Paquetá é sempre uma viagem. Marítima, claro, mas também no tempo e em histórias – da música inclusive. Como as do maestro Anacleto de Medeiros, que, nascido por lá, virou nome de rua, por onde transitaram Sílvio Caldas, Orestes Barbosa e Wilson Batista, entre outros ilustres verbetes musicais que viveram no bairro-ilha – local também de memoráveis rodas de choro (com direito a Pixinguinha, Jacob do Bandolim e grande elenco) e piqueniques de sambistas da velha-guarda, felizes como num antigo sucesso de Francisco Alves.
Eu vou navegar
Até encontrar
O porto da felicidade...
O próprio autor deste samba, “Não deixo saudade”, feito em parceria com Manoel Ferreira e lançado no carnaval de 1935, é também uma figurinha carimbada de Paquetá: o compositor Roberto Martins, nome que possivelmente não encontra registro na sua memória, leitora ou leitor, mesmo que você já conheça algumas de suas composições de rodas de samba ou bailes e blocos de carnaval. Nascido há 115 anos (29-01-1909) e falecido há quase 32 (14-03-1992), ele também viveu na ilha e, de certa forma, ainda vive por lá – na memória de dois dos mais entusiasmados contadores de suas histórias: seu filho Jorge Roberto Martins e a companheira dele, Leila Martins.
Para ouvi-los navegamos da Praça XV à ilhota retrô: este redator-pesquisador acompanhado da coordenadora de música do Instituto Moreira Salles, Bia Paes Leme, ela também uma entusiasta das histórias do samba, além de amiga do casal morador da Praia dos Tamoios, ambos aposentados – ele, aos 81 anos, como jornalista e publicitário; ela, aos 76, como agente de viagens. Pois, além das memórias, teve mesa posta e sorrisos largos (marca da fisionomia dos dois) na recepção a nossa equipe.
Começamos a prosa pela obra de compositor do nosso personagem-tema: 384 músicas gravadas – e divididas entre tantos gêneros musicais – não é um número qualquer. “Do que você mais gosta?”, arrisco. “Dele!”, rebate Jorge Roberto, sem pestanejar. “Mais do que um pai, foi um grande amigo que tive. E um amigo muito carinhoso que sinto como se ainda estivesse por perto.”
Mas e em termos de música, nenhuma preferida...? “Ah, difícil! Cada obra tem um significado próprio e, modéstia à parte, papai deixou coisas muito boas. Mas não tenho uma que tenha me marcado especialmente”, despista, antes de mudar de ideia. “Ah... Teve uma que me valeu um apelido: a ‘Marcha dos gafanhotos’, dele com o Frazão. Eu passava na rua e os garotos provocavam: ‘Ô gafanhoto!’ Eu: ‘É a mãe!!!’ Ou seja: reagi e o apelido pegou, como geralmente acontece. Até hoje volta e meia aparece um que me chama de ‘Gafanhoto’”, diverte-se o filho-fã.
Roberto Martins: retratos do artista (no centro) e duas com Aurora e o pequeno Jorge Roberto, em Paquetá (à esquerda) e num estúdio / Fotos do acervo pessoal de Jorge Roberto e Leila Martins
E nas marchinhas, de fato, seu velho deitou e rolou. Divertiu ouvintes compondo crônicas conjugais como a do malandro atrasado que implora compreensão à sua “Roberta” (com Mário Rossi e Roberto Roberti) e a do outro que, ressabiado com a demora da companheira, pergunta “Cadê Zazá” (com Ari Monteiro), esta adaptada da canção napolitana “Dove stà Zaza” (R. Cutolo e G. Cioffi). Também satirizou a política com o “Cordão dos puxa-sacos” (outra com Frazão), que precisou de um bilhete do presidente Getúlio Vargas a Lourival Fontes – diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) – pedindo à Censura Federal que não barrasse a música.
Já com o grande Wilson Batista, compôs marchinha contando piada, como em “Não sou Manoel”, e fazendo denúncia social, ainda que de maneira sorridente, como no “Pedreiro Valdemar”, que começou a ser feita no restaurantes Reis, no Centro do Rio, onde “a meia porção era baratinha”, como Roberto Martins contou no programa Ensaio, da TV Cultura (1991). Assim que Wilson trouxe a ideia do pedreiro que “constrói um edifício e depois não pode entrar”, Roberto aproveitou uma marcha que havia feito sobre um personagem de cinema (“Você conhece o Albiné?”) e usou-a como estrutura. Terminaram a composição dando voltas no Palácio Monroe, ali perto, na Cinelândia.
