Açúcar, tendo como principal atração Ary Barroso, que aproveitaria a ocasião para estrear a canção cívica “Cadetes do ar”. “O outro trabalho que lançarei é um samba descritivo que se chama ‘Terra seca’”, revelou Ary, no meio da matéria. “Conta a história de um negro que envelheceu trabalhando a terra. Alquebrado, sente não ter mais forças para cavar a terra que envelheceu com ele. Ambos secaram. A ambição do 'senhor', do feitor, é sem limites e obriga o velho a prosseguir no trabalho na terra cansada. Do chão batido nada surge a não ser poeira e o negro sua na inutilidade do trabalho.”

    Ai, meu sinhô!
    Nego tá
    véio, não aguenta!
    A terra é tão dura, tão seca, poeirenta
    – Trabalha, trabalha, nego!
    – Trabalha, trabalha, nego!

    Quem cantou “Terra seca” na festa do Pão de Açúcar – onde, aliás, ouviu-se também pela primeira vez o samba “Morena boca de ouro” – foi Sílvio Caldas, um dos intérpretes mais queridos de Ary. Tanto que, em 17 de outubro de 1941, foi ele o cantor escalado pela Rádio Tupi para um programa especial dedicado ao presidente Getúlio Vargas, a quem Ary Barroso dedicava a inédita “Onde o sol doura as espigas”, canção cívica (mais uma) apresentada em primeira audição naquela noite, com direito a um aparelho de rádio ligado no Palácio do Catete e a audiência do próprio chefe da nação, que ouviu também “Aquarela do Brasil”, “Na Baixa do Sapateiro” e “Terra seca”.

    O último número foi o que mais chamou a atenção de Vargas, segundo a reportagem de O Jornal, presente no gabinete presidencial. “O chefe do governo não conhecia essa canção de Ary Barroso alusiva ao sertão nordestino”, descreve o texto não-assinado de O Jornal (18-10-1941). “Sua excelência não escondeu a impressão viva que lhe causaram a voz e a expressão do cantor referindo-se a flagrantes do tempo da escravidão.” Ao fim da transmissão, o próprio Ary veio ao microfone agradecer ao “bom e querido chefe” em seu nome e no de Sílvio Caldas: “Este instante é, para nós, a grande recompensa do nosso amor à terra.”

    Nego pede licença pra pará...
    – Trabalha, trabalha, nego!
    – Trabalha, trabalha, nego!
    Nego não pode mais trabaiá...

    Em pleno Estado Novo (1937-1945) convinha manter bons laços com Vargas, especialmente depois de “Aquarela do Brasil” ter suscitado explicações do compositor aos censores, por ter reduzido a pátria amada (salve, salve!) a “terra de samba e pandeiro”, em 1939. Dois anos depois, já considerado por muitos o artista-símbolo do “Brasil brasileiro” (em grande parte graças ao sucesso do pioneiro samba-exaltação), “a cortina do passado” estava aberta também para o tema da escravidão.

    Um tema que, à luz de 2023, soa superficial ou caricaturado na maneira como é tratado no samba de Ary, no qual a questão etária, por exemplo, pode parecer sobreposta à questão central, da escravidão – como se pode ver, por exemplo, nos versos a seguir deste parágrafo. Já no livro “A canção no tempo – vol. 1” (Editora 34, 1997), Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello anotam que, com o tempo, houve quem passasse a considerar a canção “conformista”, dada a “postura submissa” (“Ai, meu sinhô!”) de seu personagem central.

    Quando nego chegou por aqui
    Era mais vivo e ligeiro que o saci
    Varava esses
    rio, essas mata
    Esses
    campo sem fim
    Nego era moço e a vida, um brinquedo para mim

    Ainda assim, é inegável o contraponto que “Terra seca” representou em meio à enxurrada de sambas-exaltação que se seguiram à “terra boa e gostosa” pintada por Ary: entre eles, destacam-se os famosos “Onde o céu azul é mais azul” (João de Barro, Alberto Ribeiro e Alcir Pires Vermelho, 1940), “Canta, Brasil” (de Alcir com David Nasser, 1941) e “Isto aqui o que é” (do próprio Ary, 1942). Vale lembrar que, nessa mesma época, saiu em disco uma incursão anterior de Ary Barroso ao tema da escravidão: “Cena de senzala”, samba em parceria com George André lançado em setembro de 1941 num 78 rpm de Cândido Botelho.

    Já “Terra seca” teve que esperar mais dois anos até virar faixa de disco: mais especificamente até 20 de setembro de 1943, há 80 anos, quando os Quatro Ases e Um Curinga entraram no estúdio para fazerem a primeira gravação do samba. Mas só em novembro chegou às lojas o disco do conjunto vocal e instrumental, todo formado por cearenses: os irmãos Pontes de Medeiros (Evenor, Permínio e José), André Vieira e Esdras Guimarães (o Pijuca). No lado B do 78 rpm da Odeon, vinha o sacudido “Baiana bonita” (Gastão Vianna e Benedito Lacerda).

