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    Evoé, Mano Heitor: dos Prazeres, dos sambas, das pinturas e da Pequena África

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    “A Praça Onze era uma África em miniatura.”

    Não bastassem os sambas, quadros e outras criações menos conhecidas (como móveis e figurinos), Heitor dos Prazeres deu nome a uma região do Rio de Janeiro. A “Pequena África”, como arrematou o escritor Roberto Moura, responsável por eternizar a denominação, no referencial “Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro” (Funarte, 1983). Vizinha  ao Centro, formada pelos bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa, a área é apresentada no livro como um “reino que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, tendo como capital a Praça Onze”.

    Para Heitor, era também o berço. Seu nascimento, há 125 anos (23-09-1898), se deu na Rua Presidente Barroso, um dos raros logradouros que sobreviveram – ainda que parcialmente ou modificados – às grandes transformações urbanas da região, entre elas a abertura da Avenida Presidente Vargas, a partir de 1942, varrendo do mapa não só a Praça Onze como todo o casario de seu entorno, além de escolas, igrejas e toda a memória do local, habitado predominantemente por negros chegados ao Rio de Janeiro desde as últimas décadas do século 19, nas levas migratórias de escravizados libertos.

    A família de Heitor veio da Bahia, assim como a famosa Ciata e outras “tias” (quituteiras e ialorixás), com seus costumes, sua música e suas práticas religiosas, formando a “África em miniatura” onde se cria nosso personagem, acostumado aos saravás e rezas do povo de Zambi, como ele mesmo cantará em “Vamos brincar no terreiro”. Apelidado de Lino, é filho de D. Celi (a costureira Celestina Gonçalves Martins) e de Eduardo Alexandre dos Prazeres (marceneiro e clarinetista da banda da Guarda Nacional), que falece quando o menino está com sete anos.

    Ao sair para trabalhar, a mãe deixava o filho trancado em casa, como o próprio Heitor contou ao jornalista Muniz Sodré, na revista Manchete (08-10-1966). “Às vezes eu fugia e passava uma semana ausente”, relembra. “Acabei preso como vadio durante uma dessas evasões. Tinha 13 anos e permaneci mais de um mês no distrito.” Sem parar em escola nenhuma (“era expulso quase toda semana”), estudou até a quarta série do ensino fundamental, que concluiu no Externato Souza Aguiar, na Lapa, onde aprendeu o ofício de torneiro, uma das atividades profissionais que teve na infância/adolescência, além de engraxate e vendedor de jornais. Esta última ocupação, tão corriqueira entre meninos pobres no início do século 20, rendeu memórias que compartilharia num de seus grandes sucessos de compositor, a sofrida “Canção do jornaleiro”.

    Já na música e no carnaval sua principal referência foi o tio, Hilário Jovino Ferreira, que, nas horas vagas da rotina de carpinteiro no Arsenal de Marinha, era folião dedicado: ficou conhecido como fundador e líder de ranchos e blocos carnavalescos nos arredores da Praça Onze. “Um dia, meu tio”, relata Heitor, na mesma matéria da Manchete, “ganhou na rifa um cavaquinho. Pendurou-o na parede, por cima do piano. Com o cabo de uma vassoura eu o retirava e tocava, às escondidas. Aprendi sozinho.” Daqui por diante, o instrumento se torna companheiro em suas aventuras de samba e inspira composições como a ótima “Afine o cavaquinho”.

    É com ele que faz seu nome no bairro do Estácio entre os fundadores do bloco Deixa Falar – que entra para a história como “a primeira escola de samba” (1928). No convívio com Ismael Silva, Alcebíades Barcelos e outros músicos, participa da formatação de uma nova cadência de samba, mais descolada do maxixe e própria para se dançar na rua, como se pode perceber no seu “Sou eu que dou as ordens”.

