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    Golaços de Lamartine Babo: há 80 anos, o futebol carioca ganhava seus hinos populares

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    No calendário musical de 2024, é Lamartine Babo quem abre a galeria de memórias no dia 10 de janeiro, quando se completam 120 anos de seu nascimento – na Rua Teófilo Otoni, no Centro do Rio de Janeiro. Curiosamente, na mesma data há outro marco importante não só da trajetória do grande compositor, como também – e sobretudo – do futebol e da música popular brasileira. Foi no dia 10 de janeiro de 1944, portanto há exatos 80 anos, que pela primeira vez foram tocados em público os hinos dos clubes de futebol do Rio de Janeiro – parte fundamental da grande obra autoral de Lamartine, ainda hoje lembrada nas arquibancadas dos estádios e nas transmissões de TV e rádio, a cada troféu que é conquistado.

    Pois foi no Teatro João Caetano, um dos mais tradicionais da cidade, que se deu esta primeira audição pública dos hinos, no dia em que Lamartine Babo comemorava seus 40 anos de idade. Naquela noite, o palco histórico da Praça Tiradentes recebeu o espetáculo “Até breve, Rio”, com o qual o Trem da Alegria se despedia das plateias cariocas antes de uma temporada em São Paulo. No ar desde abril de 1943, o Trem da Alegria era um programa de variedades que Lamartine apresentava junto com o também compositor e radialista Héber de Bôscoli e com a atriz Yara Salles na Rádio Nacional. Pela magreza dos três, eram conhecidos como “Trio de Osso”, numa referência ao famoso Trio de Ouro, de Herivelto Martins, Dalva de Oliveira e Nilo Chagas.

    O sucesso do Trem foi tanto que, três meses após a estreia, o auditório da Nacional ficou pequeno para o público e o programa passou a ser transmitido do Teatro Carlos Gomes, vizinho do João Caetano na Praça Tiradentes. Na fila ou nas poltronas da sala de espetáculos, pessoas das classes mais populares da sociedade se acotovelavam para assistir aos quadros cômicos e números musicais e participar das gincanas que eram promovidas ao vivo, para o horror de parte da crítica especializada, avessa a auditórios ruidosos, piadas de “double sens” e “prêmios ínfimos de dez cruzeiros”, como escreveu em 04-06-1943 uma das principais detratoras do Trem, Magdala da Gama Oliveira, a Mag, na coluna que mantinha no Diário de Notícias.

    Infelizmente (não para ela), o contrato do Trio de Osso com a Nacional foi abreviado em dezembro de 1943, depois que a emissora recusou o aumento salarial pedido pelo trio, como conta o escritor e pesquisador musical Suetônio Soares Valença na terceira edição do livro “Tra-la-lá: vida e obra de Lamartine Babo” (Funarte, 2014). Foi aí que o Trem partiu para a temporada em São Paulo – três meses na Rádio Pan-Americana – e depois voltou ao Rio, como atração da Rádio Mayrink Veiga, a partir de março de 1944.

    Antes, porém, teve a despedida carioca em 10 de janeiro, com o Teatro João Caetano lotado para ver as músicas recém-lançadas para o carnaval, quadros de comédia e, como ponto alto da noite, as marchas que Lamartine compusera em homenagem aos dez times que haviam disputado o Campeonato Estadual de 1943: América, Bangu, Bonsucesso, Botafogo, Canto do Rio, Flamengo, Fluminense, Madureira, São Cristóvão e Vasco. A tarefa de executar os “hinos das torcidas”, como a imprensa chamou as novas marchinhas, coube à Orquestra do Maestro Pedroca, acompanhada com entusiasmo pela plateia devidamente paramentada com camisas e bandeiras.

