Pode-se dizer que a era do rádio foi também a era dos discos de 78 rotações. E não só porque ambos – o meio e o suporte – foram decisivos para a consolidação da música brasileira como produto comercial, vendável, especialmente a partir da década de 1930. Ou porque brotaram do mesmo tronco: os inventos seguidos do século 19 que viabilizaram as primeiras gravações e transmissões sonoras. Ou ainda porque era através deles que o público ouvia seus ídolos da música, de Orlando Silva a Angela Maria, de Jararaca e Ratinho a Pixinguinha, de Carmen Miranda a Ary Barroso.
Este último, além de tantas composições de sucesso (todas lançadas em 78 rpm), entrou para a história também como estrela do rádio – narrando futebol, apresentando calouros e tocando seu piano, primeiro na Rádio Tupi e depois na Nacional. Não à toa, o dia 7 de novembro (quando nasceu, em 1903, em Ubá/MG) foi transformado em Dia do Radialista em 2006 – embora a categoria já tivesse seu dia (21 de setembro) desde 1943, quando o então presidente Getúlio Vargas assinou a lei estabelecendo o piso salarial para os profissionais da área.
Ary Barroso ao microfone. Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS
Para animar ainda mais o calendário, soma-se às duas datas comemorativas uma terceira, o Dia do Rádio, festejado em 25 de setembro, quando nasceu (em 1884) o médico e professor Edgard Roquette-Pinto, fundador da Rádio Sociedade do Brasil, considerada a pioneira do país, em 1923. Se bem que há marcos anteriores como a fundação da Rádio Clube de Pernambuco (em 1919) e ainda uma transmissão de 1899, realizada pelo padre-cientista gaúcho Landell de Moura. Uma história heroica e complexa destrinchada pela jornalista Helena Aragão, num especial imperdível escrito e apresentado por ela na Rádio Batuta.
Seja como for, uma data indiscutivelmente decisiva nesta cronologia é 1º de março de 1932: é deste dia o decreto de Vargas autorizando a publicidade nas transmissões radiofônicas – só então, com o início da radiodifusão comercial, o rádio começa a se tornar verdadeiramente popular, trocando as infindáveis aulas, palestras e conferências que edificavam sua audiência por uma grade verdadeiramente atrativa e, principalmente, sustentável.
Com as emissoras investindo em programação e elenco, o rádio já pode cruzar o espaço azul (com suas canções e também novelas, noticiários, programas de auditório, ginástica...) “reunindo num grande abraço corações de norte a sul”, como sintetizaram os experts Lamartine Babo, João de Barro e Alberto Ribeiro em “Cantores de rádio”, a marchinha-hino gravada por Carmen e Aurora Miranda em 1936. Dois anos depois, outro hino – este um samba gravado por Carmen, sozinha – contava a chegada de um rádio no morro e o poder magnético do aparelho, como escreveu Herivelto Martins em “Meu rádio e meu mulato”.
E a vizinhança pouco a pouco vai chegando
E vai se aglomerando o povaréu lá no portão
Mas quem eu queria não vem nunca
Por não gostar de música e não ter coração
É possível que quisessem ouvir música ou programas de humor, como tantos que fizeram história no rádio. Como o famoso “Balança mas não cai”, uma criação de Paulo Gracindo e Max Nunes que fez sucesso tanto na Rádio Nacional (na década de 1950) quanto na TV Globo (a partir de 1968). Tinha também Mário Lago escrevendo “Doutor Infezolino”, o mesmo de registros como “Na casa do Infezolino”, interpretado pelo ator Osvaldo Elias. Outro clássico do humor no rádio foi “PRK-30”, programa que estreou em 1946 e era produzido e apresentado pela dupla Castro Barbosa e Lauro Borges. Este último pode ser ouvido aqui na Discografia Brasileira em números musicais como a marchinha “Dona Boa”, que interpreta como o personagem-título do humorístico “Piadas do Manduca”, mais um grande sucesso do rádio nos anos 50, este com texto de Renato Murce.