Você conhece o pedreiro Valdemar?
Não conhece...?
Mas eu vou lhe apresentar
De madrugada toma o trem na circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar
Já em ritmo de samba, a parceria Roberto-Wilson também deu ótimos frutos, entre eles o partido-alto romântico “Teu riso tem” e uma homenagem ao bairro de Santa Teresa, o “morro que não tem batucada” e onde se mora “Pertinho do céu”. Nascido no Riachuelo, criado entre Tijuca e Vila Isabel e calejado na labuta infanto-juvenil (empalhador na Fábrica Ortiz, em São Cristóvão, operário numa manteigaria na Rua do Senado, balconista da sapataria Azamour, na Rua da Carioca), foi como guarda-civil – seu ofício entre 1929 e 39 – que Roberto Martins conheceu na prática as esquinas, bibocas e quebradas do Rio de Janeiro.
“Como policial passou a circular mais, estava mais presente nas rodas... Praça Tiradentes, Lapa, os dancings, locais onde também estavam os compositores”, esmiúça o pesquisador Lauro Gomes de Araújo na biografia “Roberto Martins: uma legenda na música popular” (Fundação Ubaldino do Amaral, 1995). Nas rodas boêmias, entre copos de manteiga (gíria da época para cachaça), dá vazão à música – paixão herdada da mãe, D. Isaura Machado Martins, pianista nas horas vagas e também nas ocupadas: chegou a tocar em cinema depois da morte do marido, o comerciante português Francisco José Martins, falecido quando Roberto tinha acabado de completar o primeiro ano de vida.
Aprendiz de piano da mãe, Roberto exercitou-se desde cedo na arte de criar melodias. Até que, num descanso da patrulha, nosso guardinha estava com amigos num café quando resolveu mostrar uns sambas que havia feito, para o agrado geral. Um vizinho de mesa lhe esticou um cartão da gravadora Odeon e pediu que o procurasse por lá: era o maestro Eduardo Souto, que encaminhou a produção do disco 10.941, que saiu em janeiro de 1933 com ambas as faixas cantadas por Leonel Faria: “Segredo” e “Regenerado”, as primeiras composições gravadas de Roberto Martins – as duas co-assinadas por Jardel Marques.
Nos anos seguintes, continuou entre a farda e o samba, fosse compondo sozinho, como no histórico “Foi em mil e quinhentos”, que Moreira da Silva lançou em 1935, fosse com o parceiro Jorge Faraj, com quem fez “Menos eu”, lançado por Sílvio Caldas em 1936. Desta fase é a marchinha “Saudade do meu papai” (com Walfrido Silva), lançada em 1934 no disco de estreia de Aracy de Almeida. O lançamento da cantora, aliás, era um de seus orgulhos: foi ao lado dele que ela cantou pela primeira vez, na Rádio Guanabara, na mesma tarde em que fez amizade com Noel Rosa. “Depois, teve realmente muito mais camaradagem com o Noel”, disse em entrevista ao Jornal do Brasil (23-10-1974). “Mas quem a levou para o meio fui eu.”
Aracy ainda lançou em disco outras doze composições de Roberto Martins, entre elas o ótimo samba “Não deves sorrir pra mim” (dele sozinho) e a marchinha “Bate, bate, coração”, que é outro marco de sua obra: seu lançamento, em 1937, inaugurou a parceria dele com Mário Lago, seu amigo querido pela vida toda. “Era como um irmão para o papai”, define Jorge Roberto.
Mário era outro que se dividia entre o samba e um emprego: era redator do Departamento de Estatística do Estado do Rio de Janeiro, com expediente diário em Niterói. Roberto, então, passou a acompanhá-lo no vaivém das barcas, tentando convencê-lo a deixar o emprego, afinal já podia viver como compositor. “E se de repente o direito autoral não der o que eu ganho no Departamento?”, perguntava Mário Lago, que assim relatou no texto de apresentação da biografia de Roberto. “Eu dou a diferença e você não tem prejuízo”, bancava o amigo.
Mário jamais deixou as atividades paralelas à música (foi redator e ator no rádio e, depois, na TV), mas nunca deixou de compor com Roberto Martins. Entre as 17 parcerias deles que chegaram ao disco há pérolas como o samba conjugal “Eu não sou pano de prato”, lançado por Isaura Garcia em 1941, o romântico “Leva meu coração”, que Roberto Paiva gravou em 1945, e o maior sucesso da dupla: o fox-canção “Dá-me tuas mãos”, que Orlando Silva lançou em 1939. Pouco antes, o Cantor das Multidões já tinha abafado com “Meu consolo é você”, samba de Roberto com Antônio Nássara que saiu vitorioso do concurso organizado pela Prefeitura do Rio com músicas feitas para o carnaval de 1939.