    O Trio de Osso do Trem da Alegria: Lamartine Babo entre Yara Salles e Héber de Bôscoli.
    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    Na primeira edição de “Tra-la-lá”, publicada em 1981, Suetônio informou que a ideia das marchinhas futebolísticas teria surgido durante as transmissões do próprio Trem da Alegria, depois que “Héber de Bôscoli desafiou Lalá a fazer um hino para cada clube”. O causo, muito repetido em diversas outras fontes de pesquisa, pode ser uma das lendas criadas a partir dos hinos, já que acabou suprimido pelo autor na terceira edição do livro (2014), na qual, diga-se, a história dos hinos é um tema de destaque (22 páginas), contado com mais detalhes e informações históricas do que nas cinco páginas da edição original.

    Outra história que seria ótima, mas não entrou no livro (em nenhuma edição), é a que contava o apresentador/produtor Oswaldo Sargentelli, sobrinho de Lamartine: o compositor teria permanecido trancado num apartamento na Rua Senador Dantas, no Centro do Rio, com a geladeira abastecida e dois seguranças na porta, e sua saída só seria permitida depois que todos os hinos estivessem prontos.

    O que se sabe e está comprovado é que, dos hinos populares dedicados aos clubes de futebol do Rio de Janeiro, o primeiro gravado – no dia 2 de dezembro de 1944 – foi “Sempre Flamengo”, em homenagem ao então bicampeão estadual (1943-44). A gravação original, feita com maestria pelos Quatro Ases e Um Curinga e lançada pela Odeon (nº 12541), foi um dos grandes sucessos do carnaval de 1945. “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo”, passou a cantar a torcida rubro-negra fazendo ecoar o verso que, como observa o escritor Ruy Castro no livro “Flamengo: o vermelho e o negro” (Cia das Letras, 2004), Lamartine aproveitou de Júlio Silva – folião folclórico do carnaval carioca, mais conhecido como fundador do Bloco do Eu Sozinho.

    Apesar do sucesso da marchinha rubro-negra, só dali a cinco anos o conjunto completo dos hinos das torcidas compostos por Lamartine Babo seria lançado em discos de 78 rotações pela Continental. Isso em julho de 1950, em plena efervescência da Copa do Mundo disputada no Brasil. Assim, às dez composições de 1944 juntaram-se outras duas: a “Marcha do scratch brasileiro”, que provavelmente teria mais sorte se o resultado da Copa fosse outro, e a “Marcha do Olaria”, composta em 1947, quando o “clube da faixa azul celeste” juntou-se aos demais na disputa do campeonato.

    Todas as músicas foram gravadas por artistas do cast da Continental com acompanhamento do trompetista-maestro Francisco Sergi e Sua Orquestra e foram batizadas com “Marcha” no nome. Mesmo “Sempre Flamengo” virou “Marcha do Flamengo”, interpretada pelo Trio Melodia, que era formado por Albertinho Fortuna, Nuno Roland e Paulo Tapajós e também gravou as homenagens a Bangu, Canto do Rio e Fluminense. Outras quatro foram gravadas por Jorge Goulart (América, Bonsucesso, Madureira e do scratch brasileiro), enquanto Nuno Roland interpretou duas (Botafogo e Olaria) e Sílvio Caldas outras duas (São Cristóvão e Vasco).

    Só então os hinos populares dos times cariocas começaram a se fixar na memória e no canto dos torcedores dos outros clubes. Os do Fluminense, por exemplo, tinham três letras diferentes para decorar na segunda parte – Lamartine fez uma para cada cor do clube das Laranjeiras. Uma curiosidade levantada por Suetônio Soares Valença é sobre a composição: Lalá se aproveitou da marchinha “Preto e branco”, que Lírio Panicali e Silvino Neto haviam feito para o carnaval paulistano de 1935 – inédita em disco – descrevendo uma moça vestida com a bandeira de São Paulo:

    Preto e branco para mim
    São as cores da bandeira principal
    Tua boca pintadinha de carmim
    Completa as cores da bandeira
    Do meu torrão natal
    São Paulo

    Treze é o total
    Das listras pequeninas
    Do teu vestido tricolor
    Tu és a minha rainha
    Paulista querida
    Meu amor

    Devidamente autorizado pelos dois compositores, Lamartine trocou os versos de Silvino pelos de sua autoria, fazendo de Lirio Panicali seu parceiro na “Marcha do Fluminense”.

