“Cheio de corpo, mas pequenino. Movimentos rápidos, olhos apertados e muito vivos, sobrancelhas arqueadas e grossas. Corta o cabelo quase à escovinha e é irrequieto enquanto fala.” Uma descrição assim, como a que chegou aos leitores e leitoras do Jornal do Brasil no dia 19 de março de 1979, não é do tipo que passa batida pelos olhos de quem lê. Difícil também ficar indiferente a uma trajetória como a de César Guerra-Peixe, o sujeito da frase, escrita pelo jornalista Francisco Duarte naquela matéria sobre os 65 anos do maestro, compositor e violinista referencial na história da música brasileira – seja a popular, a de concerto ou a inclassificável, como ele preferia.
Pois Guerra-Peixe era um maestro sem casaca e outras pompas, desses que – como Radamés Gnattali – transitam à vontade entre sinfonias, suítes, sambas, choros e motivos do folclore (que recolhia nos “buracos” do país, como dizia), entre outros gêneros musicais presentes em sua obra de compositor e arranjador. A fluidez não era a mesma quando o assunto era fazer música brasileira – ai do compatriota que viesse com composições em ritmos (ou com elementos) estrangeiros. Ai do brasileiro que abrisse mão do “sentir nacional”.
Um sentimento que, para Guerra-Peixe, inicialmente remete à infância em Petrópolis. Foi lá, na região serrana fluminense, que ele nasceu há 110 anos (18-03-1914), na Rua Aureliano Coutinho, caçula dos nove filhos de Anna Adelaide e Francisco Antônio Guerra-Peixe, ambos imigrantes portugueses chegados por aqui na última década do século 19. Com o pai, aprendeu não só a fazer e pregar ferraduras (ofício do velho), como também – e sobretudo – música, nos múltiplos instrumentos em que seu Antônio gostava de passar o tempo. Aos cinco anos, aprendeu a manejar o violão – em seguida, entendeu-se por conta própria com o bandolim, o violino e com o piano. Este último, caro para os padrões da família, o menino aprendeu a tocar na casa de amigos.
Logo passou a acompanhar o pai nas rodas de choro petropolitanas, pouco antes de ter seus primeiros professores de fato, na Escola de Música Santa Cecília: com João Paulo Carneiro aprendeu teoria e solfejo; com o tcheco Gao Omacht, violino e piano. Só então já podia “tocar no cinema, que então era o máximo”, como recordou em outra matéria do Jornal do Brasil (10-05-1974), em entrevista ao colega compositor Edino Krieger. Um gostinho que teve aos 14 anos (1928), quando tocou seu violino em filmes no Cine Glória, em Petrópolis, “mas em 1929 o sonho acabou, com a chegada do cinema sonoro.” Já no Rio de Janeiro, tem aulas com Paulina D’Ambrosio (violino) e, depois, Newton Pádua (harmonia, composição e contraponto e fuga), “meu mestre”, como definirá em tantas entrevistas.
Trabalho também não faltou na então capital federal: primeiro, como violinista de pequenos conjuntos que tocavam em templos da boemia carioca, como a Taberna da Glória e o Café Belas Artes, logo depois da mudança para a cidade (1934). A ponto de recusar emprego no Teatro Municipal: “Eu preferi ficar como livre atirador aqui fora”, disse à Rádio Mec (1986), em entrevista ao apresentador/produtor Lauro Gomes, “ganhando três ou quatro vezes mais”. Já na Rádio Tupi, onde trabalhou a partir de 1942, exercita sua escrita de arranjos para orquestra. “Meu objetivo era ser um bom orquestrador, mas se deu que comecei a ler Mário de Andrade e vi que poderia ser pelo menos um compositor brasileiro”, definiu, também à Rádio Mec.
A leitura em questão foi a do “Ensaio sobre a música brasileira”, que Guerra-Peixe define como sua “primeira revelação”, como disse a Edino Krieger. “Eu nem sabia que existia uma tal de música brasileira.” Guerra-Peixe desenvolveu o tema em outra entrevista – ao crítico Luiz Paulo Horta – publicada pelo JB (21-01-1980). “Quem quiser fazer música internacional vai cair numa dessas escolas e será um elemento nulo, pois não vai fazer melhor do que os membros natos dessas escolas”, afirmou. “Mas se ele fizer música nacional, ainda que não seja grande compositor, terá pelo menos uma função social no seu país, dará uma contribuição à cultura nacional. Aí eu pensei, que diabo, quem sabe eu posso fazer alguma coisa?”
E assim o jovem Guerra-Peixe, já então autor da “Suíte dos três minutos” (1939), entre outras peças de concerto de sua primeira leva de composições, fez sua estreia fonográfica com as gravações de três parcerias com José Calazans, o Jararaca: o samba malicioso “Me leva baiana” (1941) e duas marchinhas – a escrachada “Com um dedo só” e a crônica de costumes “Ora bolas”, ambas de 1942. Contrasta com elas a marcha “Fibra de herói” (dele com Teófilo de Barros Filho), outra de 1942, bem no espírito verde oliva que antecedeu a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Em paralelo à obra autoral, os discos da época também o creditavam – Guerra-Peixe e Orquestra – pelo acompanhamento (e provável arranjo) de lançamentos de Sílvio Caldas de 1945, como o samba “Feitiçaria” e o fox “Sim ou não”, ambos compostos por Custódio Mesquita e Evaldo Rui. Já na série de histórias infantis que a Continental lançou no mesmo ano, são dele as músicas de “Branca de Neve e os sete anões”, historinha dividida em dois discos de 78 rpm com letras de João de Barro, o Braguinha, diretor artístico da gravadora e idealizador da série, que em 1960 daria origem à coleção Disquinho.
De volta a 1943, foi nesse ano que Guerra-Peixe concluiu os estudos no Conservatório Brasileiro de Música e sentiu que “precisava conhecer coisa nova”, como relembrou na entrevista a Edino Krieger. Foi assim que chegou ao professor Hans-Joachim Koellreutter, flautista alemão radicado no Brasil desde 1937 “que trazia da Europa a última palavra em matéria de música nova – o dodecafonismo”. Estuda por dois anos com ele (recebendo “informações sobre a música de vanguarda da época”) e passa a integrar o Grupo Música Viva, liderado por Koellreutter em torno da música dodecafônica. Entre as composições de Guerra-Peixe nesta fase – cerca de 50, segundo a Enciclopédia Itaú Cultural – destacam-se “Sinfonia nº 1” (1946) e “Divertimento” (1947), estreadas pela Orquestra da BBC de Londres, com transmissão por 40 emissoras de rádio.
“Um dia eu verifiquei que, à medida que nacionalizava a minha criação, ia abandonando o dodecafonismo”, contou Guerra-Peixe a Luiz Paulo Horta. A ruptura se deu em 1949, quando se desapegou das ideias vanguardistas de Koellreutter – que “só serviram para quebrar o marasmo musical da década de 40”, como disse a Francisco Duarte – em perfeita consonância com seu principal lançamento fonográfico desse ano, o cântico “Feliz ano novo”, feito em parceria com Cláudio Luz e gravado pelo Coro dos Apiacás, com regência de Lucília Villa-Lobos.
O recomeço acontece no Recife, para onde se muda nesse mesmo 1949, empregando-se na Rádio Jornal do Commércio e embrenhando-se no folclore local, cujos elementos passa a aproveitar em suas criações a partir da estada pernambucana, até 1952. Entre elas está o livro “Maracatus do Recife”, escrito por ele a partir desta experiência e publicado em 1955 pela Editora Ricordi. “Fui também a Caruaru, Limoeiro, São Lourenço, Paulista, Olinda...”, enumerou a Edino Krieger, como que emendando em outro roteiro, dito na entrevista a Luiz Paulo Horta. “Compositor brasileiro vai a Praga, Nova York, Londres, Roma, e não vai a Cascadura.”
Entre os resultados das andanças por Pernambuco e outros cantos do Nordeste estão os que foram parar no LP de dez polegadas “Festa de ritmos”, que fez na gravadora Copacabana, em 1955. Deste repertório quatro faixas foram lançadas também em 78 rotações deste mesmo ano: o ponto “Mamãe Emanjá” e a toada de maracatu “Nego Bola Sete” (ambas composições de Guerra-Peixe) saíram num disco de Leny Eversong, enquanto o próprio maestro, acompanhado de “seu Batuque”, gravou “Jornada de Lapinha nº 1” e “Jornada de Lapinha nº 2”.
Também interpretado pelo próprio compositor com conjunto – aqui creditados como Guerra-Peixe e Seus Músicos – é o ótimo “Chora na rampa”, frevo de rua gravado na Chantecler em 1959. Nessa época, o maestro já vivia em São Paulo, para onde se mudou em 1952, “iludido com o futuro do cinema paulista” (como confessou a Edino Krieger), mas acabou “um tanto isolado, boicotado” (como revelou a Lauro Gomes). Ainda assim, trabalhou no rádio e fez a música de filmes como “O canto do mar”, de Alberto Cavalcanti, do qual resultam duas canções lançadas num 78 rotações de Inezita Barroso: “Maria do mar” e “O canto do mar”, ambas composições de Guerra-Peixe em parceria com José Mauro de Vasconcelos, roteirista do filme.
A temporada paulista – que afinal se estendeu até o começo dos anos 1960 – valeu também pelo contato que teve com o pesquisador, professor e jornalista Rossini Tavares de Lima, “uma das crias do Mário de Andrade”, com quem aprofundou seus estudos sobre o folclore brasileiro. “Saí muitas vezes com ele pelo interior e pesquisei alguma coisa de música paulista”, relembrou na entrevista a Lauro Gomes. “Assim ouvi jongo, cateretê, tambu, folia de reis, congada, dança do divino, dança da cruz, samba-lenço, cururu...” Descobertas musicais devidamente anotadas não só pelo Guerra-Peixe compositor, como pelo autor de arranjos como os de “Juremas” e “Ponto de caboclo Neivi Branco”, recolhidos pela intérprete das gravações, a atriz e cantora Anita Otero.
“Acho que, para fazer música nacional, o folclorismo não é o único caminho”, definiu Guerra-Peixe a Luiz Paulo Horta, ao depurar sua compreensão sobre música nacional, que afinal é a música feita no Brasil, mas que, segundo o maestro, não deve repetir a época em que se “tinha posição nacional, falava nos índios, nos nossos heróis, mas a música era italiana, era francesa, etc.”, como distinguiu na mesma entrevista, publicada no JB (21-01-1980). “É preciso estudar o folclore para superar o próprio folclore. Senão fica no ramerrão de muita gente que faz música nacional e faz vergonha.”
Ainda assim, nem só de conteúdo nacional é feito o repertório autoral de Guerra-Peixe em 78 rotações: nele estão também ritmos estrangeiros, como o tango instrumental “Abandonado” e o bolero “Cartas recebidas” (parceria com Cláudio de Barros) – sem contar a levada um tanto abolerada de “Amar assim não sei” (dele com Maria Lino), “Vontade de enlouquecer” (com Odair Marsano) e “É melhor não voltar”, todos identificados nos selos de discos como sambas-canção. Há também sambas no repertório autoral de Guerra-Peixe, como os lacrimosos “Cortesia” e “Se você voltasse” e o galanteio com levada à bossa nova “É você quem tem”, todos sem parceiro.
Gravações feitas, na maioria, na gravadora Chantecler, que contratou Guerra-Peixe como diretor musical no início da década de 1960, depois de sua volta ao Rio de Janeiro, em 1962. Nesse período, trabalhou também na Rádio Nacional e na TV Excelsior, antes de assinar com a TV Tupi, na qual atuará como diretor musical, arranjador e regente até a aposentadoria. "Sou aposentado pelo INPS, como músico e compositor, depois de 43 anos e três meses de trabalho, mas voltei para o violino, porque precisava sobreviver”, contabilizou na entrevista a Francisco Duarte. Isso como músico da Orquestra Sinfônica Nacional, que divide seu tempo com as aulas de música — outro ganha-pão — em cursos particulares ou em universidades.
Ainda na década de 1960, também defendeu-se dos boletos escrevendo arranjos para artistas diversos — de Waldick Soriano a Baden Powell e Vinicius de Moraes (no famoso dez polegadas dos “Afro-Sambas”), passando pelos Festivais Internacionais da Canção. E ainda arrumou tempo para colaborar com o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ), mas com direito a treta. “Eu era do Conselho impropriamente dito de ‘Música Erudita’. Erudita por quê?”, questionou, na entrevista a Francisco Duarte. “Música é universal. Que chamem a outra de popular, folclórica, mas deixem a música em paz. Aí eu propus tirarem a palavra erudita na primeira reunião. Não aprovaram, eu senti que não tinha mais clima para diálogo e não fui mais lá.”
Guerra-Peixe estava especialmente afiado nesta entrevista, publicada pelo JB (19-03-1979) no dia seguinte a seu 65º aniversário. Criticou mais uma vez o dodecafonismo (“Eu via que estava tudo errado”), torceu o nariz para os lugares onde se toca música mecânica (“Essa coisa eletrônica de hoje”), viu-se preocupado com a execução de música estrangeira no Brasil (“Se eu fosse presidente da Ordem dos Músicos ia dar um jeito nisso”) e com outras urgências do universo musical (“O xerox matou o comércio de partituras, uma vergonha”). A acidez mais pronunciada, no entanto, ficou para o desfecho da entrevista: “Valeu a pena ser músico porque eu gosto disso. Não valeu a pena ser Guerra-Peixe”, disparou. “Porque os amigos apoiam e são sinceros, outros têm medo de Guerra-Peixe e evitam-no, impedindo que eu faça coisas que sei que são necessárias à nossa cultura.”
Ainda assim, entre as peças de concerto que seguiu compondo (como a série dos “Cânticos serranos”) e os arranjos que nunca parou de fazer (como o da 1ª gravação de “Pra frente Brasil”, a marcha de Miguel Gustavo que estourou com a vitória brasileira na Copa de 70), recebeu muitas homenagens de seu meio. Como em 1971, quando foi eleito para a Academia Brasileira de Música, ocupando a cadeira 34, que tem como fundador seu professor, Newton Pádua. Em 1986, quando foi o grande homenageado do Prêmio Shell de Música, pelo conjunto de sua obra. E em 1993, quando recebeu o Prêmio Nacional de Música, oferecido pela Funarte no concerto de abertura da 10ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea, esta sua última aparição pública.
Guerra-Peixe faleceu 45 dias depois, em 26 de novembro de 1993, aos 79 anos, de complicações decorrentes de um edema pulmonar. Seu corpo foi velado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e, depois, subiu a serra para o sepultamento no Cemitério Municipal de Petrópolis, “onde o menino do violino fica para sempre, ante o choro de seus parentes, amigos, admiradores e da cidade que ele tanto amava”, como disse o escritor e historiador Joaquim Eloy Duarte dos Santos em 26 de junho de 2003, data da inauguração da Praça Maestro César Guerra-Peixe, na Rua do Imperador, pertinho do Museu Imperial de Petrópolis.
Foto: reprodução da internet