Meu consolo é você
Meu grande amor, eu explico por quê
Sem você sofro muito e não posso viver
Sem você mais aumenta o meu padecer...
Jorge Roberto nem bem terminou de cantarolar os versos e já emendou: “Maninha, deixa que eu te ajudo nessa.” A maninha em questão é a cantora Cristina Buarque, outra figurinha carimbada de Paquetá, além de amiga querida de todos os presentes, que chegou para a conversa e já foi recebida com cerveja gelada – dividir a garrafa com ela era a ajuda oferecida pelo anfitrião. Conhecedora do repertório de Roberto Martins como poucos (e de sambas antigos em geral), Cristina junta-se à roda para ouvir memórias como as de Leila Martins, fã confessa do sogro. “Nós conversávamos muito. Às quintas, sempre que ele saía da reunião semanal na União Brasileira de Compositores, vinha me visitar no escritório onde eu trabalhava, no Edifício Avenida Central”, relembra, com saudade. “Sentava-se do meu lado e começava a contar histórias. Acabei virando confidente dele.”
Lembranças da visita a Paquetá: Jorge Roberto e Leila Martins na porta de casa (à esquerda), Cristina Buarque na 'bicitáxi' (à direita, no alto) e Bia Paes Leme com o anfitrião. Fotos de Pedro Paulo Malta
Leila e Jorge Roberto começaram a namorar no início dos anos 1960, ali mesmo em Paquetá. “Eu passava pela Rua Furquim Werneck e ouvia aquele piano lindo: era o Jorge tocando”, relembra. “Quis logo ser aluna dele, mas não passamos de três aulas”, diverte-se. “Meu pai entendeu tudo e cortou meu barato.” Ou pelo menos tentou: ao namoro seguiram-se o enlace e, já no continente, a nova família. Ela batalhando na agência de viagens e ele jogando nas onze – de paraquedista da aeronáutica passou a repórter, colunista de jornal e radialista, além de escritor de livros e presidente do Museu da Imagem e do Som. Aposentados, em 2019 voltaram a viver em Paquetá, entre porta-retratos de filhos e netos e o piano-armário do saudoso Roberto.
“Não cheguei a vê-lo compor neste instrumento, mas tocar muitas vezes: ele adorava passar o tempo nessas teclas, relembrando melodias”, recorda o filho. “Me sinto um privilegiado por ter estado perto não só dele, como desse universo musical que ele me apresentou: Mário Lago, Lamartine Babo, Gilberto Alves, Ciro Monteiro”, enumera, encerrando a lista com seu intérprete preferido. “Gosto mais dos cantores que falam, sabe? Sem contar o sujeito maravilhoso que era o Ciro”, define Jorge Roberto, antes de pescar na memória o samba “Beija-me”, grande sucesso do cantor em 1943.
Beija-me
Deixa o teu rosto coladinho ao meu
Beija-me
Eu dou a vida pelo beijo teu...
Nesta composição, Roberto tem como parceiro o petropolitano Mário Rossi, letrista com quem divide também a autoria de “Renúncia”, fox-canção de 1942 que, antes de virar o primeiro grande sucesso de Nelson Gonçalves, foi recusado pelo cantor: só o gravou depois de muita insistência de Vitório Lattari, diretor da gravadora Victor que estava acostumado a farejar sucessos. Pois este nasceu como um poema de Rossi intitulado “Tarde sprin” (“O poeta logo explicou que se tratava de uma tarde chuvosa”, conta o biógrafo Lauro Gomes de Araújo) e Roberto não só musicou, como rebatizou, aproveitando-se de uma palavra muito em voga no noticiário da Segunda Guerra Mundial que chegava por aqui pelos jornais e pelo rádio.
Não era a primeira vez que Roberto Martins conhecia o sucesso: esse gosto ele já tinha experimentado em 1940, quando sua batucada “Cai cai” estourou na interpretação de Joel e Gaúcho. A música tinha sido feita em 1939, para as festas juninas daquele ano, mas não houve quem quisesse gravar – até que o compositor cantou-a para a dupla vocal no Café Nice e ficou combinada a gravação. Depois de lançada em disco, em janeiro de 1940, “se converteu no maior sucesso financeiro de Roberto Martins”, como informou o Correio da Manhã (17-02-1954). “Já deu até uma casa na Ilha do Governador ao seu autor.”
