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    Carmen, Dircinha, Elis, Miúcha e grande elenco: de voz em voz, ‘Na batucada da vida’ completa 90 anos

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Esmolambar-se: verbo feio de dizer e mais ainda – embora às vezes inevitável – de pôr em prática. Mesmo assim, volta e meia o molambo (pano sujo, andrajo ou farrapo, segundo os dicionários) tem sua vez nos versos da música brasileira, seja como anti-herói das quebradas, boêmio sofrido ou as duas coisas juntas. Já o uso do verbo é mais incomum nas letras. Ou melhor: seria inédito, provavelmente, não fosse uma honrosa exceção: “Na batucada da vida”, um samba que fez história, embora longe de ser o maior sucesso de seus envolvidos: Ary Barroso, compositor da melodia, Luiz Peixoto, autor da letra, e Carmen Miranda, voz da primeira gravação, feita há 90 anos.

    Mas, naquele 20 de março de 1934, quando a cantora entrou no estúdio da Victor (Rua do Mercado, nº 22, Centro), para gravar pela primeira vez o samba, não podia imaginar que estava prestes a lançar uma música tão querida – pelo público, pela crítica e por tantas cantoras, que a regravariam como uma autêntica peça de confronto. 

    Nada mal para aquele “samba de andamento lento, tessitura extensa e melodia acidentada”, como bem definiu o jornalista e crítico musical João Máximo na série “Como e por que nascem as canções”, escrita e apresentada por ele na Rádio Batuta (24-04-2013). A letra também estava longe de facilitar as coisas, trazendo o perfil de “uma sofrida personagem da vida carioca: uma mulher nascida na pobreza, enjeitada, sem sorte e – como lamenta num dos versos – ‘esquecida por Deus’”.

    Uma molamba, portanto, com o perdão dos dicionaristas e seus fiéis leitores. Uma pequena que, em primeira pessoa, cambaleia nas próprias desventuras, como num balcão de boteco. O mesmo frequentado por outros tipos de sarjeta, como a “Maria Fumaça” (que “fumava cachimbo, bebia cachaça”) e o “João Ninguém” (que “come bastante no almoço pra se esquecer do jantar”), de Noel Rosa. A “Dolores Sierra” (que “faz companhia a quem lhe der mais”) e a “Flor da Lapa” (“bebendo, bebendo, de mesa em mesa”), de Wilson Batista. Ou o “Caco Velho” (“que não vale nada, tem a cabeça branca e a pele encarquilhada”), do próprio Ary Barroso.

    Pois foi justamente na boemia, possivelmente em fins de 1933, que deu-se o “era uma vez”, certa noite na Cinelândia, onde Ary batia perna com Luiz Peixoto, que propôs ao parceiro: “Vamos fazer um samba?” Pensaram em enfurnar-se no Studio Nicola, em cima do bar Amarelinho, ou no Capitólio – ambos fechados. Até que Ary se lembrou do Teatro Alhambra, no qual atuava como diretor de revistas e para onde correu com o parceiro, querendo acesso ao sótão, onde havia um velho piano que cairia como uma luva, mas pararam no porteiro.

    “O homem disse que já era quase meia-noite e estava tudo fechado”, escreveu o jornalista Mário de Moraes na última de uma série de reportagens sobre Ary Barroso para a revista O Cruzeiro (03-08-1963). “Ary fez valer a sua autoridade. Insistiu. O zelador informou que, lá em cima, não havia luz. Ary disse que ele estava enganado. Existia uma lâmpada de 10 a 15 velas, que dava para o gasto. Terminou conseguindo o que queria”, narra. “E foi com Luiz Peixoto para o sótão, mal iluminado, cheirando a mofo, cheio de teias de aranha, pois há muito não vinha sendo usado. Ary foi logo para o piano. Dos primeiros acordes chegou aos primeiros compassos do novo samba. Ele e Luís Peixoto trabalhando juntos, na música e letra da composição. Não demorou, estava pronta.”

    A primeira execução pública do samba foi no dia 11 de janeiro de 1934, quando estreou ali perto, no Teatro Recreio, o espetáculo “Há uma forte corrente”, revista teatral assinada por Luís Iglesias e Freire Junior. Entre as atrações em cena, a principal era “a maior vedetta brasileira, que é Aracy Cortes, de volta da sua excursão à Europa”, como informou o Correio da Manhã (10-01-1934), noticiando ainda que no repertório da cantora estariam “dois sambas inéditos: ‘Na batucada da vida’, de Ary Barroso, e ‘Deixa meu povo passar’, de Assis Valente”.

