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    Um bandolim e boas histórias: memórias do choro nos 80 anos de Déo Rian

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Quantas memórias cabem num cafezinho com um mestre do choro? Quantas delas, vividas ao lado de nomes fundamentais da música brasileira, trazem junto lembranças musicais?

    Nos 80 anos do bandolinista Déo Rian, completados neste dia 26 de fevereiro de 2024, fomos visitá-lo em seu apartamento na Tijuca para uma conversa sobre sua trajetória e para ouvir algumas boas histórias. Entre uma e outra, volta e meia vinha o larará de um choro, que Déo prontamente se lembrava: primeiro solfejando, depois dizendo o nome. Que tal, então, fazermos uma playlist para acompanhar este texto? “Mas não cheguei a gravar em 78 rotações”, advertiu o instrumentista, que estreou em disco em 1970, em plena era dos LPs. Mas nossa ideia era fazer uma seleção afetiva, de músicas que remetessem a momentos marcantes de sua relação com a música, a começar pelo ambiente musical em que cresceu.

    “Meu ambiente musical?! Era a minha família toda. Fui criado no meio do choro”, afirma Déo, com memórias vivas das festas familiares com “dança na sala e choro no quarto”. Nos corredores adentro, o som que se ouvia vinha dos violões, cavaquinhos e flautas de primos, tios e tios-avós, todos músicos amadores. Nada mais natural que o menino se acostumasse desde cedo aos choros de Pixinguinha, Anacleto de Medeiros e Candinho do Trombone, este autor de “Soluçando”, uma espécie de “Cai, cai, balão” na memória afetiva de Déo Rian.

    Quando era noite de seresta, o vozerio dos familiares de Déo era reforçado por Seu Inácio, seu pai, que nas horas de descanso do expediente como funcionário na Central do Brasil atacava como cantor e pandeirista. Foi assim que o menino se acostumou (e tomou gosto) pelo repertório romântico, de clássicos como “Lábios que beijei” (J. Cascata e Leonel Azevedo) e “Linda flor” (Henrique Vogeler, Marques Porto e Luís Peixoto), que entram em nossa seleção musical nas vozes preferidas do aniversariante: Orlando Silva e Elizeth Cardoso, respectivamente.

    Na música instrumental, foi no cavaquinho que Déo apresentou seu cartão de visitas: “Saudações” (Otávio Dias Moreno), primeiro choro que aprendeu a solar, incentivado pelo tio Kiko – apelido de Gumercindo Favila, mímico e dublador, entre outras artes. São dele as gargalhadas na gravação original de “Não posso conter o riso”, choro de José Leocádio lançado pelo Regional de Pernambuco do Pandeiro em 1956, justamente quando Déo arriscava as primeiras palhetadas. Tinha já 15 anos quando se entendeu com o bandolim, orientado por um amigo de seu pai, Moacir Arouca, clarinetista e saxofonista de gafieira formado – como muitos instrumentistas brasileiros – nas bandas de música.

    Daí pro mundo foi um pulo – até porque Jacarepaguá, onde Déo viveu até a idade adulta, na Freguesia, era um mundo à parte pro choro. “Chorão era o que mais tinha por lá: era o Pitanga, o Toco Preto, Darli do Pandeiro, Jorge Charuto, Otto Saleiro, o Voltaire, o Sá Neto, Manoelzinho da Flauta... Fora os menos conhecidos.” Não tardou a ser acolhido nas rodas musicais de lá. Tanto as mais tradicionais – como o Retiro da Velha Guarda (“Lá conheci o Leo, irmão do Pixinguinha”) – quanto outras inusitadas, como a do açougue do Seu Lulu, que nos domingos ao meio-dia guardava as carnes e abria espaço para o choro. Espaço miúdo, é verdade (só cabiam cinco músicos na loja), mas de importância imensa para Déo Rian.

    “Fui pegando amizade com o pessoal, até que um deles, o Seu Milton, me perguntou se eu queria conhecer Jacob do Bandolim. Imagina! Achei que fosse conversa... No domingo seguinte veio me dizer que estava marcado: 26-02-1961.” Sim, por coincidência Déo completava 17 anos no dia em que conheceu o chorão mais ilustre de Jacarepaguá. Mas a data ficou na lembrança não só por isso. “Cheguei lá e o encontrei de boné pra trás, sem camisa e bermuda branca. Uma figura. Depois de um monte de perguntas que me fez, começamos a tocar e fomos até tarde. Quando me levou no portão, disse que eu poderia voltar nos domingos de manhã, se quisesse. Imagina se não!”

