Passado mais um carnaval, temos novas memórias da folia.
Uma alegoria de serpente na comissão de frente da escola campeã, a Unidos do Viradouro. Uma rainha de bateria fantasiada de onça à frente dos ritmistas da Grande Rio. A cantora Alcione homenageada pela Mangueira, indígenas ianomâmis sobre um carro alegórico do Salgueiro e a Portela encerrando sua apresentação com mães negras que exibiam lembranças dos filhos mortos. Na boca do povo, um samba divertido sobre o caju que, no fim das contas, não levou sua escola, a Mocidade Independente de Padre Miguel, a uma posição melhor que o 10º lugar na classificação final.
Tudo exibido pela TV, gravado em smartphones e postado – curtido, tretado, comentado, aprofundado... – à exaustão nas redes sociais. Mas não custa perguntar: são memórias que durarão por quanto tempo? Qual será a longevidade dessa enxurrada de imagens e sons? A julgar pelo que se lembra e se canta dos desfiles mais recentes, é provável que não durem tanto. Diferente, por exemplo, dos antigos sambas-enredo – até hoje cantados a plenos pulmões em bailes e blocos de carnaval.
O mais antigo deles, aliás, está completando 75 anos de seu desfile: foi na madrugada de 28 de fevereiro de 1949 que o Império Serrano levou à avenida – a recém-inaugurada Presidente Vargas – o samba “Exaltação a Tiradentes”, composição assinada por Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau Silva que levou a escola de samba da Serrinha ao segundo dos nove títulos de sua história. Detalhe: aquele era apenas o segundo desfile competitivo do Império, fundado em 23 de março de 1947 e vitorioso já no carnaval de 48, com “Homenagem a Antônio Castro Alves”.
Insatisfeitas com o resultado, Portela (que havia perdido a chance de conquistar seu oitavo título consecutivo) e Mangueira se desligaram da Federação das Escolas de Samba e passaram a desfilar – com Unidos da Tijuca e outras agremiações – num certame paralelo, organizado pela recém fundada União das Escolas de Samba. O Império Serrano não quis saber e seguiu com 100% de aproveitamento até 1951, último carnaval das ligas separadas, quando conquistou seu tetracampeonato.
Mas fiquemos em 1949 e no hino imperiano daquele desfile. “Um dos mais sucintos sambas de enredo de todos os tempos”, segundo o violonista e arranjador Luís Filipe de Lima em seu livro “Para ouvir o samba” (Funarte, 2022). “Tem ao todo dez versos: cinco da primeira parte, outros cinco da segunda.” Já o jornalista Bernardo Araujo, no livro “O prazer da Serrinha: histórias do Império Serrano” (Verso Brasil, 2015), destaca que o samba do bicampeonato “confirmava o talento dos compositores da Serrinha, ainda sem Silas de Oliveira”.
O bicampeonato do Império Serrano nos impressos: a letra do samba no jornal A Manhã (22-04-1949) e uma foto dos imperianos campeões na revista Subúrbios em Revista (Março de 1949). / Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
A menção a Silas se justifica: o sambista, embora já presente e atuante na ala de compositores do Império Serrano, só na década de 1950 começaria a se firmar como o maior criador de sambas da escola – sendo considerado o maior autor de sambas-enredo de todos os tempos. São dele clássicos do gênero como “Aquarela brasileira” (1964), “Os cinco bailes da história do Rio” (com Dona Ivone Lara e Bacalhau, 1965) e “Heróis da liberdade” (com Mano Décio da Viola e Manoel Ferreira, 1969), entre muitas outras composições feitas para os desfiles da escola.
Mas em 1949 ainda não foi a vez dele – apesar das tentativas ao lado do parceiro Mano Décio da Viola, como este contou ao jornalista Sérgio Cabral, em entrevista publicada no fundamental “As escolas de samba do Rio de Janeiro” (Lumiar Editora, 1996). “Eu e Silas fizemos um samba para o enredo ‘Tiradentes’ que não foi aceito”, relembra o compositor. “Aliás, fizemos três sambas e nenhum foi aceito.”