    A primeira regravação não tardou a sair: em junho de 1944 era a vez da Continental lançar “Terra seca” interpretado no canto nasal de Déo, “o Ditador de Sucessos”, com acompanhamento do Coro dos Apiacás (dirigido por Lucília Villa-Lobos) e do conjunto Napoleão e Seus Soldados Musicais. Desta vez, a gravação era dividida em duas partes, ocupando os dois lados do mesmo 78 rotações, a exemplo dos discos originais de “Aquarela do Brasil”, “Canta, Brasil” e outros.

    “Ao enfrentar a aparelhagem da gravação (eu que já a enfrentei não sei quantas vezes), vi-me tolhido na minha serenidade, tendo estranhos e inesperados sobressaltos de gaguez”, contou Déo à Revista Carioca (05-01-1946), relembrando a gravação de “Terra seca”, ao responder qual tinha sido sua maior emoção. “A custo fiz a gravação, vindo depois a atinar com os motivos de tal perturbação”, relatou. “A cadência, o ritmo, a dolência cortante de ‘Terra seca’ traduzem a brutalidade moral dos senhores feudais e unge-se com as penas e dores dos servos acorrentados a uma lei estúpida.”

    Mas este tempo passô
    E esta terra
    secô
    A velhice
    chegô
    E o brinquedo
    quebrô
    Sinhô, nego véio tem pena de ter-se acabado
    Sinhô, nego
    véio carrega este corpo cansado!

    Ary Barroso, animado com o lançamento de sua composição, chegou a imaginar o barítono estadunidense Paul Robeson (o mesmo de “Ol’ man river”) cantando – em português! – sua canção, como disse à reportagem d’O Jornal em 9 de fevereiro de 1944, quando embarcou para Hollywood, contratado pela produtora Republic Pictures para compor músicas para o filme “Brazil”. Ficou só na imaginação, assim como Cauby Peixoto, outro que embarcou para os Estados Unidos (já em 1956) prometendo gravar “Terra seca”, mas em inglês – com o curioso nome de “Where are you, darling” – como contou à Revista do Rádio (05-05-1956).

    Gravação em inglês só mesmo a do estadunidense Champ Butler, que lançou “Dry land” em fins de 1951, pela Columbia. O novato cantor, embora estreando em disco com a composição de Ary, é apresentado pelo Diário da Noite (24-01-1952) como “atualmente o preferido da mocidade norte-americana”. A letra por lá ficou a cargo de Ray Gilbert, o mesmo que transformaria “Das rosas” (Dorival Caymmi) em “And roses and roses” e criou versos para “Dindi” (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira) e “Berimbau” (Baden Powell e Vinicius de Moraes), entre outros sucessos brasileiros. Só que na recriação de Gilbert, a história do velho escravizado de “Terra seca” dá lugar a um lavrador que implora a Deus pela chuva.

    The only rain that is falling
    On my thirsty land
    Are tears from my eyes and the sweat
    That falls from my brows

    Mais marcante foi a interpretação de Josephine Baker, a performer estadunidense naturalizada francesa que, numa de suas idas a Lisboa, cantou o samba de Ary Barroso no idioma original, numa apresentação no canal de TV RTP (29-11-1960). O número, carregado de emoção, seria interpretado como uma afronta da artista à ditadura salazarista (então vigente em Portugal), ainda mais com a fala pungente que veio em seguida, conforme transcreveu o articulista Tiago Bartolomeu Costa no jornal lisboeta Público (20-03-2011): “Algumas vezes podemos chorar quando temos uma pele muito negra. Eu choro frequentemente. Já chorei muito, mas tenho confiança em que chorarei cada vez menos. É verdade, porque somos todos irmãos, verdadeiros irmãos.”

    Voltando ao Brasil, outras cinco gravações foram lançadas em discos de 78 rotações, sendo a primeira delas em 1949, com Stellinha Egg acompanhada de orquestra conduzida por seu marido, o maestro Lindolfo Gaya. Depois foi a vez do samba de Ary ser regravado em clima de big band, como no registro de Wilson Roberto, em 1951. Já em 1953 foi Orlando Silva quem relançou a canção, com seus vibratos acompanhados de arranjo do maestro Leo Peracchi. “Terra seca” teve ainda duas gravações instrumentais lançadas em 1956: uma pelo pianista José Luciano e outra pelo Trio Surdina, emendada com “Favela” (Hekel Tavares e Joraci Camargo).

    Há também versões instrumentais entre as regravações lançadas em LPs. Como uma jazzy no dueto do saxofonista Bud Shank com o violonista Laurindo de Almeida (1953) e outra no violão solo de Dilermando Reis (1959), além de uma póstuma de Garoto, que após a morte (1955) teve seu violão unido a coro e orquestra arranjados por Léo Peracchi em 1957.

    Já entre as múltiplas vozes que regravaram “Terra seca” em LPs, há destaques como o primeiro que cantou a música, Silvio Caldas (1953), e mais a lírica Angela Maria (1955), o dançante Wilson Simonal, em arranjo que incluía também “Na Baixa do Sapateiro” e “Aquarela do Brasil” (1965), e ainda um arranjo afrolatino com Sérgio Ricardo (1995).

    Foto: o rótulo da gravação original de "Terra seca" / Acervo Nirez

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