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    Grande Otelo, 30 anos depois: além de tudo, ainda fez samba!

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    “Otelo foi o primeiro negro que fez cinema e teatro musicado no Brasil. Abriu as portas para todos nós e deveria ser venerado por todos os artistas. (...) Foi uma notícia muito triste, mas eu fico contente porque ele morreu no auge, com uma boa imagem, procurando fazer novos trabalhos. Ele não acabou como um velho abandonado.”

    Assim a atriz Ruth de Souza homenageou Grande Otelo na edição da Tribuna da Imprensa que noticiava a morte do grande ator, há 30 anos (26-11-1993), em Paris. Faleceu de um colapso cardíaco na enfermaria do Aeroporto Charles De Gaulle, onde desembarcava para ser homenageado no Festival dos Três Continentes, em Nantes, a 380 quilômetros da capital da França. O corpo chegou ao Brasil em 29 de novembro, sendo sepultado no dia seguinte em Uberlândia (MG), local de nascimento do artista, em data (18 de outubro de 1915) definida pelo próprio: “Antigamente eu festejava no dia 5 de outubro”, contou Otelo ao programa Luz, Câmera (TV Cultura, 1975). “Depois eu me registrei e fiz o meu nascimento pelo batistério, pelo dia que fui batizado: 18 de outubro.”

    O próprio nome civil do filho mais ilustre de Uberlândia – à época São Pedro de Uberabinha – também foi escolhido por ele, que nasceu Sebastião Bernardo da Costa e assim permaneceu até 1939. Foi nesse ano que, aproveitando um decreto assinado pelo presidente Getúlio Vargas (que permitia às pessoas fazerem o próprio registro de nascimento, desde que apresentassem duas testemunhas), rebatizou-se: virou Sebastião Bernardes de Souza Prata. O primeiro sobrenome homenageava o ex-presidente Arthur Bernardes, de quem era fã; Souza vinha da mãe, Maria Abadia; e Prata, da família do fazendeiro Julio (bisavô do escritor Mário) Prata, com quem seu pai, Francisco Bernardo, viveu e se criou.

    Menino espevitado e espirituoso, Bastiãozinho estava por volta dos oito anos quando começou a se apresentar no circo, num quadro cômico em que interpretava a mulher do palhaço. As sessões de cinema – que não perdia, a cada nova fita que chegava a São Pedro de Uberabinha – ampliaram sua capacidade interpretativa, especialmente depois de dois filmes que o marcaram pela vida toda: O garoto” (“The kid”, de Charles Chaplin, em 1921) e “Os batutinhas” (“Our gang”, série de pequenos episódios de comédia, em 1922). Até que a atriz-cantora Abigail Parecis, de passagem pela cidade, viu o menino em cena e o levou com ela pela estrada. Ao contrário da lenda, de que o menino “fugiu com o circo”, o próprio Otelo contou mais de uma vez que sua partida foi devidamente autorizada pelos pais.

    Vai morar em São Paulo, onde é matriculado em colégios particulares – primeiro na Escola Modelo Caetano de Campos, depois no Colégio Sagrado Coração de Jesus. Nas horas vagas, acompanhava Abigail nos estudos de canto que fazia na Ópera Lírica Nacional. “Numa tarde, o maestro experimentou a minha voz”, contou no programa Roda Viva, da TV Cultura (15-06-1987). “Ele me viu pretinho, pequenininho – a minha voz era de tenorino – e ele achou que quando eu crescesse eu cantaria o ‘Otelo’. Seria o physique du rôle autêntico: negro grande e tal. Cheguei a cantar alguns trechos do ‘Otelo’ transpostos pro meu tom. Mas eu não cresci.” Acabou gostando tanto do apelido que passou a assinar-se Otelo nos documentos escolares.