Nascido Décio Antônio Carlos, em 14-07-1909, em Santo Amaro da Purificação (BA), Mano Décio chegou ao Rio com um ano de idade, crescendo como morador dos morros de Santo Antônio, da Mangueira e do Castelo, além de frequentador e observador – menino ainda – dos sambas da Praça Onze. Já tinha passado pela escola de samba Recreio de Ramos quando chegou em 1934 ao Prazer da Serrinha – agremiação dos sambistas que, insatisfeitos com o presidente autoritário, se retiraram para fundar o Império Serrano.
Sobre o carnaval de “Tiradentes”, Mano Décio conta que, após as tentativas frustradas com o parceiro, o samba renasceu da maneira mais inusitada: “Num domingo, fui para casa, dormi e sonhei que estava cantando uma música. Sonhando mesmo. Aí, acordei a mulher: ‘Noca, levanta!’ Ela perguntou: ‘Levantar pra quê?’ Comecei a cantar, pedindo a ela para fazer coro comigo. Na segunda-feira, nem fui trabalhar. Fui à feira, comprei peixe e fiz o almoço”, contou ao jornalista Sérgio Cabral. Já era início da tarde quando retomou os trabalhos. “Peguei um livro do primeiro ano ginasial da minha filha e foi nascendo o samba.”
Joaquim José da Silva Xavier
Morreu a vinte e um de abril
Pela Independência do Brasil
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais
O relato prossegue até “por volta das cinco horas”, quando Décio e amigos viram passar Penteado (apelido de Arnaldo Ferraz), que também havia feito um samba para o desfile sobre o líder da Inconfidência Mineira. “Como ele é ciumento, chamei: ‘Vem cá, compadre!’”, relembrou Décio, segundo o livro de Cabral. “Quando encostou, cantamos a primeira parte do samba que eu tinha feito. E repetimos. Quando ele foi tomando gosto, joguei uma pedra em cima dele: ‘Se você cantar aquela segunda parte pode ser que ela se case com a minha primeira.’ Ele tremeu, mas cantou. Mandei cantar outra vez e, de repente, perguntei: ‘Pode ficar com essa segunda parte, não pode?’ Quando ele autorizou, falei: ‘Está pronto o samba.’”
Joaquim José da Silva Xavier
Era o nome de Tiradentes
Foi sacrificado pela nossa liberdade
Esse grande herói
Pra sempre há de ser lembrado
“As duas partes casaram-se de modo perfeito. Uma autêntica parceria”, escrevem Rachel Valença e Suetônio Valença no obrigatório “Serra, Serrinha, Serrano: o Império do samba” (aqui consultado em sua 2ª edição, lançada pela Editora Record em 2017). “Quando o samba chegou ao terreiro no ensaio de quinta-feira da escola, ganhou logo o canto das pastoras e o apoio do presidente João Gradim.” Já Bernardo Araujo chama atenção para um marco pioneiro deste samba: “Foi assim que, já em 1949, a fusão de sambas-enredo chegou à avenida, mas por decisão dos próprios compositores, e não da escola, como aconteceria com frequência em décadas seguintes.”
Menos harmoniosas e espirituosas são as explicações para o terceiro nome na parceria, afinal “qualquer imperiano sabe que a participação de Estanislau Silva é apenas comercial”, como sublinham Marília Trindade Barboza e Artur L. de Oliveira Filho na biografia “Silas de Oliveira: do jongo ao samba-enredo” (Funarte, 1981). No livro, afirmam ainda que, segundo alguns imperianos, “Molequinho e Fuleiro também contribuíram com seu talento para a feitura da segunda parte.”
