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    Guiomar Novaes: há 130 anos nascia a grande dama do piano que, com sua arte, tocou o Brasil e o mundo

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    No auditório que leva seu nome, anexo à Sala Cecília Meireles, na Lapa carioca, encontra-se em exposição uma escultura em bronze de suas mãos. As mesmas que eternizaram ao piano a “Grande fantasia triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, criação do autor estadunidense Louis Moureau Gottschalk a partir da composição original de Francisco Manuel da Silva. Bastaria a audição dessa única peça para se ter a certeza da grandiosidade daquela que é considerada uma das melhores intérpretes desta obra. Bem mais do que isso, na verdade: num país que felizmente não se cansa de exportar talentos pianísticos para o mundo, Guiomar Novaes é invariavelmente lembrada como o maior nome dentre todos e todas. O final do seu verbete publicado no livro “Quem é quem nas artes e nas letras do Brasil” (Ministério das Relações Exteriores, 1966) é taxativo: “Foi a maior pianista brasileira”.

    Não que ela estivesse aposentada naquele momento, ou deixado de ser a maior. Pelo contrário: aos 72 anos, estava em ótima forma, lotando salas de concerto e colhendo os louros de uma vida artística vitoriosa. “Guiomar Novaes continua sendo, para o público, a primeira dama do piano brasileiro. Reside há vários anos nos Estados Unidos, para onde emigrou, quando o Brasil ainda não oferecia a um artista a possibilidade de viver só da arte. Mais de quarenta cidades americanas formam para ela uma espécie de roteiro anual obrigatório, a começar por Nova York”, informava a revista Manchete de 27/01/1968.

    A reportagem de Gualter Loyola e Vera Rachel, intitulada “O mundo na ponta dos dedos”, dizia em seu antetítulo: “Se alguém quiser relacionar os vinte melhores pianistas da atualidade, terá que incluir, sem favor algum, pelo menos quatro ou cinco nomes de brasileiros famosos”. Vários deles foram citados na matéria: Yara Bernette, Arnaldo Estrella, Jacques Klein, Arthur Moreira Lima, Nelson Freire, Anna Stella Schic, Ivy Improta, Roberto Szidon. O texto dava o devido crédito a quem primeiro havia aberto as portas: “Onde há vinte anos só Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro eram estrelas de primeira grandeza, hoje há uma grande constelação”.

    Estrelas que se impuseram devido exclusivamente a seu talento e virtuosismo. Pois não deveria ter sido esse o destino a ser cumprido por elas, como bem lembrou a professora Ana Paula Cavalcanti Simioni, citada por Fernando Pereira Binder em sua tese de doutorado “Profissionais, amadores e virtuoses: piano, pianismo e Guiomar Novaes”, apresentada à Escola de Comunicações e Artes da USP em 2018: “(...) Ana Paula Simioni mostrou como a lógica de gênero perpassou o sistema classificatório da produção artística, em que o profissionalismo artístico era percebido como masculino, enquanto o amadorismo tinha uma posição ambígua: para os homens era condição temporária, para as mulheres era uma posição definitiva; os homens eram destinados ao mundo competitivo do trabalho, enquanto as mulheres, à beleza decorativa doméstica”.

    Magda Tagliaferro, Antonietta Rudge e Guiomar foram muito além: num mundo essencialmente masculino, elas ganhariam projeção nacional e internacional como grandes concertistas já no início do Século 20. A carreira de Guiomar Novaes, nascida em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 28 de fevereiro de 1894 – 17ª filha de Anna Augusta de Carvalho Menezes e Manoel José da Cruz Novaes –, tem início efetivamente aos oito anos. Aos quatro, porém, corria ao piano para imitar o que as irmãs mais velhas haviam aprendido na aula de música. Com seis, já estudando o instrumento com Eugênio Nogueira, atuava na Jardim da Infância – primeira escola infantil do estado de São Paulo –, como conta Fernando Pereira Binder: “A primeira vez que encontramos seu nome na imprensa foi na festa de fundação do Jardim em 9 de maio de 1900, (...) quando ela acompanhou o canto dos alunos ao piano”. Naquele estabelecimento, segundo Binder, “ela tornou-se uma atração, motivo de orgulho”.

    Em 1902, o periódico O Commercio de São Paulo (na edição de 27 de novembro) destacou o encerramento do ano letivo da Jardim da Infância. A festa contou com uma apresentação musical dos estudantes; entre as obras executadas estava “Qual a melhor profissão?”, que recebeu a seguinte menção do jornal: “desempenhado com muita graça pela aluna Guiomar Novaes; música da mesma aluna”. Nesta época ela estudava piano com o renomado professor italiano Luigi Chiaffarelli.

