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    Muito prazer, Jackson do Pandeiro: há 70 anos, o Brasil entrava no ‘fuá’ de ‘Sebastiana’ e ‘Forró em Limoeiro’

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Foi em meados da década de 1940 que José Gomes Filho virou Jackson do Pandeiro – o nome artístico que os ouvintes da Rádio Jornal do Commercio, do Recife, se acostumaram a ouvir na voz do locutor Ernani Séve. Isso depois de outros quase-nomes experimentados pelo novato, como Zé Jack, José Jackson e Jack do Pandeiro – tudo por causa de ator estadunidense Jack Perrin, estrela dos filmes de faroeste que o jovem Zé não perdia. Assim, quando decidiu virar artista, o ex-engraxate e padeiro nascido em 1919, em Alagoa Grande (e criado em Campina Grande, também na Paraíba), escolheu ter o nome do ídolo, no fim das contas adaptado para Jackson.

    Um nome que já remexia paraibanos e pernambucanos quando o resto do Brasil começou a saber dele. Isso em 1953, ano-chave pro nosso herói, já então pandeirista renomado (desde 1944, quando começou na Rádio Tabajara de João Pessoa), embora já tivesse atacado também de baterista e cantor – desde 1948, no Recife, como contratado da já citada Rádio Jornal do Commercio. Mas sucesso, que é bom... nada. Até que a emissora pernambucana escalou Jackson no elenco do espetáculo carnavalesco “A pisada é essa”, no qual seriam apresentados – a partir de 17-01-1953 – as novidades musicais para a folia daquele ano.

    Jackson estava pronto pra cantar alguma marchinha ou samba (sua especialidade), mas não era a ideia do diretor da rádio: “Você vai cantar aqueles cocos, pois isso aqui é uma revista mista e tem que ter de tudo”, contou Jackson a Grande Otelo num programa da TVE, nos anos 1970. Inicialmente torceu o nariz, mas se aliviou ao lembrar de sua mãe, D. Flora Mourão, cantando cocos na feira de Alagoa Grande, com ele mesmo, miudinho que só, marcando o ritmo no ganzá. Lembrou-se também do amigo Rosil Cavalcanti, funcionário público que estava mais para as atividades boêmias do que para as tradições de sua abastada família pernambucana.

    De pele branca, havia formado com o cafuzo Jackson do Pandeiro a dupla Café Com Leite, que apresentava números humorísticos na Tabajara de João Pessoa. A camaradagem seguiu mesmo depois que o dueto se desfez, com a ida do pandeirista para o Recife, em 1948, Rosil sempre dando seu jeito de mostrar suas novas composições ao amigo. Veio daí a ideia de Jackson para a “revista mista” da Rádio Jornal do Commercio: cantaria o coco “Sebastiana”, breve crônica bem-humorada que estava destinada a ser mais um número do show – ainda mais com o acompanhamento típico (violão, sanfona, tantã, afoxé), mais simples do que as orquestras que tocariam marchinhas e sambas.

    Convidei a cumáde Sebastiana
    Pra dançar e xaxar na Paraíba
    Ela veio com uma dança diferente
    Que pulava que só uma guariba
    E gritava: A, E, I, O, U... Ypsilone!

    Mas o número veio com surpresas: ao lado de Jackson estava Luiza de Oliveira, experiente radioatriz, devidamente ensaiada por ele para cantar o último verso do refrão. Ele só não contava que, além do combinado, a companheira de cena também faria a tal dança da guariba – espécie de primata comum no Nordeste brasileiro (o que, muitas décadas depois, será entendido como um traço racista da música). Além disso, Luiza surpreendeu o cantor, dando-lhe uma umbigada em plena cena – e levando o troco de Jackson na repetição da música, para o delírio do auditório superlotado.

    “Não prestou”, contou Jackson a Grande Otelo. “Foram 29 noites em que cantamos três vezes ‘Sebastiana’. Não deu mais nada no carnaval de Pernambuco: nem frevo, nem marcha. Era só ‘Sebastiana’.” O sucesso foi tanto que a emissora, já na quinta noite da temporada, decidiu mudar o nome do espetáculo, que agora se chamaria “A, E, I, O, U... Ypsilone!”

    Quem se apressou foi o empresário e compositor Genival Macedo, representante da Harpa, selo fonográfico criado pela gravadora Copacabana para arregimentar e gravar novos talentos da música nordestina. Passado o carnaval, foi ao Rio de Janeiro contar de Jackson e “Sebastiana” a Vittorio Lattari, diretor artístico da Copacabana, pois queria recrutar o artista para seu selo. Surpreendeu-se que o chefão não só já tinha ouvido falar de Jackson, como estava decidido a lançá-lo nacionalmente, pulando o estágio na subsidiária: estava autorizada a gravação de cinco discos de 78 rotações na Copacabana!

    Só que Jackson, de novo, torceu o nariz: como ia assinar contrato com quem nem conhecia? Mesmo que fosse um dirigente de gravadora propondo seus primeiros discos de carreira, de jeito maneira. Com a intermediação de Genival Macedo, ficou garantida a autonomia de Jackson sobre a escolha do repertório, todo gravado em meados de 1953 (mais um marco deste ano), no Recife. Das dez gravações desta leva, coube também ao cantor escolher as duas que estariam em seu primeiro disco lançado: qual delas estaria do outro lado de “Sebastiana”?