    Do álbum de retratos: Déo Rian nos anos 1970 (no meio) entre Jacob do Bandolim (em raro retrato de 1937) e o Regional do Canhoto: no alto, Meira, Gilson e Dino; ao centro, Canhoto; embaixo, Orlando Silveira e Altamiro Carrilho. / Acervo pessoal de Déo Rian

    O genial e exigente bandolinista virou não só professor informal do rapaz como também o compositor mais recorrente na discografia do aprendiz. Além de dois álbuns inteiros com inéditas de Jacob do Bandolim (um de 1980, outro de 2007), Déo gravou inúmeros choros do mentor, entre eles sucessos como “Remeleixo” e “Noites cariocas”, que entram em nossa seleção musical nas gravações originais do compositor – de 1948 e 1957, respectivamente. Já os saraus que Jacob promovia em casa valeram como um portal para as estrelas do rádio: “Lá conheci Caymmi, Radamés Gnattali, Almirante, Tia Amélia, Paulo Tapajós... Um timaço, até porque Jacob escolhia a dedo seus convidados.”

    Com Jacob aprendeu a não marcar o ritmo com o pé (“Levei um pisão dele no primeiro encontro”), a ter uma profissão para garantir sua autonomia artística (“Toque seu bandolim, mas não dependa dele”, relembra Déo, aposentado como economista) e a gostar ainda mais da obra de Pixinguinha, ídolo tanto do mestre quanto do aprendiz. Assim, na seleção musical de Déo Rian está o Pixinguinha flautista – em “Já te digo”, gravada pelos Oito Batutas (1923), e “Ainda me recordo”, pelo Grupo da Guarda Velha (1932) – e também o saxofonista, dividindo com Benedito Lacerda a interpretação de “Ingênuo”. “Era o choro preferido do Pixinguinha”, destaca.

    Outra música selecionada é “Patrão, prenda seu gado”, cuja autoria Pixinguinha divide com seus inseparáveis Donga e João da Baiana. “Você acredita que os três ficaram no palco quando me apresentei na Sala Cecília Meirelles em 1971, no aniversário da Ordem dos Músicos?” Déo conheceu o autor de “Carinhoso” no dia em que foi levado por um amigo à casa dele, em Ramos, para tocar com um regional. “Nos recebeu de pijama, com aquele jeitão dele e nos deixou à vontade. Acabamos tocando pouco, mas foi inesquecível. Depois, voltei outras vezes.”

    Outra boa história é a da festa de aniversário do bandolinista Luperce Miranda, em Nilópolis, aonde Déo Rian e a turma do choro compareceram prontos para uma boa roda. “Quando chegamos lá, ouvimos um tremendo ie-ie-iê saindo da casa dele e nem entramos. Luperce veio pedir desculpas, explicou que era o conjunto do filho e no fim das contas tocamos ali mesmo, na kombi”, recorda Déo, que naquele dia presenteou o aniversariante tocando a valsa “Alma e coração”, acompanhado pelo violão de Jaime Florence, o Meira.

    Luperce Miranda foi outro mestre em sua trajetória: nos seis meses em que teve aulas com ele, Déo aprimorou sobretudo a velocidade de sua palhetada. “Ele me passava as escalas e, na aula seguinte, eu tinha que tocar”, conta. “Aí ele me dizia: ‘Está amarrado!’ Ou seja, ele queria que eu tocasse cada vez mais rápido”, relembra. “Foi importante para mim, embora meu estilo fosse outro, mais interpretativo, como o de Jacob”, assinala Déo, que escolheu outra valsa de seu professor, “Tezinha”, para nossa seleção musical.

    A lista também tem “Arranca toco”, choro de Meira gravado pela primeira vez em 1950, no bandolim do craque Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, e acompanhamento de Canhoto, Dino Sete Cordas, Meira e companhia. “O Dino me contou que, no dia dessa gravação, Garoto chegou ao estúdio aflito, pois tinha esquecido de levar o bandolim. Dizem que ele era meio desligado para algumas coisas”, confidencia Déo Rian. “Tiveram que correr na loja Ao Bandolim de Ouro e trazer o instrumento que ele acabou usando na gravação.”

    Déo Rian já conhecia desde a adolescência o Regional de Canhoto, que ia ver de perto no auditório da Rádio Mayrink Veiga, onde tocavam no programa Noite Brasileira, com apresentação de Cid Moreira. “Eu saía antes do cursinho pré-vestibular para chegar a tempo”, conta o bandolinista, que era fã do conjunto referencial no acompanhamento de cantores e também na interpretação de choros como “Lembro-me ainda”, de Dino. “Eu me incomodava com o jeito deles, assim, inacessíveis lá na Mayrink. Jurava que eram prosas”, diz. “Depois, quando pude conhecê-los de perto, vi que eu estava completamente errado.”