    Este último samba, depois rebatizado com o nome de “Minha embaixada chegou”, logo se tornaria também um sucesso de Carmen Miranda. Mas no teatro não chegou nem perto do estouro que foi “Na batucada da vida”, sucesso imediato, como se pôde ler nas páginas do Jornal do Brasil, que em sua seção teatral não poupou elogios àquele samba “maravilhoso” (16-01-1934), “formidável” (17-01-1934), que passou a ser bisado ao fim das apresentações. Até nas peças de divulgação do espetáculo ele virou uma atração à parte: “Êxito de Aracy Cortes no samba ‘Batucada da vida’!”

    Jornal do Brasil, 14-01-1934
    Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

    Logo veio a gravação em disco, para a qual foi escalada Carmen Miranda, a cantora do momento, que Ary Barroso comparava ao ídolo Domingos da Guia, zagueiro do Flamengo e da seleção brasileira, “por serem ambos artistas excepcionais, apesar dos seus defeitos”, como informa o jornalista e escritor Sérgio Cabral no livro “No tempo de Ary Barroso” (Lumiar Editora, 1990). Segundo o biógrafo, Ary “dizia que Carmen não possuía extensão vocal e nem sempre cantava com afinação. Domingos da Guia não tinha velocidade, cabeceava com os olhos fechados e não chutava bem as bolas paradas. ‘No entanto’, concluía, ‘os dois são perfeitos’.”

    Mesmo assim, não foi exatamente tranquila a seção de gravação de 20 de março de 1934, como o próprio Ary Barroso contou à edição de nº 8 da Revista da Música Popular (julho/agosto de 1955): “Foi muito difícil à Carmen gravar o meu samba ‘Na batucada da vida’. Não era precisamente seu gênero. O samba tem uma tessitura muito extensa. Primeira tentativa: nada! Segunda, pior. Carmen descansou. Procurou, então, um tom mais acessível”, relatou o compositor. “Enquanto estávamos neste trabalho, um pouco desconsolada, Carmen me disse: ‘Também, você vai fazer um samba que ocupa da primeira à última nota do piano... Isso nem é samba; é uma escala!’”

    Já Sérgio Cabral defende que “não foi o excesso de notas musicais que prejudicou a gravação”, mas as opções feitas pela própria Carmen e por Pixinguinha, “autor do arranjo e regente da orquestra denominada Diabos do Céu”, encarregada do acompanhamento musical. Segundo o escritor, ambos “não perceberam que a música merecia um tratamento que sublinhasse a letra de Luís Peixoto, além de acentuar certos detalhes da linda melodia de Ary Barroso”, avalia. “Deram um andamento apressado e o próprio Pixinguinha, genial músico brasileiro, caiu no óbvio, ao escrever trechos de batucada, provavelmente porque o nome da música tinha a palavra ‘batucada’.”

    Segundo João Máximo, na Rádio Batuta, a letra também foi alterada no estúdio da Victor, “pela própria Carmen Miranda: os versos originais de Luiz Peixoto diziam ‘Me soltou na rua à toa / A passar de mão em mão’. Carmen canta: ‘Me soltou na rua à toa / Desprezada como um cão’. E os versos ‘Que topo qualquer parada / Por um prato de comida’ viraram ‘Que não tenho nada, nada / E por Deus fui esquecida.’” João Máximo sublinha que a mudança na letra era apenas a primeira das muitas que seriam feitas naquele samba: “‘Na batucada da vida’ jamais foi ouvido exatamente como foi feito.”

    Carmen Miranda e Ary Barroso / Reprodução  da Revista da Música Popular (jul/ago, 1954)

    A primeira a regravá-lo foi Dircinha Batista, outra cantora muito querida por Ary Barroso, aliás participante desta primeira regravação, feita em 1950, com andamento mais lento do que o registro original, de 16 anos antes, além de alterações na letra: enquanto Carmen cantava que “de noite teve choro e batucada”, Dircinha trocou choro por samba, antes de dizer que mamou “um litro e meio de cachaça bem mamados”, e não mais “bem puxados”, como na versão original. Mais adiante, Dircinha canta que cresceu “olhando o mundo (e não ‘a vida’, como cantou Carmen) sem malícia”, e assim por diante.