    Já para compor a “Marcha do América”, seu clube de coração, Lamartine não pediu autorização nenhuma: sobre o tema da canção estadunidense “Row, row, row” (James Monaco e William Jerome) fez os versos da primeira parte – na segunda, toda de sua autoria, a melodia ficou mais bonita do que a dos parceiros. Gravada originalmente nos Estados Unidos por Ada Jones (Victor, 1912), a música apareceu por aqui primeiro num disco do Batalhão Naval (Odeon, 1918) e, depois, como um dos temas do filme “Um coringa e sete ases” (“The seven little foys”, no original), de 1955. Quando perguntado se havia plagiado os americanos, Lamartine respondia com graça: “Mas o nome do time não é América?”

    Mais sutil foi o que se deu na “Marcha do Vasco”, onde a melodia inicial do hino nacional português é apenas citada na introdução original. Em outras letras, o compositor preferiu exaltar os clubes como berços de craques – é o caso das marchas do Bangu (“De lá pra cá surgiu o Domingos da Guia”), do Bonsucesso (“Surgiu Leônidas, o maioral”) e do São Cristóvão (“Estimulam a tua fibra extraordinária / Os grandes feitos do saudoso Cantuária”). Quando não encontrou heróis para citar, criou personagens como a moreninha torcedora do Canto do Rio (“Queimada da praia na hora do jogo / Ela desmaia e pega fogo”) e arquitetou metáforas grandiosas: “És, Madureira, nosso castelo / A nossa catedral ideal...”

    Já no caso da “Marcha do Botafogo”, a diretoria do clube implicou com o verso “Campeão de 1910”, afinal o título que valera ao clube o apelido de “O Glorioso” (citado na letra) não era o único do Alvinegro. Segundo Suetônio Valença, houve até um presidente do clube, Adhemar Bebiano (1954/55), que chegou a proibir o hino de ser tocado no Maracanã. Lamartine então propôs mudar a letra para “Campeão desde 1910”, alegando – matreiramente – que este era o verso original da marchinha e o cantor havia trocado na hora da gravação. A mudança, no entanto, só foi gravada em 1963 (ano da morte de Lamartine), quando os alvinegros, enfim, adotaram de vez o hino popular entre seus cânticos de arquibancada.

    Curiosamente, os próprios torcedores do Botafogo ainda mudariam a letra mais uma vez a partir de 1996, quando a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, a partir de um pleito do clube, declarou o Alvinegro campeão de 1907, dividindo o título com o Fluminense. Assim, os botafoguenses passaram a cantar “desde 1907”, nem aí para a rima  – com o verso “Por isso é que tu és” – que deixou de existir.

    Pois foram, de fato, as torcidas que, com o tempo, consagraram os hinos de Lamartine Babo – até hoje cantados a plenos pulmões nos estádios, numa demonstração não só do amor dos torcedores por seus times de coração, mas também dos acertos do compositor. Um deles foi o gênero musical escolhido: em vez dos dobrados ou marchas militares, tão comuns nos hinos oficiais, Lalá optou pela marchinha, leve, ligeira e sorridente como os sucessos de carnaval de sua autoria que tinham estourado em carnavais da década anterior, como “O teu cabelo não nega” (dele com os irmãos Valença, em1932), “Linda morena” (1933), “História do Brasil” (1934) e “Grau dez” (com Ary Barroso, em 1935), entre outras.

    Numa reprodução da 3ª edição do livro "Tra-la-lá", o registro de Lamartine Babo cumprindo a promessa que fizera em 1960: ele percorreria as ruas do Rio vestido de diabo se seu América F. C. fosse campeão naquele ano.