    Caricatura da pequena pianista publicada em O Malho, 10/01/1903
    Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

    Para marcar o término do curso em sua escola, Guiomar – antes mesmo de se alfabetizar – compôs uma valsa, “Jardim da Infância”, provavelmente passada para o pentagrama por Chiaffarelli. O Malho publicou a partitura em 17/01/1903, com uma caricatura da menina prodígio. O mesmo desenho havia sido impresso na edição da semana anterior, em 10/01/1903, acompanhado de um texto sobre a “pianista notável” de “grande talento musical” – durante sua infância, ela receberia da imprensa em geral adjetivos bastante elogiosos: gentil, inteligente, prodigiosa, virtuose. Também nessa época começou a surgir a confusão sobre a sua idade: a citada edição de O Malho afirma que ela teria nascido em 1895. Ao entrar para o Conservatório de Paris em 1909, mais um ano foi subtraído.

    A data que consta da certidão de nascimento da artista, publicada no livro “Guiomar Novaes do Brasil: a trajetória da pianista em Nova York”, de Luciana Medeiros e João Luiz Sampaio (Kapa Editorial, 2011), é clara: Guiomar nasceu em 1894. Por muito tempo considerou-se que a segunda alteração teria sido feita para que ela tivesse a idade limite que o Conservatório exigia, 14 anos. Mas Binder afirma que, “em janeiro de 1909, ela preencheria quaisquer requisitos de idade independentemente do ano de nascimento que lhe atribuíssem: 1894, 1895 ou 1896”.

    Para Binder, a explicação é outra: “ela poderia encarnar por mais tempo o papel de criança prodígio. (...) Ao lado da idade, a baixa estatura de Guiomar também a ajudou a representar aquele papel. Assim, desde o primeiro concerto Guiomar Novaes espantava o público parisiense”. Espantou também o compositor Claude Debussy, um dos membros da banca do Conservatório, que pouco tempo depois escreveria ao amigo André Caplet sobre o olhar da garota: “olhar transportado pela música”, “olhos ébrios de música”, “olhos embriagados de música” – a tradução varia de acordo com a fonte pesquisada.

    Foi esta criança prodígio que teria servido de “musa” a um dos nossos maiores literatos, segundo ela mesma contou em depoimento a Fernando Sabino publicado no Caderno B do Jornal do Brasil de 09/12/1974. Sobre Guiomar, escreveu Sabino: “Passou a infância em convivência com Monteiro Lobato, que era seu vizinho – homem de aspecto casmurro, com aquelas sobrancelhas muito grossas de assustar qualquer criança, mas que a acolhia sempre com simpatia e ternura. E me revela então um motivo de orgulho, como não lhe trouxe o sucesso colhido em mais de 2 mil concertos realizados por este mundo: nela, o escritor se inspirou para criar a Menina do Narizinho Arrebitado”. Narizinho (Lúcia Encerrabodes de Oliveira), a famosa personagem do Sítio do Picapau Amarelo, surgiria no livro intitulado exatamente “A menina do narizinho arrebitado”, publicado às vésperas do Natal de 1920, quando Guiomar já estava com 25 anos.

    Antes, aos 19, foi entrevistada pelo próprio Lobato. Na conversa, publicada no Correio Paulistano de 11/10/1913, Guiomar falou sobre diversos assuntos: o primeiro prêmio obtido na prova final do Conservatório de Paris, os concertos nas capitais europeias, a receptividade calorosa das plateias. Lobato afirmou no texto que a moça tinha 17 anos, apoiado na data declarada pela própria: 1896. Para todos os efeitos, este seria o ano oficial do seu nascimento, adotado por todas as fontes até depois do seu falecimento em São Paulo em 07/03/1979, aos 85 anos.

    1922 trouxe-lhe emoções distintas. Uma em 8 de dezembro: o casamento com o arquiteto e compositor paulistano Octavio Pinto (1890-1950), com quem teve os filhos Anna Maria e Luís Octavio. Outras aconteceram ainda no início do ano: já no primeiro sarau da famosa Semana de Arte Moderna, em 13 de fevereiro, uma “caçoada feita a Chopin” – nas palavras de Mário de Andrade, em texto sobre Guiomar publicado na revista Klaxon nº 3, de 15/07/1922 – fez a grande pianista, uma das maiores intérpretes do compositor polonês, escrever ao comitê patrocinador do evento uma carta de repúdio à “pública exibição de peças satíricas alusivas à música de Chopin”, transcrita pelo Correio Paulistano de 15/02/1922.