    E assim também foi no teatro: virou “o Pequeno Otelo” da Companhia Negra de Revistas, a trupe toda formada por artistas negros, entre eles Pixinguinha (diretor musical) e seu fundador: o cantor, ator e dramaturgo baiano De Chocolat (João Cândido Ferreira, 1887-1956). Brilhou na revista “Tudo preto” (grande sucesso de 1926) e, logo depois, veio a promoção no nome artístico. “Foi em 1927, quando vim para o Rio de Janeiro, que a crônica daqui, não sei por intermédio de quem, passou a me chamar de Grande Otelo”, contou em seu depoimento para a posteridade no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, conforme publicado no livro “Consciência negra” (MIS Editorial, 2003).

    Já com a Companhia de Jardel Jércolis, excursionou a Montevidéu e Buenos Aires e conheceu aquele que seria definido como “meu mestre”: o ator Mesquitinha (Olympio Bastos, 1902-1956), que mais adiante, como diretor do filme “João Ninguém” (1936), promoveria a estreia de Otelo em sua principal arte, o cinema. Só depois formou a famosa dupla com Oscarito, com quem estrelou incontáveis chanchadas da Atlântida, como “Carnaval no fogo” (Watson Macedo,1949) e “Dupla do barulho” (Carlos Manga, 1953), esta última sua preferida, mesmo acima de outros trabalhos marcantes, como em “Rio Zona Norte” (Nelson Pereira dos Santos, 1957), “O assalto ao trem pagador” (Roberto Farias, 1962) e seu maior sucesso, “Macunaíma” (Joaquim Pedro de Andrade, 1969).

    Não à toa, o cineasta estadunidense Orson Welles (1915-1985), depois de vir ao Brasil para filmar o inacabado “It’s all true” (1942), jamais esqueceu seu talento. “Uma vez, no Festival de Berlim, ele me disse que você era o maior ator que ele já havia conhecido, o maior ator do mundo”, afirmou o diretor de cinema Paulo César Sarraceni no supracitado depoimento de Otelo ao MIS. “Eu vi com que admiração e com que lembrança e saudade ele falou de você.” No mesmo registro estão também memórias da rotina puxada que viveu nos cassinos, primeiro o Atlântico e depois o da Urca (“Aí começou a exploração!”), onde protagonizou duetos marcantes com divas como Déo Maia e até a estadunidense Josephine Baker.

    Com tantos feitos no teatro e no cinema, não espanta que a música seja, quase sempre, lembrada de forma discreta nas entrevistas e textos biográficos sobre Grande Otelo. Fala-se de seu maior sucesso de compositor, “Praça Onze”, em parceria com Herivelto Martins – que na verdade transformou em samba um manifesto em versos escrito pelo amigo, indignado com a notícia de que a praça, tão querida pelos sambistas, seria demolida para dar passagem à Avenida Presidente Vargas. O samba, vencedor do concurso de músicas carnavalescas de 1942 (empatado com “Ai, que saudade da Amélia”), ainda deu origem no ano seguinte a dois spin-offs com o mesmo parceiro: os sambas “Bom dia, avenida” e “Mangueira, não”.

    Na obra do Otelo compositor há outras charges históricas, como três ambientadas na Segunda Guerra Mundial: a ufanista “Desperta Brasil”, de 1942, a bem-humorada “Abaixo o chope” (com Alvarenga) e a romântica “A pátria está te chamando”, essas duas de 1943. Já a construção de Brasília suscitou, em fins de 1957, a história do sujeito que, atendendo ao chamado de JK, disse “Adeus Mangueira” e mudou-se com a família para o Planalto Central. Neste samba, seu parceiro é novamente Herivelto Martins, o mais constante em sua obra, co-autor de outras composições de destaque de Grande Otelo, entre elas duas lançadas por Dircinha Batista: o samba-exaltação “Cidade velha” e o lacrimoso samba-canção “Vida vazia”.