    A escolha foi por “Forró em Limoeiro”, o rojão que também se tornaria número obrigatório no repertório de seus shows dali pra frente. Na entrevista a Grande Otelo, Jackson disse que “tinha ido inaugurar uma estação (de rádio) em Limoeiro (cidade do agreste pernambucano). Aí eu cheguei e estava uma letrinha pronta. Eu só fui botar a melodia em cima da letra e cantar.”

    A história é completamente diferente no relato do próprio compositor, Edgar Ferreira, que ao Diário da Noite (22-06-1956) diz que ela começou “no Recife, aí por volta de 1953”. O cantor Blecaute estava na cidade e, durante uma apresentação na (sempre ela!) Rádio Jornal do Commercio, teria encomendado uma música a Edgar: “Eu queria um troço diferente, uma música que não fosse igual a essas coisas todas que andam por aí.” O compositor trouxe a música pronta dali a dois dias, mas Blecaute voltou para o Rio de mãos vazias – disse a Edgar que, caso se interessasse no futuro, pediria a ele a letra e a partitura de piano.

    Jackson observava de longe a conversa e, assim que Blecaute se afastou, pediu a Edgar para cantar o rojão – adorou e ficou em cima, como descreve a mesma reportagem do Diário da Noite: “Tempos depois foi que Jackson do Pandeiro disse a Ferreira: ‘Afinal, velho, o Blecaute não gravou aquele rojão não? Se você quiser eu canto.’” No sábado seguinte, a música já era estreada – e com sucesso – num programa de auditório da emissora. “Antes mesmo de gravar o povo de Recife já cantava pelas ruas.”

    Eu fui pra Limoeiro
    E gostei do forró de lá
    Eu vi o caboclo brejeiro
    Tocando a sanfona, entrei no fuá

    Compositor importante na discografia de Jackson, o recifense Edgar Ferreira é também um personagem e tanto: analfabeto até os 24 anos, começou a compor e criar versos aos 15. Quando foi demitido da fábrica onde trabalhava como operário (sua atividade sindical era incompatível com a rédea curta do patrão), passou a se sustentar vendendo cordéis em feiras e no Largo da Paz, até que numa dessas cruzou com Jackson, principal intérprete de suas composições – “Um a um” e “Vou gargalhar” são outros sucessos de sua autoria lançados pelo Rei do Ritmo.

    Estavam definidas, assim, as duas músicas do disco de estreia de Jackson: o 78 rotações de número 5155 da gravadora Copacabana teria “Forró em Limoeiro” no lado A e “Sebastiana” no B. Ambas com acompanhamento do conjunto do sanfoneiro Gaúcho, o mesmo que havia acompanhado Jackson na revista carnavalesca do início do ano.

    “Uma música que falava de Limoeiro, em Pernambuco, e outra que mencionava a Paraíba. Ambas enfocando mulheres: a ‘dona Zezé’ e a ‘cumade Sebastiana’. As duas envolvidas com música, com dança, com pagode, com xaxado, com gafieira, com forró”, assinalam Fernando Moura e Antônio Vicente na ótima biografia “Jackson do Pandeiro: o Rei do Ritmo” (Editora 34, 2001). “Músicas que fundiam – e até confundiam – os dois estados vizinhos, irmãos culturais, siameses folclóricos.”

    O 78 rotações chegou às lojas em outubro de 1953 e a imprensa adorou: já em novembro a Revista do Disco classificava as “duas músicas populares e bem do gosto da população brasileira” como “dois sucessos garantidos”. “Não se precisa dizer mais nada para provar a popularidade do cantor paraibano.” Já a edição de janeiro de 1954 da revista Radiolândia destaca o quanto “o incrível e endiabrado Jackson do Pandeiro” já era querido pelo público nordestino antes de ser conhecido no Rio de Janeiro, com “seus números verdadeiramente sensacionais e fora do comum”.

    Logo depois foi a vez da Revista do Rádio (06-02-1954) publicar um perfil do artista, atendendo aos leitores que perguntavam, “com insistência, a respeito do criador do atual sucesso de vendagem no Rio de Janeiro”. O texto o apresenta como “um rapaz modestíssimo” que “em breve tornou-se o mais popular intérprete do Nordeste”. “Dizem que vê-lo cantar é uma delícia. Tipo para palco ou televisão.” Na Carioca (28-08-1954), o colunista Claribalte Passos é outro que o descreve como uma “criatura modesta”, mas de “recursos interpretativos sensacionais”. E elogia sua franqueza: “Nunca traiu a mais nobre qualidade do homem do Nordeste: a sinceridade.”

    Assim, não foi espanto para ninguém quando a coluna Discolândia, da revista A Noite Ilustrada (19-01-1954), o elegeu a “Revelação Masculina em Disco”, pelos primeiros e – hoje podemos dizer – eternos sucessos lançados há exatos 70 anos. E mesmo depois da morte de Jackson (em 1982, aos 63 anos incompletos), o rojão e o coco foram muito regravados na música popular brasileira. “Forró em Limoeiro”, por exemplo, foi de Marinês e Dominguinhos (1998) a Silvério Pessoa (2015), Mastruz com Leite (1996) e Turíbio Santos (1989), em cujo violão emendou também “Sebastiana”, a “cumade” que caiu em bocas como as de Gal Costa (1969), Baby do Brasil (1980), Lenine (1998) e até Xuxa Meneghel (1997).

    Foto: Jackson do Pandeiro em reprodução da internet.

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