    Sou eu que dou as ordens
    Pra escola de samba sair
    Sou eu quem abre a roda
    Pra moçada se divertir
    Lá no morro quando é noite de luar
    O samba é no terreiro até o sol raiar

    Mas fama mesmo veio longe dali, no arraial do santuário de Nossa Senhora da Penha, como ele contou na série Depoimentos para a Posteridade, do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro: “Eu fiquei conhecido a partir da festa da Penha”, disse Heitor ao MIS (01-09-1966). “Naquele tempo não tinha rádio, a gente ia lançar música na festa da Penha. A gente ficava tranquilo quando a música era divulgada lá, que aí estava bem.”

    Até que teve suas primeiras músicas lançadas em disco – só não contava que, nos rótulos das bolachas de 78 rpm, as composições estariam assinadas não por ele, mas por Sinhô, famoso artista da época, autodenominado “Rei do Samba”. Isso em 1927, quando Francisco Alves gravou “Ora vejam só” (que se chamava “Deixa a malandragem se és capaz”) e “Cassino Maxixe”, que faria mais sucesso com o nome de “Gosto que me enrosco” (e outra letra), conforme gravada por Mário Reis em 1928.

    “Protestei e começou, então, uma ruidosa polêmica”, contou a Muniz Sodré. “Como muitos outros sambistas da época, eu nem sempre tinha o cuidado de gravar as minhas composições”, complementou, antes de reconhecer a participação de Sinhô em “Gosto que me enrosco”: “O que é dele, mesmo, é a letra da segunda parte da música: ‘Gosto que me enrosco de ouvir dizer...’” Heitor dos Prazeres perguntou por que não teve seu nome creditado: “Ele se defendeu com a desculpa de que não sabia que a música era minha. Pensava que se tratasse de tema popular, sem dono.”

    Combinaram então uma compensação financeira pelos direitos autorais, mas, segundo Heitor, Sinhô “se esquivava aos pagamentos. Um dia, deu-me dez tostões. Muito tempo depois, oitocentos réis”. Até que, em 1930, a tuberculose levou a óbito o “Rei do Samba”, que, além da dívida em aberto, deixou para a posteridade uma frase lapidar, dita numa das respostas ao credor: “Samba é como passarinho: a gente pega no ar.” A fala, transcrita assim nas páginas da revista Manchete, às vezes é citada com uma variação: “Samba é que nem passarinho: é de quem pegar primeiro.”

    Seja como for, Sinhô ainda viveu a tempo de conhecer dois contra-ataques musicados de Heitor dos Prazeres em 1929: “Rei dos meus sambas”, que o próprio Sinhô manejou de evitar que fosse gravado com a letra original, e “Olha ele, cuidado”, lançado em disco na voz jocosa de Alfredo Albuquerque: “Eu fui perto dele / Pedir o que era meu / Ele com cinismo comigo / Chorava mais do que eu...”

    Curioso como, na fluidez autoral da época, o próprio reclamante acabaria sendo acusado de apropriação indébita de outro samba: “Vai mesmo”, que saiu num disco do cantor Mário Reis sem o nome de Antonio Rufino, que seria o verdadeiro autor do samba. A reclamação partiu de componentes da Portela – escola de samba de Oswaldo Cruz da qual Heitor havia se aproximado a convite de Paulo da Portela, um dos fundadores da agremiação, ao lado do próprio Rufino.

    Mesmo com a rusga (jamais contornada), Heitor tornou-se nome importante na história da Portela: foi com uma composição sua, “Não adianta chorar”, que a agremiação venceu o primeiro concurso entre escolas de samba (20-01-1929), promovido pelo pai-de-santo Zé Espinguela em seu terreiro no Engenho de Dentro. Heitor também está no repertório portelense como autor de sambas queridos pelos mais-velhos da escola, como “Cantar para não chorar” (dele com Paulo da Portela) e “Tristeza”, em parceria com João da Gente – apelido de Milton Morgado (não confundir com João Rodrigues de Souza, que também era conhecido por João da Gente e integrou a Velha Guarda da Portela). São também de sua autoria as três músicas gravadas por seu amigo Paulo da Portela como cantor – entre elas a embolada “Tia Chimba”.