    Irmã de Dircinha e colega de Grande Otelo no Cassino da Urca, Linda Batista comparece a esta seleção musical dando voz aos contra-ataques femininos de “Vitória amarga” (dele com Popeye do Pandeiro) e “Os direitos são iguais” (de Otelo sozinho). Já Emilinha Borba, nem aí para a sororidade, oferece o ombro a um certo João contra o “palpite infeliz” de uma tal Beatriz, como assinam Otelo e Garoto (apelido de Aníbal Augusto Sardinha) em “O outro palpite”. Periga o moço ser o mesmo marmanjo sofrido que, num outro samba (em parceria com Constantino Silva, o Secundino), não vê outra saída para curar-se “de um infeliz amor” senão decretar: “Vou pra orgia”.

    Além das questões conjugais, há espirituosas crônicas cariocas entre os sambas de Grande Otelo. Como a “Rainha da Lapa”, protagonista de versos libertários na voz feminina (“Sou feliz, vivo bem / Não devo e não pago nada a ninguém”), como no samba de Otelo com Rubens Silva em 1951. Já o samba “Couro de gato” (dos dois com Popó, em 1954), sobre o bicho que “não é mais gato, hoje é tamborim” – para a alegria do eu-lírico da letra – não chegou com a mesma boa forma ao século 21. Mais felizes são o bem-humorado “Rosalina mudou” (com Darci de Oliveira) e a exaltação a “Botafogo”, o bairro, composta (sem parceiro) e cantada por Otelo.

    O cantor Grande Otelo, aliás, também se faz presente na Discografia Brasileira: são 16 as ocorrências de seu nome neste campo da busca, entre elas a batucada “Já tenho compromisso” (Carvalhinho e Romeu Gentil), lançada em disco para o carnaval de 1945, e “Mulheres à vista”, marcha dedicada ao filme de mesmo nome (dirigido por J.B. Tanko) que o próprio Otelo compôs – em parceria com Bebeto – e gravou em dueto com a atriz Vera Regina. Já em dueto com Aurora Miranda gravou uma autêntica cena cantada, dividindo com ela a interpretação “Paulo, Paulo”, samba-choro do pianista Oswaldo Chaves Ribeiro, o Gadé.

    No entanto, o ponto alto de sua discografia como cantor é o 78 rotações 80-0394 que a Victor lançou em abril de 1946. Nele estão duas gravações humorísticas em que o ator põe em prática não só seu talento para a comédia, como também a capacidade de falar línguas estrangeiras – no caso, o francês na canção “Avec vous madame” (Vicente Paiva e Luís Peixoto), no lado A, e o espanhol no B, no qual interpreta uma paródia do famoso tango “Mano a mano” (Gardel, J. Razzano, E. C. Flores), que há tempos já lhe rendia os mais calorosos aplausos no teatro.

    Já na televisão fez aparições marcantes na memória de seu público, especialmente a partir da década de 1970. Como na TV Educativa (hoje TV Brasil), onde comandou programas como Os Astros e Quando Conheci Seu Pai. Já na Globo, onde assinou seu primeiro contrato em 1966 e trabalhou até o fim da vida, com papeis em novelas diversas (como “Sinhá Moça”, “Mandala” e “Renascer”, entre outras) e em humorísticos como a “Escolinha do Professor Raimundo”. Pois em seu último ano de vida, não bastassem as múltiplas frentes artísticas, ainda estrou em mais uma: virou escritor, com o lançamento de “Bom dia, manhã – poemas” (Ed. Topbooks, 1993), prefaciado pelos colegas Jorge Amado e Antônio Olinto.

    “A poesia dele se assemelhava à dos trovadores e menestréis da Idade Média”, definiu Olinto à Tribuna da Imprensa (27-11-1993), entre os depoimentos reunidos no obituário do artista. “Otelo era o maior ator do Brasil. Além disso, representava o povo como ninguém. Miúdo e pobre, mesmo assim driblou estas desvantagens e saltou para o sucesso. Ninguém representava tão bem o espírito do brasileiro nos últimos 50 anos.”

    Foto: Reprodução da internet

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