    No meio desta barafunda nos versos, um que adorava “Na batucada da vida” era um dos mais notáveis discípulos de Ary, Tom Jobim, que encaminhou o samba a duas cantoras. Uma delas Miúcha, que o interpreta em seu disco de estreia (RCA Victor, 1977), com mais uma novidade na letra: no lugar do “choro” de Carmen e do “samba” de Dircinha, preferiu cantar que “de noite teve lua e batucada”, assim como faria o próprio Tom – que a acompanha ao piano neste registro – numa gravação para o “Songbook Ary Barroso” (Lumiar Discos, 1995).

    Trata-se da “gravação imortal” deste samba, segundo o cantor e compositor Moacyr Luz, que define a parceria de Ary e Luiz Peixoto como “uma aula de música”. “A voz do Tom Jobim está aquela voz de doze anos”, fareja o sambista em sua participação no programa "As canções que eles fizeram para mim", da Rádio Batuta (16-02-2012). “Acho que ele tinha tomado alguma coisa, que a voz dele está mesmo aquela voz de escocês.”

    Segundo João Máximo, na mesma Rádio Batuta, “Tom Jobim ensinaria ‘Na batucada da vida’ também a Elis Regina, cuja versão, definitiva, segundo a opinião unânime da crítica, tem um andamento lento que aproxima o samba-canção do bolero, tonando-se o que Ary Barroso, se vivo fosse, classificaria como sambolero”. “Uma gravação deslumbrante”, como classifica Sérgio Cabral, sobre a faixa de abertura do disco “Elis” (Philips, 1974) que, com arranjo de Cesar Camargo Mariano, serviu de base para um videoclipe caprichado da cantora.

    Mais informal – e imperdível, na mesma medida – é o vídeo em que Tom, acompanhando-se ao violão, mostra o samba para Elis num momento de descontração durante a passagem da cantora por Los Angeles (EUA), entre fevereiro e março de 1974, onde gravaram o LP “Elis & Tom”, lançado naquele mesmo ano, também pela Philips. Neste registro audiovisual (veja abaixo), exibido no recente documentário de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay (2022) sobre o famoso disco, sobressaem as expressões no rosto de Jobim, com olhares irresistíveis – às vezes lembrando Carmen Miranda – que sublinham as desventuras de nossa esmolambada protagonista.



    Mas foi em outras vozes femininas que “Na batucada da vida” seguiu seu caminho. Como nas homenagens a Carmen por Marília Pêra (Som Livre, 2006), Ná Ozzetti (MCD, 2009) e o conjunto vocal Ordinarius. Nas regravações em tributo a Elis, feitas por Joyce Moreno (Pau Brasil, 1998) e Barbara Casini (Via Veneto Jazz, 2004). E também Eliane Elias (Concord Records, 2017), com arranjo referenciado no de Cesar Camargo Mariano em 1974.

    Já entre as regravações dedicadas à memória de Ary Barroso há divas eternas, como Elizeth Cardoso (independente, 1989) e Zezé Gonzaga (Fenab, 1992), e novas vozes, como a cantora Alice Passos, que escolheu “Na batucada da vida” como faixa de abertura de seu álbum “Ary” (Fina Flor, 2020). “Impressionante como este samba é forte, já desde o primeiro verso”, sublinha a jovem intérprete e compositora. “E como é interessante esta personagem feminina contando sua própria história, uma história duríssima, mas fora daquele estereótipo da mulher sofrida, tão comum no repertório brasileiro dessa época.”

    Pois é isso: apesar de todos os pesares, ou mais possivelmente por causa deles (nesse caso, os vagabundos da orgia, o cabo de polícia e a barriga vazia, entre outras rasteiras da vida), nossa heroína esmolambou-se, mas terminou de pé – afinal, é “mesmo da virada”. Só assim para chegar aos 90 em plena forma, “sempre sambando, na batucada da vida” e em tantas vozes importantes da música popular brasileira.

    Foto principal: Ary Barroso e Carmen Miranda / Reprodução da internet

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