    Com o tempo, os próprios clubes passaram a incluir os hinos populares de Lamartine entre seus símbolos, embora todos já tivessem seus “hinos oficiais” (às vezes mais de um), solenes e pomposos, como havia de ser nas décadas anteriores, quando o football era praticado e frequentado quase que exclusivamente pelos gentelmen da boa sociedade.

    É provável que Magdala da Gama Oliveira gostasse de saber que “o Fluminense é um crisol” (como dizia a letra de Coelho Neto, em 1915), que “nunca o Vasco baixou a serviz” (segundo Joaquim Barros da Silva, 1918), que o Botafogo era uma “nave imensa de velas pandas sobre o mar” (Alberto Ruiz, sem data) e que os flamenguistas pretendiam lutar “ardentemente com denodo e fé” (Paulo Magalhães, 1920). Mas o povão, que na década de 1950 já era mais do que bem-vindo no futebol, no fim das contas adotou as marchinhas de Lamartine para cantar nos estádios.

    O sucesso da empreitada foi tamanho que, segundo Suetônio Valença, chegou-se a aventar a possibilidade de o compositor ser convidado a criar também os hinos populares dos times de São Paulo, no que Lalá, mais uma vez, rebateu com galhofa: “E onde vou eu encontrar uma rima para Corinthians?” De fato, no hino do Timão, composto por Lauro D’Ávila no começo dos anos 1950, não consta nenhuma palavra que rime com o nome do clube do Parque São Jorge, como se pôde constatar em sua primeira gravação, feita em fins de 1970 para o LP “Hinos do Futebol Brasileiro”, também lançado pela Continental.

    Neste disco, coube à Banda do Corpo de Bombeiros do Estado da Guanabara interpretar as 14 faixas do repertório: nele, juntam-se ao hino do Corinthians os de outros três clubes paulistas (Palmeiras, Santos e São Paulo) e mais as marchas de dois times mineiros (Atlético e Internacional), dois gaúchos (Grêmio e Internacional), o Atlético Paranaense e o Santa Cruz, do Recife. Além, claro, das quatro mais cantadas do mestre Lamartine Babo: Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Já em 1977, a “Marcha do América” juntou-se a estas quatro no repertório do LP “Hino dos campeões”, produzido pela gravadora CID com gravações até hoje muito tocadas em bailes, nos estádios e em transmissões de rádio e TV.

    Outros dois álbuns coletivos ainda foram produzidos pela revista Placar atualizando arranjos e interpretações dos hinos dos clubes mais tradicionais do país. Em 1996, em meio a uma campanha de combate à violência nos estádios de futebol, foi lançado o CD “Os hinos dos grandes clubes brasileiros cantados por feras do rock e da MPB”. Entre as 16 faixas do repertório estão novas gravações das marchas de América (por Tim Maia), Botafogo (por Ed Motta, Beth Carvalho, Cláudio Zoli e Eduardo Dussek), Flamengo (por Herbert Vianna, Neguinho da Beija-Flor, Falcão e os MCs Júnior e Leonardo), Fluminense (por Evandro Mesquita, Fausto Fawcett e Toni Platão) e Vasco (por Luiz Melodia, Fernanda Abreu, Celso Blues Boy e Pierre Aderne, este último produtor do disco).

    Já em 2004 foi a vez de o “CD dos Hinos da Placar” trazer outras 16 gravações com homenagens musicais ao clubes brasileiros, em mais uma produção de Pierre Aderne, aqui acompanhado por Bruno Mazzeo, Fábio Tabach e Rodrigo Kuster. Neste repertório foram quatro os hinos de Lamartine Babo relançados em CD: Zeca Pagodinho interpretou a marcha de seu Botafogo, de novo Herbert Vianna – agora na companhia de Gabriel O Pensador – regravou a do Flamengo, Paulo Ricardo cantou a do Fluminense e Paulinho da Viola juntou-se ao grupo de rock Los Hermanos para entoar o hino do Vasco.

    Foto principal: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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