    Neste mesmo dia – o segundo, das vaias mais sonoras –, após palestra de Menotti Del Picchia entremeada por poesias e textos de Oswald de Andrade, Plínio Salgado, Mário de Andrade e Sergio Milliet, entre outros, Guiomar subiu ao palco do Theatro Municipal de São Paulo e teria conseguido domar o público com “Au jardin du vieux sérail”, de Émile-Robert Blanchet, “O ginete do pierrozinho”, do “Carnaval das crianças brasileiras”, de Heitor Villa-Lobos, e “La soirée dans Grenade” (das “Estampes”) e “Minstrels” (do Livro 1 dos “Prelúdios”), ambas de Debussy. Por insistência do público, tocou ainda “L’Arlequin”, de Henri Stierlin-Vallon. “Segundo as resenhas publicadas, a plateia reagiu violentamente, gerando desordem após o discurso de Menotti Del Picchia”, explica Eero Tarasti em “Heitor Villa-Lobos: vida e obra” (Contracorrente, 2021), afirmando que a turma “só se acalmou com o recital de piano de Guiomar Novaes”.

    Há uma outra versão, publicada em janeiro de 1971 pela revista Realidade, segundo a qual Guiomar “se retirou do palco no meio da sua exibição de refinada técnica e não voltou mais”. A matéria diz que Maria de Lourdes, irmã mais moça de Mário de Andrade e “espectadora na noite de 15 de fevereiro”, explicou que “Guiomar tocou Villa-Lobos, o público queria Chopin. Ela não quis tocar Chopin. Retirou-se do palco e não voltou mais. O público das torrinhas vaiava muito”. Bem diferente do que afirmou O Estado de S. Paulo de 16/02/1922, mencionado na própria Realidade: “Só a senhorita Guiomar Novaes conseguiu ser ouvida em silêncio (...)”. A revista revelou que Guiomar, quase 50 anos após o concerto, falava genericamente do episódio – “protestos de gente jovem, como também acontece hoje em dia” –, sem comentar diretamente o assunto: “Prefere dedicar-se aos seus pianos (...)”.

    Sua carreira fonográfica, de acordo com algumas fontes – entre elas a página Mulheres de São João e sua discografia no Facebook –, começou com a gravação, em 27/06/1919, dos “Feux-follets” de Isidor Philipp, seu ex-professor no Conservatório de Paris, que dedicou a peça a ela. Na década de 1920, tornou-se assídua frequentadora dos estúdios. Um anúncio de uma apresentação da pianista, publicado em O Malho de 28/06/1924, trazia uma lista com 12 discos seus lançados pela gravadora Victor. Além do que continha a famosa interpretação das variações de Gottschalk para o “Hino Nacional” – que ela já interpretava aos 12 anos em recitais, como mostra o Correio Paulistano de 18/05/1906 –, estavam relacionados “La jongleuse” de Moritz Moszkowski, “Le ballet des ombres heureuses” de Christoph Willibald Gluck, a “Gavotte” de Gluck-Brahms e o “Tango brasileiro” de Alexandre Levy, entre outros.

    “Pianista romântica na mais total significação do termo” – como a definiu Mário de Andrade na Klaxon nº 2, de 15/06/1922 –, especialista no romântico-mor Frédéric Chopin – de quem registraria, ainda na época dos 78 rotações, a “Balada opus 47, nº 3” em Lá bemol maior –, Guiomar, como já se viu, dominava o teclado fosse qual fosse o compositor e o estilo. Assim, deixou em 78 rpm registros sonoros deliciosos, como as “Sonatas em Sol maior e menor” de Domenico Scarlatti, a suíte “La tendre Nanette / L’Hirondelle” (respectivamente de François Couperin e Louis-Claude Daquin), “Jeunes filles au jardin” de Federico Mompou, o “Noturno opus 16, nº 4” de Ignacy Jan Paderewski, “Le petit âne blanc” de Jacques Ibert e as feéricas “Witches dance” de Edward MacDowell e “Dance of the gnomes” de Franz Liszt.

    De seu repertório fizeram parte também obras de compositores brasileiros, como Villa-Lobos. Dele, Guiomar levou ao disco uma seleção do “Guia prático” – que no selo da Columbia recebeu o nome de “Brazilian folk songs” –, a pequena suíte “As três Marias” e quatro cenas de “A prole do bebê”: “Branquinha (A boneca de louça)” (“China doll”), “A pobrezinha (A boneca de trapo) / Moreninha (A boneca de massa)” (“Rag doll / Cardboard doll”) e a vibrante “O polichinelo”. A “Toccata” de Camargo Guarnieri recebeu o toque dos dedos mágicos de Guiomar, a quem a peça foi dedicada. Ainda no tempo do acetato, ela gravou uma composição de seu marido, Octavio Pinto: as cenas infantis “Memories of childhood”. Tendo feito a maioria de seus registros sonoros no exterior, apenas em 1974, aos 80 anos, a artista conseguiria lançar um long-playing no Brasil.

    “Os brasileiros que triunfam nos Estados Unidos têm que se conformar, por vezes, com as mais imprevistas deturpações prosódicas de seus nomes. A grande pianista Guiomar Novaes, cujos concertos em Nova York costumam esgotar em poucas horas a lotação de salas como as do Town Hall ou do Carnegie Hall, viu seu nome transformado para todos os efeitos em Gaiômar Novôas, o que aceitou com o mais benévolo dos sorrisos” (Manchete, 20/02/1965). Guiomar foi presença constante nos palcos estadunidenses entre 1915 e 1972, sempre consagrada por público e crítica. Em janeiro de 1934, deixou de se apresentar na Casa Branca por causa de uma gripe. Lá tocaria apenas em janeiro de 1936, tendo na plateia o próprio presidente Roosevelt e o embaixador brasileiro Oswaldo Aranha. Em 18/10/1953, sua performance no Carnegie Hall ao lado de outros nove pianistas mundialmente famosos foi filmada e transmitida pelo Ed Sullivan Show.

    Guiomar colecionou diversas homenagens em vida: em 1939 recebeu a Legião de Honra do governo francês e, em 1956 e 1969, as Ordens do Cruzeiro do Sul e do Rio Branco, ambas do governo brasileiro; foi escolhida em 1951 para ser a solista do concerto nº 5.000 da Filarmônica de Nova York; tornou-se cidadã honorária do Rio de Janeiro em 1962; no ano seguinte, representou a América Latina nas comemorações do 15º aniversário da Declaração dos Direitos Humanos, na ONU. Deu seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som em 27/11/1974. Emprestou seu nome a um auditório no Rio e a outro em São Paulo. Foi ainda tema de dois documentários: o de Olívio Tavares de Araújo em 1978, “Guiomar Novaes: registro & memória”, e o dirigido por Norma Bengell e lançado em 2003, “Infinitamente Guiomar Novaes”.

    Fez seu último concerto – segundo o livro de Luciana Medeiros e João Luiz Sampaio – em sua São João da Boa Vista natal, em 1974: “um recital beneficente em prol do orfanato Casa das Crianças. E sua derradeira aparição pública se deu em 25 de janeiro de 1979, no Pátio do Colégio em São Paulo, recebendo o título de Dama Paulista, homenagem do governo estadual”. Dois anos antes, em 1977, ao saber que o mesmo governo iria lhe conceder uma pensão de 11 mil cruzeiros, teria dito, com certa ironia: “Deus tarda mas não falha” – a história foi contada em matéria de TV exibida por ocasião de seu falecimento. A reportagem trazia raras imagens de dona Guiomar, já uma senhora, tocando divinamente e dando seu depoimento sobre o sentimento de ser brasileira morando fora do país.

    “Guiomar Novaes era muito mais da música, das aberturas para o céu – mostrava-se sempre muito religiosa. (...) Seu espírito dela escapava, deixando-a sempre distraída, concentrando-se Guiomar apenas no poder da música, que a arrebatava para delícia de seus admiradores”, definiu-a a escritora Dinah Silveira de Queiroz em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 07/04/1981. Debussy, em 1909, na carta a Caplet – mencionada no livro de Luciana Medeiros e João Luiz Sampaio –, já havia reparado na capacidade que Guiomar tinha de “se isolar de tudo o que está à sua volta, marca característica, ainda que rara, do artista”. Ela própria parecia saber-se assim: no depoimento a Fernando Sabino, revelou uma particularidade – talvez o seu grande segredo, a chave que fez dela a maior de todas as pianistas:

    “Há pessoas que dizem praticar seis, sete ou oito horas por dia. Acho-as admiráveis. Talvez tenham muito o que preparar, é natural. Mas eu nunca pratiquei tanto tempo, não teria paciência. Gosto de tocar uma, ou uma hora e meia e depois olhar para o céu para ver como está”.

    Foto: Guiomar Novaes em retrato de divulgação. Foto de De Bellis, Nova York – reprodução do livro “Guiomar Novaes do Brasil: a trajetória da pianista em Nova York”, de Luciana Medeiros e João Luiz Sampaio (Kapa Editorial, 2011).

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