    Foi, inclusive, a partir de um sarau na casa de Canhoto (“o melhor centrista de cavaquinho que tivemos”), no Méier, que se deu outro marco na trajetória de Déo Rian. “Eu estava tocando na roda, quando um senhor de cabeça branca se aproximou para me ver de perto: era Dalton Vogeler, contrabaixista, autor de ‘Balada triste’, que ali mesmo pediu ao Orlando Silveira (acordeonista e maestro) para me dar uma chance de gravar meu primeiro disco na Odeon”, conta o bandolinista, que tinha 25 anos naquele 1969. “A Odeon já estava com o elenco completo, mas logo surgiu uma oportunidade na RCA Victor e o próprio Dalton encaminhou por lá os trabalhos.”

    Ao veterano músico coube a tarefa de criar o nome artístico do novato (nascido Déo Cesário Botelho), apresentado a todos na capa de seu disco de estreia, “Ernesto Nazareth – solista: Déo Rian”, lançado em 1970 com acompanhamento do Quinteto Villa-Lobos e quarteto de cordas. No texto da contracapa é também Vogeler quem apresenta o estreante (“Um neném”) e lamenta o esquecimento de Nazareth, que nesse LP é lembrado através de “doze joias de seu vastíssimo repertório”, como o choro “Tenebroso” e a valsa “Coração que sente”.

    Encontros no álbum de retratos: com o cavaquinista Waldir Azevedo (à esquerda), o flautista Copinha (à direita, no alto) e o violonista Raphael Rabello. / Acervo pessoal de Déo Rian

    Quem ouviu o disco com atenção foi Waldir Azevedo, depois de receber um exemplar das mãos do próprio Déo, na sede da União Brasileira de Compositores (UBC). Algum tempo depois, reecontraram-se na Avenida Rio Branco e o rapaz quis saber as impressões do autor de “Pedacinhos do céu”: “Adorei o disco, mas você é rico?”, disparou o popstar do cavaquinho, para a perplexidade do jovem músico. “Seu disco é lindo, mas não vai vender, infelizmente”, lembra Déo, que acrescenta: “E ele não estava errado.”

    Prosseguiu em sua carreira, como solista do primeiro disco do conjunto Época de Ouro (1974) após a morte de seu fundador, Jacob do Bandolim (13-08-1969) – deste álbum é a gravação do tango “Os boêmios” (Anacleto de Medeiros) que foi parar na novela “Pecado capital”, da TV Globo. Depois, Déo criou seu próprio regional, o Noites Cariocas, dedicou um disco a Roberto Carlos (1974), lançou inéditas de Jacob do Bandolim (nos já citados discos de 1980 e 2007), gravou músicas de concerto com Raphael Rabello (1993), dividiu um disco com o filho, o também bandolinista Bruno Rian (1996), e participou do CD-homenagem “Déo Rian 70 anos” (2015).

    Neste último, divide as gravações com o violonista João Camarero e outros jovens músicos do Regional Imperial, o mesmo que o acompanhou em seu disco mais recente, “Memórias de um bandolim” (2018), em homenagem ao amigo-mentor Jacob. “Essa nova geração de músicos de choro tem gente muito boa, estudiosa, que lê música e é atenta ao que já foi feito até aqui”, observa Déo, entre os LPs e álbuns de fotografia que foi tirando do armário e folheando enquanto conversávamos. “Mas confesso que estou meio por fora do que está acontecendo atualmente no choro”, reconhece. “Tenho preferido estar em casa, recolhido, e por isso ando meio afastado das rodas e dos chorões.”

    Abrirá uma honrosa exceção na próxima quinta-feira, 29 de fevereiro, às 19h, quando será homenageado na Casa do Choro, com o show “Déo Rian faz 80”, em noite capitaneada por Bruno Rian (no bandolim), Aline Silveira (flauta), Miguel Miranda (cavaquinho), Guido Tornaghi (violão), Tony Azeredo (7 cordas) e Marcus Thadeu (percussão). Um tributo mais do que justo ao agora octogenário músico que, entre memórias compartilhadas e discos lançados, é nome decisivo para a vitalidade com que o eterno choro avança pelo século 21.

    Foto principal: Pedro Paulo Malta

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