Outro mestre do humor radiofônico que deixou registros em 78 rotações é Gino Cortopassi, que era famoso por suas paródias, mas aqui é lembrado por outra criação de sua autoria: o personagem português Zé Fidélis, que ele interpretava em números como a “Irradiação do casamento”. Nele, o humor se encontra com outra paixão popular potencializada pelo rádio, o futebol, capaz de reunir as massas não só nos estádios mas também em torno de aparelhos. A menos que o horário do jogo coincidisse com o da novela, haja vista a queixa recorrente dos marmanjos em sambas divertidos como “O direito de nascer” e “Mais um episódio”. Em ambos, a bronca é com um dos grandes sucessos – se não o maior – da história do rádio brasileiro: “O direito de nascer”, novela do cubano Félix Caignet que estreou em 1951, na Rádio Nacional, e bateu todos os recordes de audiência.
Outro capítulo importante do rádio brasileiro são os programas de auditório, que tiveram o ápice de sua popularidade na virada dos anos 1940 e 50, impulsionados principalmente pelos concursos de rainha do rádio e a consequente rivalidade entre os fã-clubes de Marlene e Emilinha, entre outras postulantes à coroa. O clima inspirou novas queixas, como no samba “Procura-se uma mulher” (“É triste um fim-de-semana sem a mulher em meu lar”) e na marchinha “Fanzoca de rádio”, sobre a funcionária que só quer saber da Revista do Rádio (“Enquanto isso na minha casa ninguém me arranja uma empregada”). No mesmo contexto, as fanzocas passaram a “macacas de auditório” no olhar desavergonhadamente racista de parte da crônica, devidamente rebatida na marcha “Resposta da fanzoca”. Já no baião “Torcida organizada”, a bronca vira denúncia, muito embora sorridente:
Quando o meu nome o speaker anunciar
Todo mundo vai gritar: ‘É o maior!’
Porque é moda aqui no Rio de Janeiro
O artista dar dinheiro pra ter fama de melhor
Felizmente, entre os registros que ficaram de cantoras e cantores da era do rádio prevalece o talento dos que souberam “emocionar sentidos”, “acarinhar ouvidos” e “fazer vibrar corações”, como nos versos do fox “Cantor do rádio”, escritos por Paulo Roberto – grande radialista, criador de programas como “Nada além de dois minutos”, “Gente que brilha” e outros, todos na Nacional – sobre melodia de Custódio Mesquita. Pois, além das incontáveis gravações que deixaram, as grandes vozes da época também foram retratadas em divertidas gravações de duplas caipiras, como Tonico e Nhô Fio, no “Leilão dos cantô de rádio”, e Alvarenga e Ranchinho, na “Moda dos cantores”. Destes é também a “Moda dos Ispique”: galeria dos principais locutores da época (os speakers, como se dizia) na qual a dupla imita vozes e lista características de seus colegas do rádio.
A quem não souber a resposta da charada que está no fim da moda – quem é o “ispique” que sopra uma gaitinha sempre que sai um gol? – recomenda-se ouvir Carmen Miranda cantando o ótimo “Deixa falar”, samba de Nelson Petersen que é aberto com uma participação especial dele, Ary Barroso, o próprio compositor-radialista, narrando dois lances de um match entre Brasil e a antiga Tchecoslováquia. E é bom que se diga que das 490 ocorrências do nome do compositor e pianista Ary na busca da Discografia Brasileira (472 como autor, 18 como intérprete), são raras as vezes em que se ouve sua voz. A outra gravação é a do “Laboratório Fandorine”, spot publicitário de 1940 em que o próprio artista convida a/o ouvinte a completar um samba de sua autoria.