Na entrevista a Sérgio Cabral, Décio se ateve a explicar o terceiro signatário da composição: “Estanislau apareceu lá em cima me pedindo o consentimento para olhar o samba aqui embaixo”, relembrou o baluarte, destacando a necessidade de ter alguém que cuidasse do samba (grifos deste redator), afinal “naquela época havia muita ave de rapina. Autorizei ele a tomar conta do samba, arranjar aquela gravação. E ficou como parceiro.”
Rachel e Suetônio Valença amarram a explicação, informando que “Estanislau Silva era já conhecido na área do rádio e do disco como autor do sucesso carnavalesco de 1941 “O trem atrasou” (...), samba composto com Artur Vilarinho e Paquito. Ter seu nome na parceria, ainda que não fosse autor, abriria caminhos.”
E assim chegamos a outro marco pioneiro de “Exaltação a Tiradentes”: o caititu arregaçou as mangas e fez da música de Mano Décio e Penteado (e agora dele também, por que não?) o primeiro samba-enredo gravado da história. Mas o mais curioso é que a gravação considerada por todos a primeira – feita por Roberto Silva, em 1955, na gravadora Copacabana – é, na verdade, a segunda. O registro pioneiro coube à cantora Guaraci Navarro, que, acompanhada por Altivo Pinto e Sua Orquestra, gravou o samba no selo Star, em 1948, com a letra modificada no fim da primeira parte:
Foi traído e não traiu jamais
Os inconfidentes de Minas Gerais
E eis, portanto, mais uma nota curiosa desta história: “Exaltação a Tiradentes” já não era mais inédito quando foi cantado pelo Império Serrano em 28 de fevereiro de 1949, na conquista de seu bicampeonato. Seja como for, num tempo em que samba-enredo não era exatamente uma modalidade entre os diferentes tipos de samba, não é pouca coisa termos aqui em nosso banco de músicas duas gravações deste exemplar – nos vibratos de Guaraci Navarro e na sobriedade de Roberto Silva.
“Essa melodia do Mano Décio é muito preciosa”, avalia o cantor e compositor João Bosco, torcedor do Império Serrano, no livro de Bernardo Araujo, ao comentar a primeira parte do samba. “Ela conjuga os tons maior e menor em uma mesma frase melódica, isso não é usual. É uma ousadia muito grande, acho muito bonito.” Já o cantor Jorginho do Império, também entrevistado por Bernardo, ressalta que a popularidade do samba de seu pai – ele é filho de Mano Décio da Viola – só veio mesmo depois de 20 anos: “Ele estourou no auge da Elis Regina, a época da ditadura militar; foi um grande sucesso. Todo mundo que gosta de samba sabe cantar esse.”
Outro que destaca “a eloquente versão de Elis Regina lançada em 1973, com arranjo que foge totalmente à perspectiva de origem” é Luís Filipe de Lima, em seu inventário minucioso sobre o samba e suas diversas modalidades, chamando atenção para a participação da cantora gaúcha no LP “G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro apresenta: os maiores sambas-enredo de todos os tempos" (Philips). “A faixa traz andamento sensivelmente mais lento que o ouvido nas escolas e gravações convencionais.”
Antes do registro delicado de Elis, o samba imperiano já tinha sido regravado outras vezes, pelo conjunto A Voz do Morro (1968) e por Jorge Goulart (1971). Depois vieram o registro de outras vozes importantes, como Mestre Marçal (1993), Roberto Ribeiro (1993), Chico Buarque (2008) e Jair Rodrigues (2009), entre outras.
Além do próprio Mano Décio da Viola (1977), cuja voz se eterniza, como sua própria composição, ainda lembrada, sabida de cor e cantada por tantos foliões, há 75 anos. Palmas para ele. Para seus parceiros – tanto o artístico, Penteado, quanto o comercial, Estanislau Silva. E também para o Império Serrano, cuja grandeza destoa de seus desempenhos recentes (como o 2º lugar do grupo de acesso deste ano) no carnaval das fugacidades.
Foto principal: Mano Décio da Viola na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS