Se você gosta de samba das antigas, é provável que já tenha ouvido o som deles: percussão, violões, cavaquinhos e vozerio a serviço de um repertório especialíssimo. Sambas de terreiro daqueles com refrão para ser cantado em coro, como nas primeiras gravações da Velha Guarda da Portela (1970), só para ficar num exemplo mais recente. Porque a especialidade do Glória ao Samba – é esse o nome da turma – são as “brasas” que eram cantadas nos quintais e terreiros das escolas de samba até a metade do século passado.
Pois é isso que se ouve nas rodas e shows desta turma, seja em São Paulo (onde vivem), no Rio de Janeiro (origem de boa parte do repertório) ou onde quer que já tenham se apresentado em seus 17 anos de atividades, desde 2007. Passada a primeira década, preocupados em dar um destino mais perene às pesquisas que já realizavam para as reuniões musicais, decidiram reformatar-se num instituto: o Instituto Glória ao Samba.
Desde então, apesar de serem uma organização sem fins lucrativos, deram seu jeito (com recursos próprios) de viabilizar algumas permanências de valor. Como a publicação, em 2018, do livro “Primeiras lições de samba e outras mais”, reunindo textos do pesquisador José Ramos Tinhorão publicados na imprensa entre 1961 e 1981 e selecionados por Eduardo Pontin, um dos 22 integrantes do Glória ao Samba.
Já em 2022 veio o relançamento de “Escola de Samba Portela 1959”, disco do antigo selo Festa que há décadas vinha fora de catálogo e foi trazido de volta aos ouvidos gerais graças aos esforços de outros dois componentes, Eduardo Lo Ré e Paulo Mathias, este último presidente do Instituto e responsável pela maior parte do acervo da turma. “Essa é a ideia: democratizar o material”, afirma Mathias, que tem 43 anos e atualmente se dedica a escrever a biografia de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela (1901-1949), que define como “um grande herói brasileiro”.
Criações do Instituto Glória ao Samba: uma coletânea de textos de José Ramos Tinhorão (2018) e o relançamento de um antigo disco portelense (2022).
No panteão de Mathias juntam-se ao fundador da Portela mestres como Bide, Marçal, Geraldo Pereira, Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara, Noel Rosa de Oliveira e outros compositores ligados à tradição das escolas de samba. “Os caras fizeram música em alta qualidade num tempo totalmente desfavorável para um cara negro e semialfabetizado num Brasil muito mais racista do que hoje”, sublinha.
O ideal da democratização se materializa em ações como a contribuição de Paulo Mathias para a Discografia Brasileira, pois vieram de sua coleção os áudios de dois discos de nosso banco: o Odeon R 123058/123059 e o Columbia CB-10098. No primeiro, de 1926, temos o Grupo dos Ases em ação: com Pixinguinha como solista em “Não sei” – choro que ele regravaria em 1947, em dupla com Benedito Lacerda, com novo título (“Ele e eu”), nova indicação de gênero (polca) e apresentando Benedito como parceiro – e Bonfiglio de Oliveira em “Associação Esportiva Guará”. No segundo disco é Geraldo Pereira quem canta os sambas “A conduta do Taioba” e “Eu vou partir”, em 1954. As gloriosas contribuições, incorporadas ao site Discografia Brasileira e devidamente creditadas à coleção de Mathias, tornam ainda mais completo nosso banco-de-dados e acervo sonoro: são 63.323 fonogramas cadastrados, dos quais 46.862 com gravações disponíveis para audição.
O projeto “78 rpm” do Instituto Moreira Salles, aliás, só existe graças às coleções de Tinhorão e Humberto Franceschi, pedras fundamentais do acervo de música, também a coleções como as de Aloysio de Alencar Pinto, Robespierre Martins Teixeira, Paulo César de Andrade e outros, que vieram se somar a elas, e a conjuntos menores – mas não menos preciosos – que recebemos sempre com grande alegria. Em 2017 foi incorporado o acervo digital de Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, que tornou-se consultor do IMS para a Discografia Brasileira em 78 rotações. E em 2019 foi adquirida a coleção Leon Barg, que começou a ser digitalizada em 2024.
Já a contribuição de Paulo Mathias teve a intermediação de outro apaixonado por discos antigos: Sandor Buys, pesquisador e colecionador que desde 2021 colabora com o site Discografia Brasileira, debruçando-se sobre as gravações da fase mecânica (1902-1927), anteriores aos microfones elétricos. “É através de gestos como o do Paulo Mathias, doando suas gravações, que o trabalho do colecionador se valoriza, no compartilhamento”, sublinha Sandor.
Depois de feita a conexão, Sandor Buys gravou com Paulo Mathias a entrevista que compartilhamos nesta postagem. “Eu queria não só agradecer pela pronta resposta, como também jogar luz sobre o trabalho tão bacana que ele e o Instituto Glória ao Samba vêm fazendo”, explica Sandor, que seguirá entrevistando outros colecionadores para trazer a público o fundamental trabalho que eles realizam. “A ideia é que esse objetivo, de completar a Discografia Brasileira, seja cada vez mais um projeto coletivo.”
Aos 53 anos, Sandor é professor de Biologia e doutorando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (a UniRio). Paralelamente, colabora com este site por meio do projeto “Discografia Brasileira: os pioneiros”, que prevê a catalogação dos discos de 78 rpm da fase mecânica e a publicação de livros com históricos das fábricas, seus catálogos e verbetes de seus principais compositores, músicos e intérpretes.
Com dois volumes prontos (um sobre a Casa Faulhaber, outro sobre a Discos Phoenix) e um terceiro em andamento (sobre A Eléctrica), não são poucas as boas histórias a serem contadas sobre personagens que, a despeito de sua vasta atuação nas primeiras décadas do século 20, hoje são ausentes nas principais publicações sobre a história da música brasileira. Como Clementino de Oliveira, dentista de Juiz de Fora que “foi um grande flautista de sua época”. Ou o maestro João Elias, “um abolicionista que lutou na Guerra do Paraguai, foi da polícia, trabalhou em fábrica e compôs o Hino do Estado do Rio, vigente até os dias atuais”.
Ou ainda Álvaro Sandim, o ex-interno do Asilo dos Meninos Desvalidos que estudou no Instituto Nacional de Música e se fez grande trombonista, além de autor da famosa polca “Flor do Abacate”, tão presente no repertório de bandas do Brasil todo. “Encontrei alguns bons relatos da estreia dessa música, lá no início da década de 1910”, exulta Sandor Buys. Histórias que, uma vez impressas nos volumes da série de publicações “Discografia Brasileira: os pioneiros” (a edição deve começar neste ano), estarão de volta à luz na historiografia da música brasileira.
“Lamento que, em geral, o colecionador seja retratado como um excêntrico, cheio de esquisitices, jamais como alguém que tem projetos, ideais... Você acredita que um repórter, uma vez, foi a minha casa me entrevistar e quis ver se eu tinha discos no banheiro?”, questiona. “Em vez dessa caricatura, fariam melhor se falassem, por exemplo, da ausência de políticas públicas para a memória no Brasil, sendo que, como todo mundo sabe, a memória é assunto estratégico para qualquer país.”
Foto principal: o colecionador Paulo Mathias / Reprodução do YouTube