    Mas a consolidação fonográfica de Heitor como compositor veio ao lado de Francisco Alves, que além da já citada “Cassino maxixe”, gravou outras seis composições de sua autoria, entre elas os sambas misóginos “Tu já foste boa” (1930) e “Mulher de malandro” (1932), esta última vencedora do concurso de músicas carnavalescas de 1932, com seus versos indefensáveis:

    Mulher de malandro sabe ser
    Carinhosa de verdade
    Ela vive com tanto prazer
    Quanto mais apanha a ele tem amizade
    (Longe dele tem saudade)

    Já dali a alguns carnavais veio a história da Colombina de pileque que perdeu a paciência com o “Pierrô apaixonado” e o mandou tomar “vermute com amendoim”: enredo da marchinha romântica em parceria com Noel Rosa que é, de longe, seu maior sucesso, com incontáveis regravações desde o primeiro registro, feito em 1936 pela dupla Joel e Gaúcho. Outra lembrança do Poeta da Vila na obra de Heitor dos Prazeres vem com a ótima (embora desconhecida) “Depois do cinema falado”, marcha-crônica de 1937 que remete a “Não tem tradução”, clássico de Noel lançado em 1933.

    Também em ritmo de marchinha é “Fulana grã-fina”, composição de Heitor que marca sua estreia fonográfica como cantor, num disco da RCA Victor de 1940 em dueto com Tudinha Silva que, na outra face, traz o samba “Vai vai”, também assinado por ele sem parceiro. Já com Herivelto Martins são dois sambas da mesma década gravados originalmente pelo Trio de Ouro: “Desperta, Dodô” (1945) e “Lá em Mangueira” (1943), este último ambientado no morro da Estação Primeira, outra grande escola de samba por onde sapateou Heitor, além das já citadas Deixa Falar e Portela.

    Por essa época, nosso compositor já era também pintor – atividade iniciada em 1937 (após a morte de sua primeira companheira, Glória) e pela qual se tornaria mundialmente conhecido. Com seu estilo pictórico único, retratou em sua obra visual inúmeras cenas da vida cotidiana do povo (em especial o povo negro), fosse no lazer, no trabalho ou no vaivém da cidade, às vezes tendo ao fundo o morro da Favela (atual morro da Providência), que Heitor via de seu ateliê, no segundo andar de uma casa de cômodos na Rua General Pedra (hoje desaparecida), e volta e meia lhe inspirava sambas como “Saudosa Favela”, que Aracy de Almeida gravou em 1940.

    És para mim um encanto
    Um panorama original
    És um lindo recanto, Favela
    Favela tradicional

    Com pincel e tinta, a arte de Heitor dos Prazeres correu o mundo mais do que com o samba. Foi da Bienal de Arte de São Paulo (1951) ao I Festival de Artes Negras, em Dakar, no Senegal (1966). Em Londres (1943), ao participar de uma mostra de arte latino-americana, recebeu elogios e teve um quadro comprado pela então princesa Elizabeth, futura rainha do Reino Unido. Depois, expôs em mostras coletivas em cidades diversas, como Paris (“Oito pintores ingênuos brasileiros”, 1965) e Moscou (“Pintores primitivos brasileiros”, 1966).

    Na exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”, realizada entre junho e setembro de 2023 no CCBB do Rio de Janeiro, os termos “naïf” (“ingênuo”) e “primitivo”, frequentemente atribuídos à arte de Heitor, são discutidos pela curadoria já no texto de apresentação. “Essa apreciação recorrente e tendenciosa desconsiderou a relevância do artista e de sua proposição e não atentou para o fato de Heitor ter sido um artista que refletiu e abordou visualmente sua contemporaneidade de uma perspectiva negra, urbana e brasileira”, sublinham os curadores Raquel Barreto, Haroldo Costa e Pablo Leon de la Barra na abertura da mostra.

    Heitor dos Prazeres no ateliê da Rua General Pedra / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    Já na década de 1950, lançou seus primeiros LPs, gravando sambas e macumbas com seu conjunto, Heitor dos Prazeres e Sua Gente, formado após a experiência do colega Ataulfo Alves (e Suas Pastoras). Em 78 rotações, a estreia do grupo se deu em 1954, num disco da Columbia com dois pontos de macumba assinados por ele: “Iemanjá” e “Cosme e Damião”. Segundo a revista Manchete (17-04-1954), formavam o conjunto Aluísio (voz e cabaça), Alfredo (voz e pandeiro), João (voz e tantã), Dodô (voz e violão) e coro feminino: Moema, Lair, Nadir, Vera e Maria Cacilda.

    A matéria informa ainda que Heitor trabalhava como contratado na Rádio Nacional, “onde se encontra há onze anos como ritmista, tendo por companheiros gente da velha guarda, como Bide e João da Baiana”, informa o texto assinado pelo repórter Paulo Medeiros. “Heitor começou no rádio em 1929, cantando na Rádio Educadora. Passou depois pela Rádio Clube, Rádio Phillips (Programa Casé).” Já na outra matéria da Manchete, publicada em 1966, o texto atualiza o currículo de Heitor, informando que trabalhou como tipógrafo, sapateiro, alfaiate, marceneiro e funcionário do Ministério da Educação.

    Sobre os ritmos do momento, a matéria informa que o veterano pintor e sambista “não vê motivos para agressões à chamada bossa nova, que, na sua opinião, é a evolução natural do samba, embora seja também mais fácil de executá-lo”, descreve o texto de Muniz Sodré, antes de trazer aspas do artista sobre o iê iê iê: “Não passa de um candomblé”, disparou o autor de “Nada de rock rock”, para quem o som dos Beatles e da Jovem Guarda “não passaria de uma cópia, com letras e orquestrações modernas, do ritmo e das melodias dos cultos de origem africana”.

    “Embora doente, Heitor dos Prazeres continua pintando e compondo com vigor impressionante”, informa o texto, com direito a uma interrupção para uma canja do entrevistado, relembrando os primeiros versos de “Carioca boêmio”, lançamento de Orlando Silva em 1945.

    Eu sou carioca,
    Boêmio sambista,
    Meu sangue é de artista
     E não posso negar.
    Vivo alegre,
    Sou contra a tristeza
    E levo a vida
    Feliz a cantar!

    Quando a edição da Manchete chegou às bancas de jornal, em 8 de outubro de 1966, já se iam quatro dias desde a morte de Heitor (04-10-1966), aos 68 anos, vitimado por um câncer no pâncreas. Seu corpo foi sepultado no Cemitério do Caju, zona norte do Rio de Janeiro, acompanhado por centenas de fãs e amigos que em sua homenagem entoaram “Pierrô apaixonado” e outras músicas de sua autoria. O companheiro de expediente no Ministério da Educação Carlos Drummond de Andrade, grande admirador de suas obras visuais e musicais, dedicou-lhe um poema de despedida, do qual lembramos a segunda e a terceira estrofes.

    Por tua pintura e música
    passa um fluido de poesia.
    Poesia das coisas simples.
    Unidas em melodia.

    O pierrô apaixonado
    e a sambista da Mangueira.
    Saudosos, aqui ao lado.
    Celebram-te a noite inteira.

    Além de quadros em coleções pelo mundo, da obra de Heitor dos Prazeres ficam registros musicais como os da Discografia Brasileira (115 como compositor, dez como intérprete e cinco como acompanhante) e os três LPs que lançou: “Macumba” (Rádio, 1955), “Heitor dos Prazeres e Sua Gente” (Todamérica, 1957) e “Macumbas e candomblés” (Philips, 1964). E ainda o curta-metragem “Heitor dos Prazeres”, documentário imperdível feito em 1965 por Antônio Carlos da Fontoura.

    Foto principal: Heitor dos Prazeres no Palácio Gustavo Capanema, antiga sede do Ministério da Educação / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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