Aproveitando o ensejo, é hora de uma pausa neste texto para dois reclames que nos trazem mais vozes importantes da radiofonia brasileira: primeiro vem o trio formado pelo ator-apresentador Paulo Gracindo, o locutor Rubens Amaral e a atriz e cantora Zezé Fonseca anunciando que o “Sabonete Carnaval” vem “recheado com moedas de dois cruzeiros!” Depois tem Manoel Barcelos dizendo que só a “Pasta Lever S. R.” contém “o famoso sódio ricinoleato, que protege a gengiva e, assim, assegura a vida dos dentes”. Estrela da Tupi, da Globo e da Nacional, o gaúcho Barcelos comandou um dos grandes programas de auditório do rádio, tendo como principal rival o cearense Cesar de Alencar, popularíssimo animador de auditório que também atacou de cantor – aqui na Discografia Brasileira são 61 ocorrências, entre elas a marchinha “Tá chato”, de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti.
Rádio Nacional: auditório lotado para ver Luiz Gonzaga no Programa Cesar de Alencar.
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS
Também de Caldas e Cavalcanti é a marchinha “Vesúvio”, que traz o registro vocal de outro famoso animador de auditório: o pernambucano Abelardo Barbosa, o Chacrinha, que marcou época na Rádio (e depois da TV) Tupi, além das TVs Record, Bandeirantes e Globo. O time de apresentadores-cantores que gravaram em 78 rpm se completa com Henrique Foréis Domingues, o popular Almirante, que, além de intérprete (201 ocorrências na Discografia Brasileira) e compositor (51 ocorrências), foi um pesquisador fundamental da música popular brasileira. Aqui, ele se junta a um trio estrelado para interpretar o cateretê “As cinco estações do ano”: Lamartine Babo (autor da música), Mário Reis e Carmen Miranda. A Almirante coube cantar a última das cinco estrofes, dedicadas às principais emissoras do país naquele 1933 – a Educadora (de 1927), a Philips (1930), a Mayrink Veiga (1926), a já citada Sociedade (1923) e a Rádio Clube do Brasil (1924):
Sou Rádio Clube
Eu sou é homem, minha gente
Francamente eu sou do esporte
Futebol me põe doente
Do galinheiro
Se irradio para o povo
Cada gol que eu anuncio
A galinha bota um ovo
Depois ainda seriam fundadas outras grandes emissoras do país, como a Tupi (em 1935), a Nacional (em 1936, estatizada pelo governo Vargas em 1940) e a Globo (em 1944), provando a popularidade crescente do rádio nas décadas de 1930 e 40. Outra evidência desta consolidação são as inúmeras músicas lançadas nesta época sobre o rádio – como as selecionadas neste post – ou fazendo referência a ele, como “P. R. Você”, a marchinha romântica toda com metáforas radiofônicas. Seu lançamento em disco, em outubro de 1937, foi feito pelo cantor de maior sucesso da era do rádio, Francisco Alves, não à toa conhecido como “O Rei da Voz” – um dos tantos epítetos criados pelo Cesar Ladeira, que dirigiu a Rádio Mayrink Veiga e é outro nome obrigatório nesta história.
Contratado em 1941 pela Rádio Nacional, Francisco Alves foi o maior cartaz da emissora (e do rádio brasileiro) até sua morte, em setembro de 1952. Neste período, comandou com sucesso o programa semanal Quando os Ponteiros se Encontram, que era apresentado aos domingos e servia de plataforma para o lançamento de novos sambas, marchinhas, valsas, foxes, canções estrangeiras e o que mais o cantor estivesse para gravar em disco. E embora fosse ao ar ao meio-dia (daí o nome do programa), seu prefixo era “Boa noite, amor”, a valsa de José Maria de Abreu e Francisco Matoso que se tornou um dos maiores sucessos de Francisco Alves e com a qual encerramos nosso programa, digo, post.
Boa noite, amor
E sonha enfim
Pensando sempre em mim
Na caricia de um beijo
Que ficou no desejo
Boa noite, meu grande amor
Foto principal: um aparelho antigo de rádio por Garten GG / Pixabay