O curioso é que, antes da gravação, o editor Vicente Mangione tentou encaminhar “Cai cai” para Francisco Alves, mas Roberto, para não quebrar o trato que havia feito com Joel e Gaúcho, cantou-a propositalmente desanimado, piorando a própria composição, para que o Rei da Voz desistisse de gravar. Depois do estouro no carnaval de 1940, foi interpelado pelo cantor, como contou no programa Ensaio, da TV Cultura: “Você pensa que é malandro?!”, disse Francisco Alves. “Eu que sou malandro. Sou o Chico da Lapa!”
Roberto e o cantor mais popular da época já se conheciam de outros carnavais e negociações. Em 1936, por exemplo, foi mostrar a ele um samba que havia feito sobre o morro da Favela e chateou-se com a resposta: “Ah, Roberto, já há uma porção de favelas por aí, ainda há pouco o (Raul) Roulien gravou uma”, desprezou Francisco Alves, segundo depoimento do compositor ao JB (23-10-1974). Alguns meses depois, reencontraram-se na festa de aniversário de uma amiga francesa de Roberto: Chico encantou-se com a ninhada de cachorros da anfitriã e pediu para levar um dos filhotes com ele. O compositor imediatamente se interpôs, relembrando o samba recusado e Chico foi pragmático: “Eu gravo a tua música e tu me dá o cachorrinho”, resolveu o cantor, que pouco depois lançava “Favela”, primeiro samba a dar projeção ao nome de Roberto Martins – aqui parceiro do feirante Waldemar Silva.
Mais amena é a história de “Adeus mocidade”, outro samba de nosso personagem – este em parceria com Benedito Lacerda – lançado por Francisco Alves com boa repercussão. Segundo o biógrafo Lauro Gomes de Araújo, foi num encontro fortuito entre Roberto e Benedito no Centro da cidade, cada um com uma novidade a mostrar para o amigo. Ao ouvir a primeira de Roberto, o flautista imediatamente abriu mão de seu esboço, dedicando-se a trabalhar com o parceiro na segunda parte daquele samba, lançado por Chico Alves às vésperas do carnaval de 1941.
Adeus, minha mocidade, adeus...
Passado que me deixou saudade
Conservo ainda um amor
Nos sonhos meus
Por eu isso digo adeus...
Oh, mocidade, adeus!
A propósito deste samba de despedida – um dos preferidos de Cristina Buarque – o relógio já marcava quatro da tarde e estávamos a 30 minutos da nossa barca para a Praça XV.
Até que Leila, como numa cena de pós-créditos do cinema, correu dentro da casa e voltou com a sobremesa do nosso encontro: uma caixinha cheia de recordações do sogro. “Foi a mãe do Jorge que deixou comigo”, disse, emocionada, a nora de D. Aurora (vulgo Lolita), enquanto manuseava as relíquias: recortes de jornal amarelados, alguns documentos e fotografias diversas – uma posada do artista, outras dele com amigos, uma foto de família e até um retrato de “China”, apelido de Isaura Alves da Silva, mãe das irmãs de Jorge, Yole e Beth, e companheira de Roberto desde a separação de Lolita até o fim da vida dele, aos 83 anos.
Na caixinha de recordações da família: um recorte de jornal, o título de eleitor, Roberto Martins de farda e Isaura Alves da Silva, a 'China'. Acervo pessoal de Jorge Roberto e Leila Martins.
Só deu tempo de reproduzir algumas imagens da caixinha preciosa (são elas as fotos antigas que ilustram esta postagem), dar um abraço apertado em nossos queridos anfitriões, nos despedir da maninha Cristina Buarque no ponto de bicitáxis de Paquetá e zarpar até o cais, ainda a tempo de ouvir o apito da barca e, passo a passo no chão de terra, voltar aos poucos ao século 21, ao tempo presente e, passados 50 minutos no mar, ao terminal hidroviário da Praça XV. Felizmente, com muitas memórias a compartilhar neste texto e na playlist que se segue.
Viva Roberto Martins!
* Com as colaborações decisivas de Bia Paes Leme e Fernando Krieger.
Na foto principal: Jorge Roberto Martins no piano do pai. Atrás, um desenho dele com sua companheira, Leila, no traço de Mello Menezes, e fotos de seus pais: Roberto Martins e Aurora. Foto de Pedro Paulo Malta